segunda-feira, 24 de novembro de 2025

Sílvio Romero (Dona Pinta)

(Folclore do Sergipe)

UMA VEZ HAVIA UM REI que tinha seu palácio defronte de uma casa onde morava um velho que tinha três filhas bonitas. A mais bonita de todas chamava-se Dona Pinta e o rei se apaixonou por ela.

Uma vez estando ele na varanda a querer namorá-la, ela, que estava brincando com um gatinho, levantou-lhe o rabinho, e mostrou-lhe embaixo... O rei ficou muito zangado e quis arranjar um meio de entender-se com a moça livremente para vingar-se. 

Mandou chamar o pobre do velho e lhe disse que precisava que ele fosse vencer umas guerras. O velho se desculpou muito, e disse que ia falar com suas filhas para ver o que elas diziam. D. Pinta lhe disse que prometesse ao rei ir, mas pedisse uma espera de alguns dias. Esta espera era para dar tempo a ela para fazer um alçapão na casa.

Passados os dias, o velho seguiu para as guerras, deixando a cada uma das filhas uma rosa, dizendo: “Quando eu voltar, cada uma há de me apresentar a sua rosa aberta e fresca, que é o sinal de sua virgindade; aquela cuja rosa estiver murcha terá o meu castigo”.

Depois que o velho saiu, o rei apareceu na sua casa, e D. Pinta o recebeu. Deixou-o na sala conversando com as irmãs, e foi para a sala de trás, e escondeu-se no seu subterrâneo. 

O rei cansou de esperar e, ficando tarde, foi-se embora muito zangado. No dia seguinte tornou a vir, e D. Pinta fez o mesmo; no terceiro dia a mesma coisa. Aí fez mal às duas suas irmãs, que apareceram pejadas, e cujas rosas ficaram murchas. 

O rei cada vez foi tomando mais raiva de D. Pinta, ao passo que mais se acendia o seu desejo, quanto mais ela o enganava.

Um dia ela se vestiu de moleque, e foi buscar favas na horta do rei, o qual a viu, mas não a conheceu, e, quando o soube, ainda mais desesperado ficou. Passou-se tempo e sempre o rei a jurando.

Uma vez ela foi buscar lenha e o rei a encontrou no mato. Aí ela disse: “Oh! Como vem rei meu senhor tão cansado e tão suado! Deite-se aqui, rei meu senhor!” 

E sentou-se no capim, fez colo e o rei deitou-se, e ela se pôs a catar-lhe piolhos. Foi indo, foi indo até que o rei pegou no sono. Aí ela, bem devagarinho, levantou-se, botou a cabeça do rei numa trouxa que fez com o xale, e largou-se, foi-se embora a toda a pressa. 

Quando o rei acordou, olhou em volta e não viu ninguém, ficou desesperado da vida. Passou-se. As irmãs de D. Pinta ficaram em ponto de dar à luz e deram. Ela, com medo de que o pai descobrisse a falta das irmãs, resolveu-se enjeitar os meninos no palácio do próprio rei.

Um dia, antes do pai chegar das guerras, preparou-se de negra com tabuleiro na cabeça e os dois meninos dentro, fingindo eram flores, e foi vender no palácio. O rei, sem saber quem era, foi ver as flores, e, quando descobriu o tabuleiro, deu com os seus dois filhinhos. A negra disse: “Aí ficam que são seus!. . . ” 

E largou-se de escada abaixo e foi-se embora. 

O rei então conheceu tudo, e dizia: “D. Pinta, D. Pinta!. . . Um dia eu hei de vingar-me.”

Tempos depois, chegou o pai das três moças das guerras. As duas filhas desonradas ficaram mais mortas do que vivas para irem tomar a benção ao pai, porque não tinham mais a sua rosa viva! 

D. Pinta as valeu, dizendo a uma delas: “Tome a minha rosa, mana, vá primeiro você, e ao depois vá fulana, e depois eu.” Assim fizeram, e enganaram o velho que de nada soube.

Depois disto, andava o rei uma vez passeando embarcado no mar e encontrou D. Pinta num bote também passeando. Ela, quando o avistou, o convidou para ir para o seu barco, e passearem juntos. Na ocasião do rei entrar, ela o atirou no lodo da maré e ele ficou todo emporcalhado. Ficou “vendendo azeite às canadas” (enfureceu-se), e procurando um meio de se vingar. Não achando nenhum, fez o plano de a pedir em casamento, e matá-la depois de casados. 

Fez o pedido, e a moça não aceitou. Afinal tanto instou que a moça disse ao pai: “Está bom, meu pai, diga a ele que eu o aceito, mas há de me dar seis meses de espera.” 

O velho foi dizer ao rei que a filha aceitava, mas pedia uma espera. Isto era tempo que D. Pinta pedia para poder preparar uma boneca, e parecida com ela, para enganar ao rei.

No fim de seis meses não estava pronta ainda a boneca, e o rei, tendo mandado marcar o dia do casamento, D. Pinta respondeu que só se casaria se o rei mandasse fazer um palácio novo. O rei concordou, e mandou fazer o palácio. Quando já estava a obra quase pronta, D. Pinta não tinha ainda a boneca preparada e, então, uma noite foi ao palácio velho às escondidas, furtou a roupa do rei, meteu-se nela e foi ter com o mestre da obra, e fingindo que era o rei, e muito zangado dizia: “Isto não é obra; quero já que botem tudo abaixo e façam tudo de novo.” 

Isto era de noite; o mestre da obra mandou logo chamar todos os trabalhadores e deitaram o palácio abaixo para levantar outro de novo. 

Afinal ficou pronta a boneca de D. Pinta, e também o palácio do rei. Marcou-se o dia do casamento. D. Pinta, quando foi para o quarto de dormir, levou a sua boneca, que era toda o retrato dela: botou-a assentada na cama com um favo de mel no seio, e se escondeu debaixo da cama, pegando num cordãozinho que a boneca tinha e que a fazia mover com a cabeça. 

O rei depois entrou e dirigiu-se à boneca, pensando que era D. Pinta, dizia: “D. Pinta, tu te lembras quando teu pai foi para a guerra que eu fui três dias à tua casa, e tu, pra caçoares comigo, te metias lá pra dentro, e não me aparecias mais?...” 

A boneca bulia com a cabeça. Assim foi o rei repetindo todas as pirraças que a moça lhe tinha feito, e no fim cravou-lhe um punhal no seio. 

O mel espirrou e foi tocar nos beiços do rei, que, sentindo a doçura, disse: “Ah, minha mulher, se depois de morta estás tão doce, que fará quando eras viva!” 

E pôs-se a chorar. 

Aí D. Pinta pulou de baixo e apresentou-se: “Aqui estou, meu amor!” 

Fizeram as pazes e ficaram vivendo muito bem.
= = = = = = = = =  = = = = = = = = =  = = = = = = = = =  = = = = 
SÍLVIO VASCONCELOS DA SILVEIRA RAMOS ROMERO (1851-1914) foi crítico e historiador da literatura brasileira. Fundador da Academia Brasileira de Letras. Pensador social, folclorista, poeta, jornalista, professor e político. Era sócio correspondente da Academia de Ciências de Lisboa. Nasceu na vila de Lagarto, Sergipe, 1851. Em 1868 mudou-se para o Recife e ingressou na Faculdade de Direito. Polêmico, combativo e contraditório, foi influenciado por seu conterrâneo Tobias Barreto. Juntos, lideravam uma escola que reunia jovens inteligentes e destemidos, que se encarregavam de irradiar as recentes ideias vindas da França. Quando estava no 2. Ano da faculdade, Sílvio Romero colaborou com vários jornais. Em 1873 concluiu o curso de Direito. Em 1876 mudou-se para o Rio de Janeiro onde obteve a cátedra de filosofia. Romero foi também professor da Faculdade Livre de Direito e da Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro. Como poeta, teve uma breve carreira. O primeiro livro de poemas foi Cantos do Fim do Século, lançado em 1878, em uma tentativa de aderir poesia filosófica científica que pregava desde 1870 em artigos, mas que não obteve êxito. Em 1883 publicou Últimos Arpejos, seu segundo e último volume de poesia. Desenvolveu intensa atividade como escritor. Escreveu vários livros que abordavam praticamente tudo que se referia à realidade cultural brasileira como: filosofia, literatura, folclore, educação, política e religião. Publicou assuntos ligados à cultura popular revelando-se um grande folclorista. Escreveu sobre filosofia no Brasil e sobre escolas filosóficas diversas. Em 1878 escreveu Filosofia no Brasil, publicado em Porto Alegre. Sua obra História da Literatura Brasileira (1888), em dois volumes, menos uma história literária do que uma enciclopédia de conhecimentos sobre o Brasil, a origem e evolução de sua cultura, suas raízes sociais e técnicas, foi considerada sua obra mais revolucionária. Deixou uma vasta obra culturalmente valiosa e pioneira em muitos aspectos. Respeitado pela imprensa nacional, conquistou seu lugar como um dos mais importantes críticos e historiadores da literatura brasileira do século XIX. Faleceu no Rio de Janeiro, em 1914.

Fontes:
Sílvio Romero. Contos populares do Brasil. Publicado originalmente em 1883. Disponível em Domínio Público.  
Imagem criada por Jfeldman 

domingo, 23 de novembro de 2025

Comunicado Importante do blog "Singrando Horizontes"

 Queridos leitores e colaboradores do blog Singrando Horizontes,

É com um misto de tristeza e desânimo que venho comunicar uma importante mudança na trajetória do querido blog. Depois de 18 anos de postagens diárias, a partir do dia 24 de dezembro de 2007, data em que completo 18 anos de atividades, opto por encerrar as publicações regulares. A partir de então, as postagens se tornarão eventuais, sem datas definidas.

Ao longo desses anos, dediquei meu tempo a compartilhar contos, crônicas, poemas, trovas e muito mais, sempre em busca de manter vivo o amor pela literatura e pela escrita. Contudo, ao longo do tempo, percebo que o interesse dos leitores tem diminuído consideravelmente. O feedback, que sempre foi um incentivo, se resume a comentários sobre publicações de autoria própria, muitas vezes nem isto, sem interações sobre os textos dos demais colaboradores ou autores pesquisados.

Manter um blog como este exige muito trabalho, pesquisa e dedicação. É um esforço que envolve tempo e paixão e, embora seja feito de forma gratuita, também exige uma valorização que atualmente não tenho sentido. A falta de retorno e de estímulo me levou à conclusão de que é hora de repensar a presença dele. 

Com mais de 17 mil publicações e a participação de milhares de escritores e poetas, sinto que a mensagem ainda pode ecoar, mas não da forma que imagino, com a minha participação. Esta decisão não é fácil, mas acredito que é necessária, para que possa preservar o que construí com tanto carinho.

A partir de agora, o blog continuará ativo, mas com publicações esporádicas. 

Agradeço profundamente a todos que fizeram parte dessa jornada, leitores, colaboradores e amigos. Espero que o conteúdo já publicado continue a inspirar e encantar aqueles que buscam na arte da palavra um refúgio e uma forma de expressão.

Com gratidão e carinho,

José Feldman
Criador, organizador e pesquisador

sábado, 22 de novembro de 2025

Asas da Poesia * 134 *


Soneto de
AMILTON MACIEL MONTEIRO
São José dos Campos/SP

Parte de nós

Criar poema é qual plasmar um filho;
lhe damos todo o amor que houver na gente,
mas, depois que soltamos seu anilho,
quem toma conta dele... é o Onipotente.

Também, quando criamos sonetilho,
queremos que ele seja convincente,
correto, puro e tenha certo brilho;
... nem sempre ocorre isso, infelizmente.

Mas não importa. O que conta é só amá-lo!
Quer fique lindo, ou mesmo um pouco feio,
de porte soberano, ou de vassalo;

Pois é parte de nós, porção de amor,
que quisemos doar ao nosso meio,
por vocação do próprio Criador!
= = = = = = = = =  

Soneto de
MÁRCIO CATUNDA
Fortaleza/ CE

O filho pródigo

Chega das noites doidas da orgia
E bate à porta da casa paterna.
O pai o abraça, em transe de alegria.
Faz festa, abre as arcas e a cisterna.

O irmão protesta daquela folia,
Em prol de um frequentador de taberna.
Mas o pai, reprovando-lhe a ousadia,
Declara com argúcia sempiterna;

Ele estava perdido e veio a mim,
Buscando arrimo, querendo guarida
E no encontro nasceu-lhe nova vida.

Que o caminho de casa seja assim
Como colheita de estrada florida,
De rosa, de gerânio e de jasmim.
= = = = = = = = =  

Soneto de
ROBERTO COELHO
Fortaleza/CE

Onde florescem os sonhos

Onde realmente florescem os sonhos?
Quais caminhos permeia a fantasia?
Certamente tudo perpassa, suponho,
Pelo mistério e magia pura da poesia.

E nessa espera, buscamos mil estrelas,
muito acima das adormecidas cidades,
na tentativa desesperada de colhê-las,
e ficarmos mais próximos da felicidade.

Dizem; pela manhã os sonhos florescem,
à noite aos enamorados também aquecem,
suaves como uma doce canção de ninar.

Enquanto isso, brincamos de profetas,
pensamos e sonhamos como poetas,
numa vontade incontrolável de amar.
= = = = = = = = =  

Sextilha de
THALMA TAVARES
São Simão/SP

É teimoso meu velho coração!...
Aos menores trinados da poesia
ele esquece que deve se aquietar
e, ansioso, cedendo  a euforia
vai feliz capengando ao entrevero,
com coragem, com fé, com ousadia.
= = = = = = = = =  

Soneto de
ALBERTO DE OLIVEIRA
Palmital de Saquarema/RJ (1857-1937) Niterói/RJ

Lendo os antigos

Vamos reler Teócrito, senhora,
Ou, se lhe apraz, de Teos o citaredo;
Olhe a verdura aqui deste arvoredo
À beira da água... E o sol que desce agora.

Lécio, o pastor, nesta colina mora,
Onde as cabras ordenha. Este silvedo
Guarda de Umbrano à flauta a voz canora,
Como este arbusto a Títiro o segredo.

Esta água... Olhe, porém, como é tão pura
Esta água! O chão de nítidas areias,
Plano, igualado, límpido fulgura;

E tão claro é o cristal que, abrindo o louro
Cabelo, em grupo trêmulas sereias
Se veem lá em baixo neste fundo de ouro.
= = = = = = = = =  

Haicai de
LEILA MICCOLIS
Rio de Janeiro/RJ

A abelha tristonha,
fauna e flora devastadas,
produz mel amargo.
= = = = = = = = =  

Poema de
ANTONIO AGOSTINHO GOMES DE QUEIRÓS
Belo Horizonte/MG

Desenho 

Finda-se o dia. 
Linda! abre-se a noite estrelada.
Brisa perfumada passeia pela prata;
Profetisa a chegada da primavera.

Homens jogam damas;
Consomem o tempo desfiando tramas.
Moles mulheres tricotam mazelas;
Reles fiapos do dia.

Vida tal qual tartaruga;
Lida enfadonha, cansativa.
Qual sentido tem essa vida;
Tal não fosse acredita-la?

Cidade pequena... sem muitas ambições;
Felicidade aqui? um arco-íris.
Desconhece as tramas dos grandes centros;
Acontece, somente!
= = = = = = = = =  

Trova Popular

Naquela noite saudosa        
quando de ti me apartei, 
cem passos não eram dados
quando sem alma fiquei.
= = = = = = = = =  

Poema de
MÁRIO QUINTANA
Alegrete/RS (1906 – 1994) Porto Alegre/RS

Alma errada

Há coisas que a minha alma, já mortificada não admite:
assistir novelas de TV
ouvir música Pop
um filme apenas de corridas de automóvel
uma corrida de automóvel num filme
um livro de páginas ligadas
porque, sendo bom, a gente abre sofregamente a dedo:
espátulas não há... e quem é que hoje faz questão de virgindades...
E quando minha alma estraçalhada a todo instante pelos telefones
fugir desesperada
me deixará aqui,
ouvindo o que todos ouvem, bebendo o que todos bebem,
comendo o que todos comem.
A estes, a falta de alma não incomoda. 
(Desconfio até que minha pobre alma fora destinada 
ao habitante de outro mundo).
E ligarei o rádio a todo o volume,
gritarei como um possesso nas partidas de futebol,
seguirei, irresistivelmente, o desfilar das grandes paradas do Exército.
E apenas sentirei, uma vez que outra,
a vaga nostalgia de não sei que mundo perdido…
= = = = = = = = =  

Poema de
VANICE ZIMERMAN
Curitiba/PR

Inspiração

Tua linda inspiração:
Filigranas em poesia
São centelhas do coração,
Inefável poesia…
= = = = = = = = =  

Triverso de
MILLÔR FERNANDES
Rio de Janeiro/RJ, 1923-2012

Com que habilidade
Você estraga
Qualquer felicidade!
= = = = = = = = =  

Poema de
ATÍLIO ANDRADE
Curitiba/PR

Arrebol

Naquele arrebol distante
Daquela manhã risonha
Depositei meus sonhos
Abraçando as saudades
E beijando as distâncias
= = = = = = = = =  

Poema de
FERNANDO PESSOA
Lisboa/Portugal, 1888 – 1935

Presságio

O amor, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar pra ela,
Mas não lhe sabe falar.

Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há de dizer.
Fala: parece que mente…
Cala: parece esquecer…

Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
Pra saber que a estão a amar!

Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!

Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar…
= = = = = = = = =  

Soneto de
AMAURY NICOLINI
Rio de Janeiro/RJ

Chuva Interior

A chuva cai, lavando estas calçadas,
molhando as plantas de toda a minha rua
como se fosse levando na enxurrada
até o próprio reflexo da lua.

Essa chuva afinal é benfazeja,
e não demora a cessar, serena e mansa,
para que a noite de novo calma esteja
e permita aquele sono de criança.

Tenho inveja da chuva e suas águas,
que colocam no calor um pouco o fim
nesta nova temporada de verão.

Enquanto eu enfrento minhas mágoas,
que chovem sem parar dentro de mim
e acabam me afogando o coração.
= = = = = = = = =  

Poema de 
JÉRSON BRITO
Porto Velho/RO

Nos Braços do Amazonas

Rabiscando matagais
Com as águas colossais,
Meu Rio Madeira avanças.
Distritos, cidades, vilas
Festam enquanto desfilas,
Apreciam essas danças.

Nas tuas sendas incríveis
Despencas pelos desníveis
Em teu caminho encontrados.
No colo de teus banzeiros
Lá vão troncos e barqueiros
Por teu céu emoldurados.

À frente, finda o roteiro
Num abraço derradeiro
Com o gigante do Norte.
O Amazonas te devora
E, Madeira, nessa hora,
Confundem-se amor e morte...
= = = = = = = = =  

Glosa de
GISLAINE CANALES
Herval/RS, 1938 – 2018, Porto Alegre/RS

Alma do cosmos

MOTE:
Quando à noite, o infinito se levanta
à luz do luar, pelos caminhos quedos
minha tátil intensidade é tanta
que eu sinto a alma do cosmos nos meus dedos!
(Quarteto do soneto: AO LUAR)
Augusto dos Anjos
Cruz do Espírito Santo/PB, 1884 – 1914, Leopoldina/MG

GLOSA:
Quando à noite, o infinito se levanta
e surge em seus abraços com as estrelas,
eu sinto, dentro em mim, algo que canta,
que canta, então, feliz por poder vê-las!

Segue minha alma, assim, pura alegria,
à luz do luar, pelos caminhos quedos.
Vai respirando a Lua, que é poesia
e realizando os seus desejos ledos!

Essa beleza fascinante, encanta
e nesse doce sonho-encantamento,
minha tátil intensidade é tanta
que eu aspiro, a verdade do momento!

Faço da Lua, então, a minha amante,
repartindo com ela, meus segredos,
e, tão contente, fico neste instante,
que eu sinto a alma do cosmos nos meus dedos!
= = = = = = = = =  

Hino de 
Rio Tinto/PB

De um córrego surgiu seu grande nome
Sobre as águas vermelhas a correr
Do engenho com início de ventura
Diz a história de um povo a crescer
Hoje estás de fronte erguida para o alto
Desfrutando seus sonhos desejados
Com orgulho bradamos em prece
Rio Tinto és o símbolo do nordeste.

Salve ó terra de um povo desejoso
Ao trabalho unidos a lutar
Levantando com impulso da coragem
Hoje vemos sua bandeira desfraldar. (Bis)

Hoje a árvore que te fez com grande impulso
Hoje és branco tal qual a sua flor
Homenagem sinceras desejamos
A quem teve seu início e te criou
Rio Tinto hoje vives na história
Reina sempre no céu o seu fulgor
Prende a brisa a segura luz da aurora
Rio Tinto és a fonte do amor.
= = = = = = = = =  

Soneto de 
CECIM CALIXTO
Pinhalão/PR (1926 – 2008) Tomazina/PR

Colheita da fé

É pouca chuva! E o sol sem dó castiga
a terra arada que semente espera.
A luta insana não lhe traz fadiga
e nem fenece a singular quimera.
.
A vocação não lhe sugere briga
e nem o ódio o coração verbera.
Chuva madrinha há de lhe dar a espiga
que no paiol o dissabor supera.
.
Vai à capela e de emoção se agita
e ao Lavrador que lá no céu habita
em pranto implora tudo a nova empreita.
.
E a chuva cai… tão silenciosa veio…
para alegria do celeiro cheio
e à gratidão pela integral colheita.
= = = = = = = = =  

Fábula em Versos de
JEAN DE LA FONTAINE
Château-Thierry/França, 1621 – 1695, Paris/França

O carreteiro atolado

Por caminho apaulado,
Mui barrento e mal gradado,
O seu carro conduzia,
Que trazia
De erva e feno carregado,
Inesperto carreteiro:
Por incúria o desgraçado
Num grandíssimo atoleiro
Enterrar deixou seu gado:
Era longe o povoado,
E não vinha caminheiro
Que o ajudasse e lhe acudisse:
De aflição desesperado,
Se maldisse!
E exclamou todo inflamado:
«Vem, ó Hércules sagrado,
Acudir-me pressuroso;
Pois que já sobre o costado
Sustentaste o céu formoso,
O teu braço vigoroso
Se me acode,
Este carro tirar pode
Do atoleiro.»
Deste modo se carpia
O carreiro,
Quando ouviu uma voz forte,
Que não longe lhe dizia
Desta sorte:
«Se quiseres que te valha,
Mandrião, lida, trabalha,
Examina donde vem
Esse estorvo que te encalha,
Ou detém:
Salta acima desse carro,
E tirando-lhe um fueiro,
De redor lhe arreda o barro;
Bota pedras no atoleiro,
Calça as rodas, e depois
Põe-te à frente, e pica os bois.»

Tudo fez o carreteiro
Que lhe tinham ensinado;
E ficou muito pasmado,
Quando viu surdir avante
O seu carro do lameiro:

«É milagre, exclamou logo,
Ouviu Hércules prestante
O meu rogo,
E evitou-me o precipício!»

Acabando
De falar apenas ia,
Outra voz, em tom mais brando,
Lhe dizia:
«Confiar na Providência
Para obter o que intentamos
Sem que os meios lhe ponhamos,
É demência.
Nada obtém quem não procura;
Que foi sempre a diligência
Mãe da sólida ventura.
= = = = = = = = =  

Sebastião de Magalhães Lima (Um dia de noivado)

(A F. Simões Margiochi Junior)

Ahi! null'altro che pianto al mondo dura! 
Francesco Petrarca (Itália, 1304 – 1374)

Ai! Neste mundo só as lágrimas não têm termo!

Cantai, ternos passarinhos; voai, mariposas gentis!

É dia de noivado!

Rejubile a natureza; reviva, resplandeça a festa!...

Folgam auras indiscretas nos choupais e nos silvedos! Tudo acode, sem delonga, ao banquete dos bem-aventurados! A aldeia exulta de vivaz festejo! É vivo o reboliço: grinaldas de flores, perolas e diamantes, tudo, à porfia, deslumbra os convivas!

Que doce aroma! Que suave fragrância!

Visão alada, mensageiro fiel do homem — o amor —, conforta o desgraçado e sorri á opulência. Expelem-se os cuidados, apavoram-se os temores, rejuvenesce a humanidade!

Dia de solene bem-aventurança! — eu quero colorir teu quadro ingente, juncar de variadas cores teu solo matizado!...

A nove quilômetros de Aveiro existe a pitoresca vila de Eixo. É uma deliciosa povoação! O Volga espraia ali mansamente suas límpidas águas, formando como que um vasto lençol, por entre os formosos salgueirais, que lhe servem de margem e curiosa graciosidade!

Há um não sei quê de vago e simpático nos seus ignotos caminhos, tão cheios de divina poesia e mágica formosura, que nos seduz instintivamente. Em todos os países há destas pequenas povoações, mais ou menos diletas do povo, e que parecem ter sido apontadas adrede para a representação dos grandes dramas da humanidade. E esta foi realmente uma delas, como abaixo veremos!

Há de haver dez anos, Eixo trajava de galas. A solidão transformara-se subitamente em meigo teatro de harmonia e saudade. Os habitantes como que ressuscitavam do seu antigo marasmo. Desvaneciam-se as trevas do sepulcro, perante o vivo esplendor de uma aurora deslumbrante!

Era um dia de festa, enfim, dia de noivado, santo alvoroço, cândida alegria!

Fernando, o moço querido da terra, desposara Luíza, a jovem e simpática aldeã. E foi deveras uma abnegação suprema aquele enlace divino! Fernando possuía a riqueza do espírito e a riqueza do dinheiro.

Era uma joia!

Luíza, essa, coitadinha! limitava seus parcos cabedais à rara e quase esquecida opulência dos grandes sentimentos e vivas impressões. Amava com ardente intensidade.

Era uma pérola!

Fernando era tão amado, tão louvado! Ai! Senhor! Que tesouro aquele!...

Na sua frequente passagem pelas ruas da vila, os lavradores descobriam-se respeitosamente. Depois lá se ficavam longos momentos a cismar, até que por fim, diziam eles de si para si: — Pombinha sem fel! — e seguiam o seu rumo.

Luíza granjeara a piedosa dedicação das suas patrícias. Era em extremo filantrópica, e de muitas conseguira ela até a sincera veneração de santinha, que realmente era.

Quando, por acaso, se falava em Luíza, aquela pobre gente d'aldeia, esta retorquia logo com vivo interesse: — Ai! a Luizinha! A noiva do sr. Fernandinho! isso é mesmo um anjo, meu senhor! E ele, que bondade, que ternura! É mesmo ouro sobre azul!...

Imagine-se pois, que mágico fulgor não irradiariam aquelas duas ternas criaturinhas, ao estreitarem seus amorosos corações pelos vínculos indissolúveis do matrimônio!...

Que santa aliança aquela, meu Deus! Que inocente festa não ia pela vila!...

Tudo folgava, tudo amava, tudo vivia!...

Apenas o mancebo saíra da igreja, levando sua angélica esposa pelo braço, imediatamente, daquele enorme conjunto de povo, apinhado em massa pelas ruas da vila, para assistir ao brilhante cortejo, rompeu a mais solene aclamação, o mais entusiástico viva.

Fernando respondia com lágrimas, que simbolizavam o entusiasmo e a gratidão. Luíza, por sua parte, julgara-se guindada a um paraíso de fadas, onde a vida se assemelha ao grato arroio escoando-se de mansinho por entre as mil verduras e fragrâncias da natureza.

Porém surgira a noite, e suas sombras temerosas, até ali ocultas pelo brilho das luzes, invadiram a mesma área que, horas antes, fora povoada pelos raios diamantinos de encantamento mágico e verdadeiro prazer!

No dia imediato ao de seu noivado, Fernando despertara triste e pesaroso; isolara-se voluntariamente de sua esposa, e aparecera envolvido em profundo meditar. Os restos da sua primitiva alegria haviam-se-lhe convertido medonhamente num oceano de torturas. Os sons melodiosos da orquestra nupcial eram agora para ele um motivo de pungente agonia e de atroz suplício. Silvavam-lhe no cérebro as negras víboras da loucura. Era forçoso afastar de si o vil e gélido fantasma que o perseguia sem cessar.

Assim se passaram muitos e longos dias. Todos indagavam solicitamente a causa de tão inesperada catástrofe, de tão cruel agitação e, todavia, ninguém ousava responder, ninguém proferia sequer uma palavra.

Fernando corria todas as tardes os sítios recônditos da vila. Com os cabelos eriçados, a lividez nas faces, o olhar cintilante, as mãos nervosas, os punhos sempre cerrados, lá ia o pobre doido, o desgraçado moço — para quem a fortuna fora um sonho falaz de alguns momentos apenas — a conversar com as árvores, que tanta vez lhe ouviram seus queixumes de amor, — a ralhar com o plácido regato, que o atormentava ferozmente, — a rir-se, enfim, de si mesmo, da descompostura do seu traje, das suas palavras!...

E era tremenda e pavorosa a sua gargalhada!...

Luíza conquistara a par da ciência do amor, a ciência da resignação, por isso vivia, e suportava o agudo espinho que lhe trespassava o coração.

Um dia, em que intentara aproximar-se de seu marido, este repelira energicamente sua mão, e sem dó nem piedade fugira para longe de suas caricias e afagos!

Estavam as coisas neste ponto, quando Fernando foi acometido de um delírio mais violento e doloroso. A sua constante monomania, o seu desejo incessante, era assassinar todas as mulheres que, por acaso, encontrava. Tornou-se mister o auxilio de toda aquela gente para o encerrar cautelosamente num quarto subterrâneo, onde lhe era ministrada a comida que mal provava.

No auge da loucura, conheceu-se então, a causa do seu infortúnio, por alguns poucos monólogos, que ele soltava de quando a quando, tais como este:

— Ser eu feliz, alegre, bom, dócil, amar uma mulher ternamente, com a intensidade de um serafim, e ver-me tristemente iludido por esse demônio maldito!... Oh!... por Deus! nem pensar nisso!...

E aquela víbora, aquela Lui... i... — Ai! Senhor! Senhor! Seja o seu nome para sempre esquecido! — A ostentar tamanho pudor, tamanha virgindade e honestidade, e tudo com o hipócrita fim de me amortalhar covardemente!...

E toda a gente a acreditava piamente; sim! Todo o mundo, até eu!...

Eterna maldição sobre o desgraçado, que foi procurar na mulher, que escolhera para esposa, a desonra da sua própria família!...

Ha! Ha! Ha!...

E nisto o desventurado moço soltava uma cínica gargalhada!

Frequentemente repetia ele o nome de sua esposa, uma e muitas vezes, e logo após, num ato de medonho desespero, chorando desabridamente, arrancava de si um punhado de cabelos ensanguentados, e arrojava-se no lajeado do cárcere.

E eram bem tristes as suas lágrimas, bem acerbo o seu pranto!

Pobre Fernando! Quem não teria pena de ti?!...

Um ano decorrido exatamente desde o dia em que se havia festejado o noivado de Fernando e Luíza — pelas ruas da pequena e triste povoação seguia compassadamente um fúnebre préstito.

O doido havia cessado de existir naquela madrugada!...

Mal julgara aquela gente, que tivera ido brindar tão esplêndido noivado — que tão cedo havia de acompanhar o cadáver do simpático Fernando à sua derradeira morada!

É assim o infortúnio deste mundo!...

A coroa de grinaldas, essa desfizera-a o vento desapiedadamente! Hoje só restam coroas de perpetuas, e alguns goivos tristemente derramados sobre a ignota lousa do desditoso mancebo!

Luíza vive resignada, e lá vai lavrando cotidianamente o epitáfio, que há de guarnecer a laje sepulcral de seu marido, com as sinceras e ardentes lágrimas da saudade e do arrependimento! Aguarda pacientemente a hora da sua partida para ir fruir no céu aquilo que lhe foi vedado na terra!

Deus é compassivo, e de certo não olvidará a sua redenção celeste!…
= = = = = = = = =  = = = = = = = = =  = = = = 
Sebastião de Magalhães Lima nasceu em Santos/SP em 1850 e faleceu em Lisboa/Portugal em 1928. Foi advogado, jornalista, político, escritor, fundador da Liga Portuguesa dos Direitos do Homem e dos jornais "O Século" e "Comércio de Portugal". Republicano, maçon e pioneiro do socialismo português, fez parte da Geração de 70 e dirigiu os periódicos republicanos "A Folha do Povo" e "A Vanguarda". Em 1909 foi indicado para o Prémio Nobel da Paz e em 1919 foi Grã-Cruz da Ordem Militar da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito. Foi grão-mestre do Grande Oriente Lusitano Unido, com o mais longo mandato na história maçónica portuguesa, de 1907 até 1928. Magalhães Lima estreou-se como escritor publicando, durante os seus anos iniciais de estudo em Coimbra, um conjunto de obras de pendor romântico, com títulos como Miniaturas românticas, Martírio de um anjo, Amour et Champagne ou Um drama íntimo. Tais obras, inseridas na corrente tardia do romantismo português, não faziam adivinhar o apologista do republicanismo revolucionário em que o seu jovem autor se transformaria.

Fontes:
Sebastião de Magalhães Lima. Miniaturas românticas. Publicado originalmente em 1871. Disponível em Domínio Público.