Voilà ce que l'on dit de moi
Dans la “Gazette de Hollande”.
Muito custa uma notícia!
Que ofício! E nada aparece,
Que canseira e que perícia!
Que andar desde que amanhece!
E tu, leitor sem entranhas,
Exiges mais, e não vês
Como perdemos as banhas
Em te dar tudo o que lês.
És assim como um janota
De maneiras superfinas,
Que não sabe o preço à bota
Com que cativa as meninas.
Agora mesmo, buscando
Saber de associação
Que se deu ao venerando
Ofício de proteção
Aos animais — não sabia
Onde achasse os documentos
Dessa obra de simpatia,
Para transmiti-la aos ventos.
Achei quatrocentas atas
De reuniões semanais,
Ofícios, notas e datas,
Tudo espalhado em jornais.
Mas das ações praticadas
Em favor da bicharia,
E das vitórias ganhadas,
Nada disso conhecia.
Então lembrei-me de um burro,
Sujeito de algum valor,
Nem grosseiro nem casmurro,
Menos burro que o senhor.
E pensei: “Naturalmente
Traz toda a historia sabida;
É burro, há de ter presente
A proteção recebida”
Lá fui. O animal estava
Em pé, com os olhos no chão,
Tinha um ar de quem cismava
Cousas de ponderação.
Que cousas, porém, que assunto
Tão grave, tão demorado,
Ocupava o seu bestunto,
Nada lhe foi perguntado.
Talvez, ao ver-se assim magro,
Cativo como um nagô,
Pensasse no velho onagro,
Que foi seu décimo avô.
Entrei, dizendo-lhe a causa
Daquela minha visita;
Ele, depois de uma pausa,
Como gente que medita,
Respondeu-me: — Em frases toscas
Mas verdadeiras, direi,
Enquanto sacudo as moscas,
Tudo o que sobre isto sei.
Juro-te que a sociedade,
Contra os nossos sofrimentos,
Tem obras de caridade,
Tem leis, tem regulamentos.
Tem um asilo, obra sua,
Belo, forte, amplo e capaz;
Já se não morre na rua,
Dá-se ali velhice e paz.
Gozam dessa benta esmola,
Em seus quartos separados,
Mais de uma onça espanhola,
E muitos gatos-pingados.
Todos os galos na testa
Acham lá milho e afeição;
Lá vive tudo o que resta
Da burra de Balaão.
Mora ali a vaca fria.
E mais a cabra Amaltéia,
Única e só companhia
Do pobre leão de Neméia.
Não posso fazer elipse
Dos bichos caretas, nem
Da besta do Apocalipse,
Que ali seu abrigo têm.
E o cisne de Leda, e um bode
Expiatório, e o cavalo
De Tróia, escapar não pode;
Mas há outros que inda calo.
Peguei no papel, e a lápis
Escrevi tudo, e escrevi
Mais o nome do boi Ápis,
Que ele inda me disse ali.
E perguntei: — Meu amigo,
Por que é que a tantos amaina
O tempo, naquele abrigo,
E você anda na faina?
Ele, burro circunspecto,
Asno de boa feição,
Tirou de fino intelecto
Esta profunda razão:
— Se eu estivesse ali junto
Com outros da minha banda,
Você não tinha este assunto
Para a “Gazeta de Holanda”.
Vá consolado: que importa
Que eu viva cá fora ou lá?
Qualquer porta há de ser porta,
Para sair; vá, vá, vá.
E enquanto assim me dizia
frases que chamava toscas,
Chagas de pancadaria
Iam convidando as moscas.
Lá o deixei como estava,
Em pé, com os olhos no chão,
Parecendo que cismava
Cousas de ponderação.
Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.
Dans la “Gazette de Hollande”.
Muito custa uma notícia!
Que ofício! E nada aparece,
Que canseira e que perícia!
Que andar desde que amanhece!
E tu, leitor sem entranhas,
Exiges mais, e não vês
Como perdemos as banhas
Em te dar tudo o que lês.
És assim como um janota
De maneiras superfinas,
Que não sabe o preço à bota
Com que cativa as meninas.
Agora mesmo, buscando
Saber de associação
Que se deu ao venerando
Ofício de proteção
Aos animais — não sabia
Onde achasse os documentos
Dessa obra de simpatia,
Para transmiti-la aos ventos.
Achei quatrocentas atas
De reuniões semanais,
Ofícios, notas e datas,
Tudo espalhado em jornais.
Mas das ações praticadas
Em favor da bicharia,
E das vitórias ganhadas,
Nada disso conhecia.
Então lembrei-me de um burro,
Sujeito de algum valor,
Nem grosseiro nem casmurro,
Menos burro que o senhor.
E pensei: “Naturalmente
Traz toda a historia sabida;
É burro, há de ter presente
A proteção recebida”
Lá fui. O animal estava
Em pé, com os olhos no chão,
Tinha um ar de quem cismava
Cousas de ponderação.
Que cousas, porém, que assunto
Tão grave, tão demorado,
Ocupava o seu bestunto,
Nada lhe foi perguntado.
Talvez, ao ver-se assim magro,
Cativo como um nagô,
Pensasse no velho onagro,
Que foi seu décimo avô.
Entrei, dizendo-lhe a causa
Daquela minha visita;
Ele, depois de uma pausa,
Como gente que medita,
Respondeu-me: — Em frases toscas
Mas verdadeiras, direi,
Enquanto sacudo as moscas,
Tudo o que sobre isto sei.
Juro-te que a sociedade,
Contra os nossos sofrimentos,
Tem obras de caridade,
Tem leis, tem regulamentos.
Tem um asilo, obra sua,
Belo, forte, amplo e capaz;
Já se não morre na rua,
Dá-se ali velhice e paz.
Gozam dessa benta esmola,
Em seus quartos separados,
Mais de uma onça espanhola,
E muitos gatos-pingados.
Todos os galos na testa
Acham lá milho e afeição;
Lá vive tudo o que resta
Da burra de Balaão.
Mora ali a vaca fria.
E mais a cabra Amaltéia,
Única e só companhia
Do pobre leão de Neméia.
Não posso fazer elipse
Dos bichos caretas, nem
Da besta do Apocalipse,
Que ali seu abrigo têm.
E o cisne de Leda, e um bode
Expiatório, e o cavalo
De Tróia, escapar não pode;
Mas há outros que inda calo.
Peguei no papel, e a lápis
Escrevi tudo, e escrevi
Mais o nome do boi Ápis,
Que ele inda me disse ali.
E perguntei: — Meu amigo,
Por que é que a tantos amaina
O tempo, naquele abrigo,
E você anda na faina?
Ele, burro circunspecto,
Asno de boa feição,
Tirou de fino intelecto
Esta profunda razão:
— Se eu estivesse ali junto
Com outros da minha banda,
Você não tinha este assunto
Para a “Gazeta de Holanda”.
Vá consolado: que importa
Que eu viva cá fora ou lá?
Qualquer porta há de ser porta,
Para sair; vá, vá, vá.
E enquanto assim me dizia
frases que chamava toscas,
Chagas de pancadaria
Iam convidando as moscas.
Lá o deixei como estava,
Em pé, com os olhos no chão,
Parecendo que cismava
Cousas de ponderação.
Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.
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