— Que negócio é esse? Ninguém me atende?
A muito custo, atenderam; isto é, confessaram que não podiam atender, por causa do jogo com a Bulgária.
— Mas que é que eu tenho com o jogo com a Bulgária, façam-me o favor? E os senhores por acaso foram escalados para jogar?
O chefe da seção aproximou-se, apaziguador:
— Desculpe, cavalheiro. Queira voltar na quinta-feira, 14. Quinta-feira não haverá jogo, estaremos mais tranquilos.
— Mas prometeram que meu papel ficaria pronto hoje sem falta.
— Foi um lapso do funcionário que lhe prometeu tal coisa. Ele não se lembrou da Bulgária. O Brasil lutando com a Bulgária, o senhor quer que o nosso pessoal tenha cabeça fria para informar papéis?
— Perdão, o jogo vai ser logo mais, às quinze horas. É meio-dia, e já estão torcendo?
— Ah, meu caro senhor, não critique nossos bravos companheiros, que fizeram o sacrifício de vir à repartição trabalhar quando podiam ficar em casa ou na rua, participando da emoção do povo…
— Se vieram trabalhar, por que não trabalham?
— Porque não podem, ouviu? Porque não podem. O senhor está ficando impertinente. Aliás, disse logo de saída que não tinha nada com o jogo com a Bulgária! O Brasil em guerra — porque é uma verdadeira guerra, como acentuam os jornais — nos campos da Europa, e o senhor, indiferente, alienado, perguntando por um vago papel, uma coisinha individual, insignificante, em face dos interesses da pátria!
— Muito bem! Muito bem! — funcionários batiam palmas.
— Mas, perdão, eu… eu…
— Já sei que vai se desculpar. O momento não é para dissensões. O momento é de união nacional, cérebros e corações uníssonos. Vamos, cavalheiro, não perturbe a preparação espiritual dos meus colegas, que estão analisando a Seleção Búlgara e descobrindo meios de frustrar a marcação de Pelé. O senhor acha bem o 4-2-4 ou prefere o 4-3-3?
— Bem, eu… eu…
— Compreendo que não queira opinar. É muita responsabilidade. Eu aliás não forço opinião de ninguém. Esta algazarra que o senhor está vendo resulta da ampla liberdade de opinião com que se discute a formação do selecionado. Todos querem ajudar, por isso cada um tem sua ideia própria, que não se ajusta com a ideia do outro, mas o resultado é admirável. A unidade pela diversidade. Na hora da batalha, formamos a frente única.
— Está certo, mas será que, voltando na quinta-feira, eu encontro o meu papel pronto mesmo?
— Ah, o senhor é terrível, nem numa hora dessas esquece o seu papelzinho! Eu disse quinta-feira? Sim, certamente, pois é dia de folga no campeonato. Mas espere aí, com quatro jogos na quarta-feira, e o gasto de energia que isso determina, como é que eu posso garantir o seu papel para quinta-feira? Quer saber de uma coisa? Seja razoável, meu amigo, procure colaborar, procure ser bom brasileiro, volte em agosto, na segunda quinzena de agosto é melhor, depois de comemorarmos a conquista do Tri.
— E… se não conquistarmos?
— Não diga uma besteira dessas! Sai, azar! Vá-se embora, antes que eu perca a cabeça e…
Vozes indignadas:
— Fora! Fora!
O servente sobe na cadeira e comanda o coro:
— Bra-sil! Bra-sil! Bra-sil!
Está salva a honra da torcida, e o importuno retira-se precipitadamente.
Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário