61 — TIBICUERA, CRIA JUÍZO!
Relendo agora o que escrevi, vejo que minhas aventuras foram uma sucessão de guerras, revoltas, cenas doidas, conspirações, correrias e brutalidade.
Confesso que gostei de tudo isso e que sempre lutei com o maior prazer. Hoje sou um homem civilizado e sereno que não gosta de ver sangue, que não pratica a violência e que procura ter boa vontade, tolerância e compreensão para com o próximo.
Uma coisa que devo dizer. Enquanto eu andava dando tiros como um desesperado nos campos do Paraguai, nas coxilhas do Rio Grande e nos arredores de Montevidéu — havia em outras partes do mundo homens silenciosos e calmos que, metidos em seus laboratórios ou gabinetes, faziam maravilhosas excursões pelo país da Matemática, da Física, da Química, da Astronomia, da Biologia... Enquanto eu empunhava o fuzil eles manejavam o microscópio ou o telescópio. Minha espada cortava para matar; mas o bisturi dos médicos rasgava para salvar. Minha atenção estava concentrada nas máquinas de destruição; mas os homens calmos e silenciosos dos laboratórios estavam inventando máquinas não para destruir mas sim para construir. Em fins do século XVIII, enquanto eu olhava para as estrelas sem saber que fazer com minha vida, Pasteur, químico francês, lutava com os micróbios. Era uma guerra desigual: um homem contra bilhões de inimigos invisíveis a olho nu. Mas esse homem lutou e venceu. Em 1877 eu andava trocando pernas à toa pelas ruas do Rio, ouvindo os discursos dos republicanos e esperando notícias de novas revoltas contra o Império. Pois nesse mesmo ano, nos Estados Unidos, Thomas Alva Edison inventa o fonógrafo.
Voltando aos livros, tive ocasião de ler a vida dos grandes vultos da História: santos, inventores, descobridores, artistas... Tomei nota da data dos inventos e descobertas mais importantes da humanidade. Procurei me lembrar de minha situação nessas datas. O resultado quase sempre me foi desfavorável. É verdade que defendi muita causa justa, estive muitas vezes do lado do que era bom e decente. Mas devo confessar que estudando o quadro que aparece no capítulo seguinte, achei no fim um grande saldo contra mim.
E resolvi tomar juízo.
62 – PARALELO ENTRE OS GRANDES INVENTOS E MINHAS AVENTURAS
1439 – 1450
Johannes Gutemberg, na Alemanha, inventa a imprensa.
Não tinha nascido, mas seus avós já corriam por Pindorama, caçando, pescando, dançando, guerreando e comendo os inimigos.
1560 – 1603
William Gilbert, na Inglaterra, descobre o fenômeno elétrico.
Explode o último reduto dos invasores franceses no Rio de Janeiro (1560).
Até 1603: mistério da vida do herói.
1621
Lord Dudley, na Inglaterra, inventa o forno de ferro.
Nada fez de importante neste ano. Só conhecia o forno de barro.
1630
David Ramseye, na Inglaterra, descobre a maneira de utilizar o vapor.
Guerreia os holandeses como soldado de Matias de Albuquerque. Não tem a menor ideia de existência do vapor.
1643
Torricelli, na Itália, inventa o barômetro.
Cuida dos cavalos de Nassau. Só conhece dois barômetros: os burros e seus cabelos (dele, herói). Quando os primeiros se espojam no chão e os segundos se eriçam, a chuva é certa.
1709
Fahrenheit, em Dantzig, inventa o termômetro.
Toma parte em várias bandeiras. Época das explorações e das conquistas. A invenção do termômetro é muito oportuna.
1725
William Ged, na Escócia, inventa a estereotipia.
Este ano nada faz que se aproveite. Não tem notícia da existência da Escócia e muito menos do inventor Ged.
1752
Benjamin Franklin, nos Estados Unidos, inventa o para-raios
Um jequitibá da floresta, derrubado por um raio. Chegaste tarde, Benjamin!
1762
James Watt, na Escócia, inventa a máquina a vapor.
Os espanhóis jogam peteca com a Colônia do Sacramento. Tibicuera não faz absolutamente nada que preste.
1783
Os irmãos Montgolfier, na França, inventaram o balão a gás.
Continua impassível e inútil. Mas tem a glória de ter visto em 1709 as experiências feitas com aeróstato por Frei Bartolomeu de Gusmão, brasileiro nascido em Santos. 74 anos antes dos Montgolfier, Gusmão fez subir ao ar uma máquina aerostática!
1785
James Cartwright, na Inglaterra, inventa o tear mecânico.
Sempre a vagabundear. Não acredita em teares, porque ainda não se habituou bem ao uso de roupas...
1786
John Fitch, nos Estados Unidos, faz as primeiras experiências com um barco a vapor no Hudson.
Uma viagem de canoa pelo São Francisco. Rema, sua, esfalfa-se. Oh! Se Fitch tivesse chegado dez anos antes!
1787
Oliver Evans, nos Estados Unidos, inventa um veículo a vapor que pode ser considerado o tataravô do automóvel.
Entra em Vila Rica montado num burro e não chama a atenção. Provocaria escândalo se entrasse guiando a máquina de Evans... Corre o mundo.
1794
Eli Whitney, nos Estados Unidos, inventa um descaroçador de algodão, o “cottongin”.
Trabalha num algodoal e descaroça algodão com as mesmas mãos com que empunhou a espada. Sempre atrasados, esses inventores!
1803
Wise, na Inglaterra, inventa a pena de aço.
Não sabe escrever. Mas os que sabem escrevem com pena de pato.
1804
Richard Trevithick, na Inglaterra, inventa a locomotiva a vapor.
Vida de Tibicuera. Ele caminhava a pé. Como tudo lhe seria mais fácil se já trafegassem as locomotivas a vapor!
1807
Robert Fulton, nos Estados Unidos, faz experiências com o barco a vapor. Desta vez com resultados satisfatórios.
Veleiros na Baía de Guanabara, Tibicuera (sempre vagabundeando!) nem sonha com o barco a vapor...
1810
Frederick Koenig, na Alemanha, inventa a máquina impressora de cilindro giratório.
Vê como se imprime um jornal na “Imprensa Régia”. Acha as máquinas maravilhosas. Imaginem se ele visse a de Koenig...
1812
J. B. Ritter, na Alemanha, inventa o acumulador.
Criado de D. João VI. O Brasil pode ser comparado a um acumulador elétrico que se está preparando para a grande descarga da Independência.
1814
Sir Humphry Davy, na Inglaterra, inventa uma lâmpada de segurança para os mineiros.
Não inventa coisa alguma. Continua a acompanhar D. Carlota em seus passeios.
1816
Brunel, na Inglaterra, inventa a máquina de costura.
Continua no Paço. Vê as costureiras da Rainha trabalhando ativamente com as agulhas. Coitadinhas!
1822
P. Force, nos Estados Unidos, inventa a impressão em cores.
Charles Babbage, na Inglaterra, inventa a máquina de calcular.
Ouve o “Independência ou Morte!”. E se a máquina de Force já fosse empregada no Brasil, os jornais poderiam dar edições em duas cores: verde e amarelo.
1827
John Walker, nos Estados Unidos, inventa o fósforo de atrito.
Está entregue de corpo e alma aos livros. Ao saber da nova invenção, lembra-se do tempo que perdeu a esfregar pauzinhos para conseguir fogo.
1828
William Church, nos Estados Unidos, inventa uma máquina para compor e fundir tipos.
Continua mergulhado na leitura e nem imagina o bem que a invenção de Church vai trazer para os livros em geral.
1831
G. J. Guthrie, na Escócia, inventa o clorofórmio.
Foge do Rio. (Mais tarde, durante a Guerra dos Farrapos, vê médicos improvisados fazendo dolorosas operações cirúrgicas sem anestesia; o paciente tomava alguns goles de cachaça para resistir melhor à dor. O clorofórmio veio resolver o problema.)
1833 – 1839
J. Nicéphore Niepce inventa (1833) a fotografia, aperfeiçoada em 1839 por Charles Daguerre, na França.
Tibicuera caminha para o Sul. De 1835 a 1839 combate as tropas legalistas ao lado dos Farroupilhas.
1843
Charles Thurber, nos Estados Unidos, inventa a máquina de escrever.
Sempre guerreando nas coxilhas do Sul. Toda a gente continua escrevendo a mão...
1844
Samuel Morse, nos Estados Unidos, inventa um aparelho prático de telegrafia elétrica.
Convalesce dum ferimento, no hospital de Caçapava. Quanto serviço o telégrafo teria prestado na guerra... se tivesse sido inventado dez anos antes!
1846
Schonbein, na Alemanha, inventa o algodão– pólvora.
Passa este ano no hospício. Mas a verdade é que nenhum daqueles loucos jamais sonhou com a possibilidade de transformar o algodão em explosivo...
1847
Sobrero, na Escócia, inventa a nitroglicerina.
Continua no hospício. Como os hóspedes desta casa gostariam de brincar com nitroglicerina!
1851
Page, nos Estados Unidos, inventa a locomotiva elétrica.
Como soldado do Exército Brasileiro, luta contra as tropas de Oribe.
1855
Ernest Michaux, na França, inventa a bicicleta.
Cria galinhas e planta milho, nos arredores do Rio. Seus passeios, à cidade seriam mais fáceis se ele tivesse uma bicicleta.
1868
A. Nobel, na Suécia, inventa a dinamite.
Luta em Lomas Valentinas. Teria feito o diabo se pudesse dispor duma dúzia de bombas de dinamite...
1875
Woodruf, nos Estados Unidos, inventa a máquina de fazer gelo.
Descansa da Guerra do Paraguai. Continua a não fazer nada de excepcional.
1876
Alexandre Graham Bell, nos Estados Unidos, inventa o telefone.
Espera novas oportunidades para aventuras. Mas nota que os tempos estão mudando. A notícia da invenção do telefone fá-lo lembrar os tambores da taba, meio de comunicação a distância usado pelos indígenas.
1877
Thomas A. Edison, nos Estados Unidos, inventa o fonógrafo.
Interessado na propaganda da República.
1878
Thomas A. Edison, nos Estados Unidos, inventa a lâmpada elétrica.
Continua a frequentar comícios, ansioso por um motim.
1884
Ottmar Mergenthaler, nos Estados Unidos, inventa o linotipo.
Escreve artigos sobre a abolição. Os artigos são publicados em jornais cuja composição tipográfica é feita a mão.
1894
O Pe. Roberto Landell de Moura consegue, com seu rudimentar aparelho, transmitir e receber, sem fio, a palavra humana.
Descobre que não tem feito nada de útil ultimamente.
1895
W. C. Roentgen, na Alemanha descobre os raios X.
Olha para o passado e resolve tomar juízo!
Alguns anos mais tarde, a essa lista gloriosa de inventores se juntava um nome brasileiro — o de Santos Dumont, o pioneiro da navegação aérea.
63 — VOLTO DE NOVO AOS LIVROS
Procurei um emprego decente e voltei para a companhia agradável dos livros. Eu dizia cá comigo mesmo: “Temos a República. Vida nova. Gente moça no governo. Agora vamos ter ordem e progresso como diz o lema de nossa bandeira.”
Havia progresso, sim. A população aumentava. Surgiam homens notáveis: estadistas, cientistas, escritores, artistas. Os nossos portos ganhavam movimento. Nossas cidades cresciam. Construíam-se novas estradas de ferro. O comércio prosperava. As redes telegráficas se ramificavam pelo Brasil, como um sistema de vasos sanguíneos. (Como no princípio deste livro eu comparei o formato do nosso País com o de uma perna de porco, a comparação entre as linhas telegráficas aos vasos sanguíneos fica mais exata ainda.)
Estudei Literatura. Aprendi muita coisa interessante. Todos aqueles escritores de que falei a vocês no capítulo intitulado “Eu e os Livros” pertenciam (aprendi) a um período de nossa literatura chamado Classicismo, que foi de 1500 a 1836.
De 1836 a 1875 tivemos o Romantismo. Li os principais autores deste período. Gostaria de dar a vocês o nome de todos e um comentário de suas obras mais notáveis. Mas isto simplesmente não é possível, pois não quero transformar esta narrativa numa enciclopédia de conhecimentos gerais. Não deixarei, entretanto, de citar alguns nomes.
Na poesia tivemos Araújo Porto Alegre, autor do poema Colombo. Castro Alves, um dos maiores poetas da língua portuguesa, autor de Espumas Flutuantes e do Poema dos Escravos. Gonçalves Dias, que escreveu Primeiros Cantos; Segundos Cantos, Terceiros Cantos e Timbiras. Casimiro de Abreu (quem não o conhece?) que nos deixou Primaveras e Canções do Exílio. Fagundes Varela, o homem que concebeu 0 Evangelho nas Selvas. Álvares de Azevedo, autor de A lira dos Vinte Anos.
E os romancistas? Confesso que os adorei. Lendo o Guarani de José de Alencar eu me revi no índio Peri, herói da história. Quando li As Minas de Prata e Iracema, do mesmo autor, senti uma vaga saudade da minha vida de aventuras. Em O Moço Louro e na Moreninha de Joaquim Manuel de Macedo, encontrei já emoções diferentes. As Memórias dum Sargento de Milícias de Manuel Antônio de Almeida me proporcionaram algumas horas de leitura agradável. Gostei da Escrava Isaura e de Garimpeiro de Bernardo Guimarães. Devo confessar que chorei lendo Inocência de Alfredo d’Escragnolle Taunay.
Eram estes os romancistas que eu mais admirava.
Tivemos no período do Romantismo nomes ilustres na oratória, nas ciências, no teatro e no jornalismo. Durante a propaganda republicana conheci um poeta estranho e impressionante. Era preso e se chamava Cruz e Souza. Seu livro principal se chama Evocações e Broquéis. Morreu nove anos depois da proclamação da República.
Um conselho: Procurem ler um bom compêndio de Literatura. Porque eu vou voltar agora às minhas aventuras. Mas... merecerão o nome de “aventuras” os episódios sem graça da minha vida nova?
64 — NUVENS NO CÉU DA REPÚBLICA
Tudo parecia deslizar suavemente no melhor dos mundos, quando um dia espalhou-se pela cidade a notícia de que a esquadra se havia revoltado. Pelo calafrio que me correu pelo corpo, senti que não estava de todo curado do vício da aventura, do amor à ação militar Não me contive. Fui para a rua catar boatos.
Vou descrever a situação em dois traços. Deodoro estava na Presidência da República; o Mal. Floriano Peixoto na Vice-Presidência. A oposição tinha maioria no Congresso Nacional. A conselho de seu ministro Barão de Lucena, Deodoro manda dissolvê-lo! Agora o levante do “Riachuelo” era um protesto contra esse ato do governo.
Diante da anarquia, o Mal. Deodoro, não querendo provocar a guerra civil, passa o governo ao vice-presidente. Período de agitação. Foram depostos os governadores das Províncias que tinham concordado com o movimento revolucionário iniciado pela esquadra. Protestos. Motins. Debates. Mas Floriano Peixoto se mantém.
No Rio Grande dois partidos políticos disputam o poder: Republicanos e Federalistas. Em 1893 estoura a revolução. Os dois partidos vão guerrear-se nas coxilhas. Nesse mesmo ano, nova revolta da armada no Rio, comandada pelo Cel. Alm. Custódio de Melo. Roncou o canhão. Os navios atiravam. As fortalezas respondiam. Duelo tremendo. Tremiam as vidraças das janelas das casas mais próximas do mar. Tremiam minhas vísceras. De medo ou de vontade de brigar? Os revoltosos do mar se correspondem com os revoltosos de terra, no sul do País. O governo corre perigo. Mas Floriano Peixoto arma uma esquadra e faz os rebeldes abandonarem suas posições. Chamaram-na “esquadra de papelão”...
Aproxima-se o fim do período governamental. Faz-se a eleição do novo presidente. E a todas essas acontecia uma coisa assombrosa: eu me mantinha recolhido no meu canto, apegado aos meus livros. Tinha no meu quarto retratos de Edison, Pasteur, Newton. Estava resolvido a abandonar definitivamente a carreira das armas.
Fonte:
Érico Veríssimo. As aventuras de Tibicuera, que são também do Brasil. (Texto revisto conforme Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa em vigor em 2009). Porto Alegre: Edição da Livraria do Globo, 1937.
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