quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Katherine Mansfield (A Aula de canto)


Com o desespero – um desespero frio e cortante – cravado no fundo do coração como uma faca cruel, a srta. Meadows, de beca e capelo e portando uma pequena batuta, percorreu os corredores frios que levavam ao salão de música. Garotas de todas as idades, coradas pelo ar e transbordando aquela alegre animação que se sente ao disparar para a escola numa bela manhã de outono, corriam, saltavam, esvoaçavam; das salas de aula vazias vinham vozes matraqueando velozes; um sino tocou; uma voz como de pássaro gritou "Muriel". E então da escada veio um tremendo bum-bum-trabum, Alguém tinha deixado cair os halteres.

A professora de Ciências deteve a srta. Meadows.

- Bom diii-a - exclamou com sua fala arrastada, suave e afetada. - Não está frio? Parece até inverno.

A srta. Meadows, comprimindo a faca, fitou com ódio a professora de Ciências. Tudo nela era doce, pálido, como mel. Não seria surpresa ver uma abelha presa no emaranhado daquele cabelo louro,

- Cortante - respondeu a srta. Meadows carrancuda,

A outra abriu seu sorriso meloso.

- Você parece gelaaaa-da - disse. Seus olhos azuis se abriram muito; tinham um brilho zombeteiro. (Teria notado alguma coisa?)

Ora, nem tanto assim - a srta. Meadow disse – respondeu ao sorriso da professora de Ciências com uma rápida careta e seguiu adiante...

As Turmas Quatro, Cinco e Seis estavam reunidas no salão. O barulho era ensurdecedor. No estrado, junto ao piano, estava Mary Beazley, a favorita da srta, Meadows, que tocava o acompanhamento. Estava girando a banqueta do piano. Quando viu a srta, Meadows, soltou um sonoro "Pssss, meninas!" de advertência, e a srta, Meadows, as mãos enfiadas nas mangas, a batuta debaixo do braço, desceu pela passagem central, subiu os degraus, virou-se bruscamente, pegou o suporte metálico da partitura, plantou-o diante de si e deu duas batidas secas com a batuta, exigindo silêncio.

- Silêncio, por favor! Já!

E, sem se deter pra ninguém, seu olhar passeou por aquele oceano de blusas de flanela colorida, onde se agitavam mãos e faces rosadas, tremulavam tiaras de borboleta e se espalhavam pautas musicais. Ela sabia muito bem o que estavam pensando. "Meady está brava," Ora, que pensassem! Suas pálpebras estremeceram; empinou a cabeça, em desafio. Que importância tinha o que aquelas criaturas pensavam para quem estava ali sangrando até a morte, ferida no coração, no fundo do coração, por uma carta assim -... "Sinto cada vez mais que nosso casamento seria um erro. Não que eu não ame você. Amo até onde me é possível amar uma mulher, mas, para dizer a verdade, cheguei à conclusão de que não sou homem de casar e a ideia de ter um lar me enche apenas de..." - e a palavra "aversão" estava levemente apagada e por cima estava escrito "pesar".

Basil! A srta. Meadows avançou empertigada até o piano. E Mary Beazley, que aguardava por esse momento, curvou-se, os cachos lhe caíram na face enquanto murmurava "Bom dia, Srta. Meadows" e, mais do que estender, fez avançar até sua professora um belo crisântemo amarelo. Esse pequeno ritual da flor vinha se passando fazia uma eternidade, pelo menos um semestre e meio. Fazia parte da aula, tanto quanto abrir o piano. Mas nesta manhã, em vez de pegá-lo, em vez de colocá-lo no cinto enquanto se inclinava para Mary e dizia "Obrigada, Mary. Quanta gentileza! Vire na página 32", qual não foi o horror de Mary quando a srta. Meadows ignorou totalmente o crisântemo, não respondeu à saudação e disse numa voz fria como gelo "Página 14, por favor, e marque bem os acentos".

Momento desconcertante! Mary enrubesceu até lhe virem lágrimas aos olhos, mas a srta. Meadows voltara ao pedestal da partitura; sua voz ressoou por todo o salão.

- Página catorze. Vamos começar com a página catorze. "Um lamento." Agora, meninas, vocês já devem conhecê-lo. Vamos a ele todas juntas, não por partes, mas todas juntas. E sem expressão. Mas cantem com muita simplicidade, marcando o tempo com a mão esquerda.

Ergueu a batuta; bateu no pedestal duas vezes. Então entrou Mary com a nota de abertura; então entraram todas aquelas mãos esquerdas, marcando no ar, e entoaram aquelas vozes jovens e lamentosas:

Logo! Ah, logo murcham as rosas do prazer;
E breve se rende o outono à tristeza invernal.
Veloz! Ah, veloz o alegre compasso musical
Passa pelo ouvinte e vai desaparecer.

Bons céus, o que podia ser mais trágico do que esse lamento! Cada nota era um suspiro, um soluço, um gemido de imensa dor. A srta. Meadows ergueu os braços em sua beca larga e começou a reger com as duas mãos. "Sinto cada vez mais que nosso casamento seria um erro...", marcava ela. E as vozes gritavam: Veloz! Ah, veloz. O que se apoderara dele para escrever uma carta assim! O que levara a isso! Saiu do nada. A carta anterior tinha sido, toda ela, sobre uma estante de carvalho escurecido que ele comprara para "nossos" livros e um "belo aparadorzinho" que tinha visto, "muito alinhado, com uma coruja entalhada num suporte, segurando nas garras três escovas de chapéu". Como ela sorrira àquilo! Tão coisa de homem achar que alguém precisaria de três escovas de chapéu! Passa pelo ouvinte, cantavam as vozes.

- Mais uma vez - disse a srta. Meadows. - Mas agora era partes. Ainda sem expressão.

Logo! Ah, logo. Somando-se a tristeza dos contraltos, era até difícil evitar um estremecimento. Murcham as rosas do prazer. Na última vez em que veio vê-la, Basil trazia uma rosa na lapela. Como estava bonito naquele temo azul-vivo, com aquela rosa vermelho--escuro! E ele sabia disso. Não tinha como não saber. Primeiro alisou o cabelo, depois o bigode; ao sorrir, os dentes faiscaram.

- A esposa do diretor vive me convidando para jantar. Uma amolação. Nunca tenho uma noite só para mim naquele lugar.

- Mas você não pode recusar?

- Oh, para um homem em minha posição isso cairia bem ser antipático.

O alegre compasso musical, lamentavam as vozes. Os salgueiros, do lado de fora das janelas altas e estreitas, ondulavam ao vento. Tinham perdido metade das folhas. As pequeninas ainda restantes se retorciam como peixes num anzol. "... Não sou homem de casar..." As vozes tinham se calado; o piano aguardava.

- Muito bom - disse a srta, Meadows, mas ainda num tom tão frio e estranho que as meninas mais novas começaram a se sentir realmente assustadas.

- Mas, agora que já conhecemos, vamos cantar com expressão. Pensem nas palavras, meninas. Usem a imaginação. Logo! Ah, logo - exclamou a srta. Meadows. - Deve irromper - um forte alto, vigoroso - um lamento. E então, no segundo verso, tristeza invernal, a tristeza tem de soar como se soprasse um vento gelado. Tristee-eeza - falou de maneira tão sinistra que Mary Beazley em seu banquinho contorceu as costas.

- O terceiro verso deve ser um crescendo só. Veloz! Ah, veloz o alegre compasso musical. Quebrando na primeira palavra do último verso. Passa. E então na palavra pelo vocês começam a morrer... a se extinguir… até que vai desaparecer não passe de um sussurro bem fraquinho... Podem ir devagar o quanto quiserem no último verso. Agora, por favor.

De novo as duas leves batidinhas; ergueu novamente os braços. Logo! Ah, logo. "... e a ideia de ter um lar me enche apenas de aversão –”  Era aversão o que ele tinha escrito. Era igual a dizer que o noivado deles estava definitivamente rompido. Rompido! O malvado! As pessoas já tinham se surpreendido quando levou noiva. A professora de Ciências no começo não acreditou. Mas ninguém se surpreendera mais do que ela. Estava com trinta anos. Basil, com vinte e cinco. Tinha sido um milagre, um verdadeiro milagre, ouvi-lo dizer voltando da igreja naquela noite muito escura: "Sabe, de alguma maneira eu me apaixonei por você".

E pegara a ponta de seu boá de plumas de avestruz. Passa pelo ouvinte e vai desaparecer.

- Repitam! Repitam! - disse a srta. Meadows. – Mais expressão, meninas! Outra vez!

Logo! Ah, logo. As mais velhas estavam de cor escarlate; algumas das mais novas começaram a chorar. Grandes pingos de chuva se arremessavam contra as janelas e dava para ouvir os salgueiros sussurrando "...não que eu não ame você...".

"Mas, meu querido, se você me ama", pensou a srta. Meadows, "não me interessa o quanto, Pode ser bem pouquinho". Mas sabia que ele não a amava. Nem se deu ao trabalho de apagar totalmente aquela palavra "aversão", para que ela não visse! E breve se rende o outono à tristeza invernal. Teria de deixar a escola também. Jamais conseguiria encarar a professora de Ciências nem as meninas, depois que soubessem. Teria de sumir em algum lugar. Passa. As vozes começaram a morrer, a se extinguir, a sussurrar... a desaparecer.

De repente a porta se abriu, uma menina de azul veio alvoroçada pela passagem, baixando a cabeça, mordendo os lábios e girando a pulseira prateada em seu pulsinho vermelho. Subiu os degraus e parou diante da srta. Meadows.

- Bem, Mônica, o que é?

- Oh, por favor, srta. Meadows - disse a menina ofegante. - A srta. Wyatt quer vê-la na sala da diretoria.

- Muito bem - respondeu a srta, Meadows e se dirigiu às meninas. –  Deixarei a cargo de vocês que falem baixo enquanto eu estiver fora.

Mas elas estavam abatidas demais para fazer qualquer outra coisa. A maioria assoava o nariz.

Os corredores estavam frios e silenciosos; os passos da srta. Meadows faziam eco. A diretora estava sentada à escrivaninha. Não ergueu os olhos de imediato. Estava como sempre desembaraçando os óculos, que haviam ficado presos no laçarote rendado.

- Sente-se, srta. Meadows - disse muito gentil. E então pegou um envelope cor-de-rosa de sob o mata-borrão. - Mandei chamá-la porque acabou de chegar este telegrama para você.

- Um telegrama para mim, srta, Wyatt?

Basil! Ele tinha se suicidado, concluiu a srta. Meadows. Estendeu ligeiro a mão, mas a srta. Wyatt reteve o telegrama por um instante.

- Espero que não sejam más notícias - disse mais do que gentil.

E a srta. Meadows abriu de um rasgão.

"Desconsidere carta, devia estar louco, comprei chapeleira hoje - Basil", leu ela. Não conseguia desgrudar os olhos do telegrama.

- Espero que não seja nada muito grave - disse a srta. Wyalt inclinando-se para ela.

- Oh, não, obrigada, srta. Wyatt - corou a srta. Meadows. - Não é nada de ruim. É... - e soltou um risinho com ar de desculpa - é de meu noivo dizendo que... dizendo que...

Houve uma pausa.

- Entendo - disse a srta. Wyatt.

E outra pausa. Então:

- Você ainda tem quinze minutos de aula, não, srta. Meadows?

- Sim, srta. Wyatt.

Levantou-se. Quase correu para a porta.

- Oh, mais um minutinho, srta. Meadows - disse a srta. Wyatt. - Devo dizer que não aprovo que meus professores recebam telegramas no horário das aulas, exceto em casos de notícias muito graves, como uma morte - explicou a srta. Wyatt - ou um acidente muito sério ou algo assim. Como sabe, srta. Meadows, as boas notícias sempre podem esperar.

Voando nas asas da esperança, do amor, da alegria, a srta. Meadows se apressou de volta ao salão, percorreu a passagem, subiu os degraus, acercou-se do piano.

- Página 32, Mary - disse página 32 ~ e, pegando o crisântemo amarelo, segurou-o diante dos lábios para ocultar o sorriso.

Então virou-se para as meninas e deu uma batida seca com a batuta;

- Página trinta e dois, meninas. Página trinta e dois.

Aqui viemos hoje cobertas de flores,
Com cestos repletos de frutas e fitas,
Para celebraaaar...

- Parem! Parem! - gritou a srta. Meadows. - Está horrível. Está pavoroso.

Olhou radiante para suas meninas.

- O que há com vocês? Pensem, meninas, pensem no que estão cantando. Usem a imaginação. Cobertas de flores. Cestos repletos de frutas e fitas. E celebrar.

A srta. Meadows se interrompeu.

- Não fiquem com ar tão triste, meninas. É para soar alegre, caloroso, exultante. Celebrar. Mais uma  vez. Rápido. Todas juntas. Agora!

E nesse momento a voz da srta. Meadows se sobrepôs a todas as outras - cheia, profunda, resplandecendo de expressão.

Fonte:
Os melhores contos de Katherine Mansfield. Porto Alegre/RS: LP&M, 2016.

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