segunda-feira, 20 de abril de 2020

J. G. de Araújo Jorge (O Canto da Terra) 8


O CANTO DA TERRA!

Venho das profundezas da terra, do coração da terra,
onde se fundem todos os limites
e se confundem todas as idades...

Venho de onde a terra ainda está começando e onde há de terminar
e meu canto, retemperado ao fogo primitivo,
estremecerá a superfície do mundo como os abalos sísmicos
e romperá o solo, e rugirá surdamente, como a voz profunda
dos vulcões...

Ao meu canto de lavas, desaparecerão das encostas que se altearão
as terras onde há senhores e escravos,
os campos onde alguns lavram e outros esperam;
e todos os homens atônitos perceberão
que a terra não tem donos
e que nunca dominaram o coração da terra!

E as lavas descerão pelas encostas, e o céu se encherá
     de nuvens e de chamas vermelhas
e por momentos a terra estará coberta de cinzas
e o dia anoitecerá, e a noite apagará suas estrelas...

Meu canto não terá a luz serena e apostólica da estrela do  pastor
para que não seja crucificado entre ladrões,
meu canto será a voz da terra em revolta,
a voz poderosa da terra insubmissa
que levantará o dorso em corcovas de potro bravio
contra o dominador bastardo que a esporeia
e a explora!

Por isso meu canto será violento como a terra quando estremece
e sincronizará com a destruição dos tempos, provocada
pelos que terão que sucumbir...

Por isso meu canto é a voz da terra, da terra toda
  sem limites nem profundidade
e pregará que é também preciso ser fogo e ser lava
para que os donos desapareçam, para que os sobreviventes
compreendam
que nada lhes pertence e tudo lhes pertencerá,
e um mundo melhor possa ter início...

Depois do meu canto, será o silêncio,
um novo silêncio expectante de Gênesis

Depois do silêncio, será o trabalho,
e será a música, e será o vento, e será a semente que acorda,
e a terra verde, e a água clara, e o céu azul
e a nuvem que foge...
E será a terra sem donos, trabalhada e frutificando
para todas as bocas, para todas as mãos,
e será a noite serena, e a beleza ideal e eterna
das estrelas
E será a paz…
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O SÁBIO

Em meio da algazarra atordoante das partidas,
e a zoeira das alegrias
dos risos
dos foguetes,
dos trens transbordantes de quepes,
dos navios com canhões e mastros embandeirados,

ele conteve nos olhos uma lágrima grande
e brilhante...

Se perguntassem ao homem sozinho porque estava chorando
ele havia de dizer:
- estes que riem e cantam ainda estão partindo!
Eu... já estou voltando…
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ONTEM... HOJE...
(A Jacques Raimundo)

Antes dele partir a mãe chamou-o
apertou-o no peito mal contendo o pranto,
(bem o vi...)
- E então lhe disse: parte! é o teu destino!
é a pátria que precisa de ti...
Se ele quisesse pensar
se ele quisesse se lembrar
havia de dizer:
há muito tempo,
porque matei um passarinho
e destruí-lhe o ninho
minha mãe me chamou, falo-me comovida:
- nunca mais faças isso meu filho, que a vida
só Deus pode tirar...

Se ele quisesse pensar…
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ORAÇÃO DA VOLTA
(A Artigas Milans Martínez)
  
Aqui
destas terras vazias, destes chãos enxutos
nasciam sementes
que amanhã milagrosamente
seriam flores e frutos!

Aqui, se erguiam penachos louros e ressoavam ninhos,
aqueles da cor do sol pelos campos imensos,
e estes, pela borda dos caminhos
suspensos...

Aqui, havia uma casa pequena, - uma porta, uma janela -
ao centro de um cercado,
- uma criança a brincar no jardim, tagarela,
e um penacho de fumo a subir do telhado...

E por estas ruas quietas, hoje tristes, sossegadas,
e em solidão,
ruas sem alma, sem desejos,
se ouvia o riso feliz das bocas cheias
de pão,
dos lábios cheios de beijos!

Aqui havia uma escola onde um velho mestre exercia
seu magistério,
e adiante era o recreio... a algazarra, a alegria,
da garotada livre em gritos e folganças...

Hoje , - aqui é um cemitério
e onde estão as crianças?

Aqui, havia vida, hoje, não há mais nada...
Nem penachos ao vento e nem crianças contentes...
- há somente o silêncio, as visões delinquentes,
e a longa risca vermelha de uma estrada...
................................

O mundo está perdido... a terra está vencida...

Eu mereço, Senhor, vosso castigo!

Mas não sei se maldigo os homens, se maldigo a vida,
ou se vos maldigo!

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. O Canto da Terra. 1945.

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