Por mim, e por vós, e por mais
aquilo
que está onde as outras coisas
nunca estão
deixo o mar bravo e o céu
tranqüilo:
quero solidão.
Meu caminho é sem marcos nem
paisagens.
E como o conheces ? - me
perguntarão. -
Por não Ter palavras, por não ter
imagem.
Nenhum inimigo e nenhum irmão.
Que procuras ?
Tudo.
Que desejas ?
Nada.
Viajo sozinha com o meu coração.
Não ando perdida, mas
desencontrada.
Levo o meu rumo na minha mão.
A memória voou da minha fronte.
Voou meu amor, minha imaginação
...
Talvez eu morra antes do
horizonte.
Memória, amor e o resto onde
estarão?
Deixo aqui meu corpo, entre o sol
e a terra.
(Beijo-te, corpo meu, todo
desilusão !
Estandarte triste de uma estranha
guerra ... )
Quero solidão.
DIA DE CHUVA
As espumas desmanchadas
sobem-me pela janela,
correndo em jogos selvagens
de corça e estrela.
Pastam nuvens no ar cinzento:
bois aéreos, calmos, tristes,
que lavram esquecimento.
Velhos telhados limosos
cobrem palavras, armários,
enfermidades, heroísmos...
quem passa é como um funâmbulo,
equilibrado na lama,
metendo os pés por abismos...
Dia tão sem claridade!
só se conhece que existes
pelo pulso dos relógios...
Se um morto agora chegasse
àquela porta, e batesse,
com um guarda-chuva escorrendo,
e com limo pela face,
ali ficasse batendo
- ali ficasse batendo
àquela porta esquecida
sua mão de eternidade...
Tão frenético anda o mar
que não se ouviria o morto
bater à porta e chamar...
E o pobre ali ficaria
como debaixo da terra,
exposto à surdez do dia.
Pastam nuvens no ar cinzento.
Bois aéreos que trabalham
no arado do esquecimento.
É PRECISO NÃO ESQUECER NADA
É preciso não esquecer nada:
nem a torneira aberta nem o fogo
aceso,
nem o sorriso para os infelizes
nem a oração de cada instante.
É preciso não esquecer de ver a
nova borboleta
nem o céu de sempre.
O que é preciso é esquecer o
nosso rosto,
o nosso nome, o som da nossa voz,
o ritmo do nosso pulso.
O que é preciso esquecer é o dia
carregado de atos,
a idéia de recompensa e de
glória.
O que é preciso é ser como se já
não fôssemos,
vigiados pelos próprios olhos
severos conosco,
pois o resto não nos pertence.
DOS CRAVOS ROXOS
Esta noite, quando, lá fora,
campanários tontos bateram
doze vezes o apelo da hora,
na minha jarra, onde a água
chora,
meus dois cravos roxos
morreram...
Meus dois cravos roxos morreram!
Meus dois cravos roxos defuntos,
são como beijos que sofreram,
como beijos que enlouqueceram
porque nunca vibraram juntos...
São como a sombra dolorida
de olhos tristes, que se perderam
nas extremidades da vida...
Oh! miséria da despedida...
Meus dois cravos roxos
morreram...
Meus dois cravos roxos morreram!
Meus dois cravos roxos, fanados,
crepuscularam, faleceram,
como sonhos que se esqueceram,
alta noite, de olhos fechados...
Eu pensava numa criatura,
quando os campanários bateram...
Tudo agora se me afigura
irremediável desventura...
Irremediável desventura!
Meus dois cravos roxos morreram…
LAMENTO DO OFICIAL POR SEU CAVALO
MORTO
Nós merecemos a morte,
porque somos humanos e a guerra é
feita pelas nossas mãos,
pela nossa cabeça embrulhada em
séculos de sombra,
por nosso sangue estranho e
instável, pelas ordens
que trazemos por dentro, e ficam
sem explicação.
Criamos o fogo, a velocidade, a
nova alquimia,
os cálculos do gesto,
embora sabendo que somos irmãos.
Temos até os átomos por
cúmplices, e que pecados
de ciência, pelo mar, pelas
nuvens, nos astros!
Que delírio sem Deus, nossa
imaginação!
E aqui morreste! Oh, tua morte é
a minha, que, enganada,
recebes. Não te queixas. Não
pensas. Não sabes. Indigno,
ver parar, pelo meu, teu
inofensivo coração.
Animal encantado - melhor que nós
todos!
- que tinhas tu com este mundo
dos homens?
Aprendias a vida, plácida e pura,
e entrelaçada
em carne e sonho, que os teus
olhos decifravam...
Rei das planícies verdes, com
rios trêmulos de relinchos...
Como vieste morrer por um que
mata seus irmãos!
MULHER AO ESPELHO
Hoje que seja esta ou aquela,
pouco me importa.
Quero apenas parecer bela,
pois, seja qual for, estou morta.
Já fui loura, já fui morena,
já fui Margarida e Beatriz.
Já fui Maria e Madalena.
Só não pude ser como quis.
Que mal faz, esta cor fingida
do meu cabelo, e do meu rosto,
se tudo é tinta: o mundo, a vida,
o contentamento, o desgosto?
Por fora, serei como queira
a moda, que me vai matando.
Que me levem pele e caveira
ao nada, não me importa quando.
Mas quem viu, tão dilacerados,
olhos, braços e sonhos seus
e morreu pelos seus pecados,
falará com Deus.
Falará, coberta de luzes,
do alto penteado ao rubro
artelho.
Porque uns expiram sobre cruzes,
outros, buscando-se no espelho.
MONÓLOGO
Para onde vão minhas palavras,
se já não me escutas?
Para onde iriam, quando me
escutavas?
E quando me escutaste? - Nunca.
Perdido, perdido. Ai, tudo foi
perdido!
Eu e tu perdemos tudo.
Suplicávamos o infinito.
Só nos deram o mundo.
De um lado das águas, de um lado
da morte,
tua sede brilhou nas águas
escuras.
E hoje, que barca te socorre?
Que deus te abraça? Com que deus
lutas?
Eu, nas sombras. Eu, pelas
sombras,
com as minhas perguntas.
Para quê? Para quê? Rodas tontas,
em campos de areias longas
e de nuvens muitas.
PUS O MEU SONHO NUM NAVIO
Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
depois abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar.
Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre dos meus
dedos
colore as areias desertas
O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho dentro de um navio...
Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.
Depois, tudo estará perfeito:
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.
SONHOS DA MENINA
A flor com que a menina sonha
está no sonho?
ou na fronha?
Sonho
risonho:
O vento sozinho
no seu carrinho.
De que tamanho
seria o rebanho?
A vizinha
apanha
a sombrinha de teia de aranha...
Na lua há um ninho
de passarinho.
A lua com que a menina sonha
é o linho do sonho
ou a lua da fronha?
NOTURNO
Quem tem coragem de perguntar, na
noite imensa?
E que valem as árvores, as casas,
a chuva, o pequeno transeunte?
Que vale o pensamento humano,
esforçado e vencido,
na turbulência das horas?
Que valem a conversa apenas
murmurada,
a erma ternura, os delicados
adeuses?
Que valem as pálpebras da tímida
esperança,
orvalhadas de trêmulo sal?
O sangue e a lágrima são pequenos
cristais sutis,
no profundo diagrama.
E o homem tão inutilmente
pensante e pensado
só tem a tristeza para
distingui-lo.
Porque havia nas úmidas paragens
animais adormecidos, com o mesmo
mistério humano:
grandes como pórticos, suaves
como veludo,
mas sem lembranças históricas,
sem compromissos de viver.
Grandes animais sem passado, sem
antecedentes,
puros e límpidos,
apenas com o peso do trabalho em
seus poderosos flancos
e noções de água e de primavera
nas tranqüilas narinas
e na seda longa das crinas
desfraldadas.
Mas a noite desmanchava-se no
oriente,
cheia de flores amarelas e
vermelhas.
E os cavalos erguiam, entre mil
sonhos vacilantes,
erguiam no ar a vigorosa cabeça,
e começavam a puxar as imensas
rodas do dia.
Ah! o despertar dos animais no
vasto campo!
Este sair do sono, este continuar
da vida!
O caminho que vai das pastagens
etéreas da noite
ao claro dia da humana
vassalagem!
MURMÚRIO
Traze-me um pouco das sombras
serenas
que as nuvens transportam por
cima do dia!
Um pouco de sombra, apenas,
- vê que nem te peço alegria.
Traze-me um pouco da alvura dos
luares
que a noite sustenta no teu
coração!
A alvura, apenas, dos ares:
- vê que nem te peço ilusão.
Traze-me um pouco da tua
lembrança,
aroma perdido, saudade da flor!
- Vê que nem te digo - esperança!
- Vê que nem sequer sonho - amor!
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