“Os
nosso primeiros trovadores foram, de fato, os índios, principalmente os
tupis-guaranis.
É
o que nos informam os cronistas, viajantes e missionários do Século XVI
(Gabriel Soares de Souza, Fernão Cardim, Ambrósio F. Brandão, Magalhães Gandavo)
e confirmam os estudiosos de séculos posteriores, até os dias atuais (Alexandre
Rodrigues Ferreira, Couto de Magalhães, Barbosa Rodrigues, Batista Caetano,
Batista Siqueira, Villa-Lobos, José Siqueira, Mário de Andrade, etc), não
excluindo o alemão Von Martius, que tanto viajou e sofreu por este ilimitado
continente.
Trovas
amorosas, folclóricas e até de fundo animista são facilmente encontradas nas
obras desses autores dos séculos XIX e XX. Mas o que nos faz pensar um bocado
sobre a vivacidade mental do nosso irmão tupi-guarani é a mordacidade, que nada
tem de primitiva, das suas composições referentes às agruras da vida, aos
contatos com o português (termo geralmente usado para caracterizar os brancos
de todos os tipos), ou às contínuas perseguições, massacres e espoliações
injustificáveis, num país tão vasto.
De
Von Martius todos já conhecem as duas quadrinhas, adaptadas por Joaquim
Norberto do seguinte modo:
Não
quero mulher que tenha
as
pernas bastante finas,
com
medo que em mim se enrosquem
como
feras viperinas.
Também
não quero que tenha
o
cabelo assaz comprido,
que
em matos de tiririca
achar-me-ia
perdido.
Da
boca de dois tupi-guaçus, vindos de Aquidauana, Estado de Mato Grosso, ouvimos,
há alguns anos, algumas trovas, que vamos reproduzir no original, com a
respectiva adaptação ao português, por nós realizada.
São
cantadas em nheengatu, ou tupi moderno:
1
Cariua,
puxyuéra oikó,
Anhangá
opinima ahé;
Tatá
opumun i pó,
Tiputy,
i iurú popé.
Tradução:
Português
é bicho mau,
foi
pelo diabo pintado.
Sua
mão vomita fogo,
tem
boca em lugar errado.
2
Irara
ou iané ira,
Iauraeté,
capiuàra;
Ma,
Caríua piá-puxy,
I
mukáua-iucaçára.
Tradução:
Irara
comeu o mel,
onça
grande, a capivara;
porém
é o branco cruel
que
a espingarda nos dispara.
3
Caríua,
ndê tinguaçú;
Caríua,
macaca sáua.
Andirá
ce py opitera:
–
Ce manioca ndê reú.
Tradução:
Homem
branco, nariz grande,
como
o macaco, és peludo;
morcego,
chupou meu pé,
comeste
mandioca e tudo.
4
Macaca
tuiué, paá,
Cuiambuca
ahé Okuáu;
Amurupi,
iané piá,
Mundé
çui, nti oiauáu.
Tradução:
Dizem
que macaco velho
nunca
se deixa enganar;
ao
contrário, o coração
nunca
cessa de apanhar.
Como
estão vendo os leitores, o indígena brasileiro, que produziu a maravilhosa
cerâmica de Marajó; que como ninguém conhecia os astros e coisas do firmamento;
e que ao branco ensinou mil e uma experiências úteis, até de fundo medicinal,
era, igualmente, e é, ainda hoje, estupendo cultor da poesia e, com
especialidade, da Trova.
Por
isso, sem nenhuma reserva, merece, com os nossos agradecimentos, o título
espetacular de o primeiro ou mais antigo trovador da terra de Santa Cruz.”
Fonte: Aparício Fernandes. A
Trova no Brasil: história & antologia. Rio de Janeiro/GB: Artenova, 1972
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