sábado, 22 de março de 2025

José Feldman (Guirlanda de Versos) * 27 *

 

ENCERRAMENTO DO BLOG DE TROVAS “O VOO DA GRALHA AZUL”


https://voogralhaazul.blogspot.com/
 

 Não vejo razão alguma em manter este blog em funcionamento. A manutenção de um blog como este exige muita pesquisa, muita organização, muita dedicação, revisão, etc., tanto trabalho por nada.  

Há 10 anos no ar, apenas dois seguidores, sendo um deles eu mesmo e um trovador da Itália, e apenas um comentário em mais de 4.500 publicações e dezenas de milhares de trovas. Lamentável que não saibam valorizar a divulgação de trovadores de diversas épocas, vivos ou falecidos.

Na data de hoje, 21 de março, cerca de 50 mil trovas e 1400 trovadores foram excluídas. O Blog deixa de existir.

Neste blog, Singrando Horizontes, estes dias excluí mais de 4 mil publicações e milhares de trovas vinculadas à UBT, entre resultados de concursos, artigos, trovadores, etc. Contudo continuarei divulgando a trova, mas apenas dos amigos, colaboradores, apoiadores e incentivadores, vivos ou falecidos.

Paulo Vinheiro (Uma Flor no Meio da Vida)

Paulo Vinheiro, nome artístico do escritor e poeta Paulo Vieira Pinheiro, é de Monteiro Lobato/SP. 
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“O que queres?” Perguntei-me!

Dia e outro, na procura dos sentidos, me perco nas palavras que brotam por todo lado com seu propósito de me confundir.

Jornais, revistas, livros... tantas letras que doem.

Já li de tudo, me arrebatam as bulas...

Machado, Alencar, Scliar, Saramago, Lobato, e tanta gente que depois de um tempo me cobra: – que dizes? Que me dizes?

Ousado, talvez com um pouco de medo, arrisquei umas pequenas linhas... pequeninas... pequenininhas.

Então escrevi.

Tive a sorte de aprender a letrar pensamentos e os letrei; então achei pouco.

Pensei: – Se posso descrever o que penso... porquê não posso escrever o que sinto?

Vi que existia uma ponte estreita, longa, perigosa e muita vez conflitiva, entre o que eu sentia e pensava.

Sofri, mas não desanimei, então me reescrevi.

Contei contos, desvelei novelas, trabalhei textos... passei a ler com mais cuidado, com mais rigor, com mais seleção.

Passei a ler como se eu tivesse escrito o texto que não escrevi. Busquei o sentimento que vale a pena (no estrito sentido da pena que escreve).

Antes disso, eu não respeitava os que escreveram tanto como mereciam.

Textos bons ou textos nem tanto como queríamos ler, servem para o que servem, para se qualificarem uns aos outros.

Quem sabe o que é bom?

Sempre gostei das coisas mais fáceis, e por isso busquei as mais difíceis, só para me contrariar... só eu sofri no caso das palavras que li.

Agora há pouco me perguntaram:  – E a flor, onde entra nisso que dizes?

Ora entendo que a flor é o produto da expressão do que se diz, do que se escreve, do que se pinta, do que se faz para a apreciação, como o trabalho, como o amor... como a expressão pura e simples da ação.

Existe no campo ou nos jardins, todo o tipo de expressão floral. Existe no jardim de nossos dias uma quantidade de obras a se admirar, umas com mais cuidado, outras com mais atenção, outras detalhadas, outras simples... cada qual com suas qualidades.

Para nós sobra entender o que fizemos ou faremos de nós.

Fontes:
Texto enviado pelo autor.
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Vereda da Poesia = Sophia de Mello Breyner Andressen (Portugal)



quinta-feira, 20 de março de 2025

Adega de Versos 138:

 

A. A. de Assis (Felicidade sem camisa)

A praia não é somente a praia: é um monte de outras alegrias

Coisa bonita é o povo curtindo férias na praia. Um lugar superdemocrático, aberto a todos os padrões. Um homem de calção e sem camisa, uma mulher de maiô ou de biquíni, você não sabe se é alguém que tem mais ou menos dinheiro, se tem mais ou menos cultura, se é mais ou menos importante lá no onde mora. E mais: a maioria nem tá aí para esses grilos de elegância e moda. Todo mundo igual. Todo mundo gente. Gente feliz, que trabalha o ano inteiro e agora está ali celebrando a vida.  

Primavera-verão em Balneário Camboriú. O sol do sul. Paranaenses, catarinenses, gaúchos. Mais banhistas à beça vindos de outros estados. Mais los hermanos argentinos, uruguaios, paraguaios, bolivianos, chilenos. Uns chegados de automóvel, outros de ônibus, de moto ou de avião, outros em grupos de excursão.

Todo mundo numa boa. Logo cedinho arrumando a tralha pra espetar barraca na areia e salgar o corpo no mar. O isopor com as bebidinhas, a cesta cheirosa recheada de comes-comes. As crianças se deliciando com o churro, o sorvete, o milho verde.

No meio dos de férias, também homens e mulheres aproveitando a temporada pra ganhar um dinheirinho vendendo chapéus, roupas, cerveja, algodão doce, cocada, pipoca, ou alugando cadeiras e barracas. Um velhinho oferecendo bilhetes de loteria. Duas moças cantando o pregão: “Salada de frutas, sanduíche natural…”

Mas a praia não é somente a praia: é um monte de outras alegrias. Se o dia acorda chuvinhoso, o pessoal aproveita pra passear no comércio. Esvazia a Avenida Atlântica, enche a Avenida Brasil – um comprido shopping a céu aberto, aquela enorme fileira de lojinhas com o de tudo que a moçada gosta. De noite tem os barzinhos, os restaurantes, as baladas, tem a noite toda pra paquerar, comer, dançar.

Tem também a opção de dar umas esticadas pela vizinhança: Itajaí, Itapema, Bombinhas, Cabeçudas, Beto Carrero, Brusque, Nova Trento, Pomerode…

Gente boa, gente muito gente. Que estuda, trabalha, produz.

Gente do batente, que realmente merece esses belos dias de recreio com a família na praia.

Fonte:
Texto enviado pelo autor. 
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

Silmar Bohrer (Croniquinha) 131

Como foi que tudo começou ? 

Diria que é difícil explicar. Mas os relatos históricos de estudiosos e  pesquisadores dizem (ou sugerem) que no princípio tudo era imensidão inócua e vazia. Até o Gênesis confirma. 

E um sopro deu início àquilo chamado vida, lá na frente, transformando tudo em civilização .  Passaram séculos desde as priscas Eras .

A evolução foi tanta, imensa, grandiosa. Para todo lado.  Para todos os seres. 

Chegamos ao ano 2025 e eis que surgem num canto quase esquecido, próximo às barrancas do planeta, dois animaizinhos de quatro pata carregados de energia solar. 

Dois pequenos puros de alegria, humor à beça, traquinagens muitas.  Arrebanhados, logo tomaram conta do ambiente e da empatia da casa. 

Assim é que nos primórdios do ano surgiu o TRIO DA BAGUNCINHA - Theo, Ísis e papai, desde a manhãzinha agitando, brincando, conversando, fazendo o pequeno circo dos cachorrinhos.

As afeições misturaram tanto que quando saio para a rua vejo carinhas de tristes, silentes, de abandono.  Na volta, já no portão encontro Dom Theo e Dona Ísis com os olhos sorrindo e rabos abanando para iniciar a baguncinha do momento.

Dois tesouros dando lições de cachorrismo e civilidade.

Fontes:
Texto enviado pelo autor.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

Vereda da Poesia = 228


Soneto de
EDY SOARES
Vila Velha/ES

O CONJUNTO DA OBRA

Não me verão sacrificar meu texto
somente em prol da rima ou da estrutura.
Nos vincos da melhor literatura 
versejo, sem alarde, sem pretexto.

Há quem compõe de forma audaz, segura,
buscando a perfeição de um anapesto
e ao se perder, contudo, no contexto
destina o seu poema à sepultura.

Há que se ater nas regras alfabéticas
e, salvo engano, as criações poéticas
exigem mais que forma e conteúdo…

Também, não se esquecer que a poesia
há de fluir com pompa e galhardia…
Formalidade é bom, mas não é tudo!
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Quadra Popular de
AUTOR ANÔNIMO

Ao ver-te fico perdido,
mulher – onça desalmada,
sinto dor, fico ferido
vai-se ver – não tenho nada.
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Poema de
ANTERO JERÓNIMO
Lisboa/ Portugal

A saudade
encontra sempre velhos trilhos
e deixa vestígios onde o amor
semeou  a paz das margaridas
a indicar o caminho.
O tempo, impávido matreiro
assistiu ao extinguir da chama
sem manifestar qualquer emoção;
para desespero da palavra 
tremendo na ausência do afago,
de um abraço sentenciado.
Que importa agora
tentar atrasar as horas?
Se os lençóis são testemunho
de que nada devolve a forma original
ao côncavo deixado na partida.
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Poema de
DOMINGOS FREIRE CARDOSO
Ilhavo/ Portugal

E OS TEUS OLHOS FICARAM MAIS DISTANTES
(Manuel Lima Monteiro Andrade in "Mãos abertas", p. 97)

E os teus olhos ficaram mais distantes
Quando na luz da tarde se perdeu
O aceno da partida que doeu
Como nunca me tinha ferido antes.

Fiquei parado, ali, por uns instantes
Naufragando no mar que, então, desceu
Do meu olhar que a noite ao mundo deu
Habitada por gritos suplicantes.

Tu partiste e eu fiquei de mim ausente
O tempo corre e apenas sei que sinto
Que na terra já nada mais me importa,

Errante vou seguindo inconsciente
Perdido nos sopés de um labirinto
Como se em mim já fosse a vida morta.
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Poema de
ANDRÉ GRANJA CARNEIRO
Atibaia/SP, 1922 – 2014 , Curitiba/PR

EU ESCAPO

Não tenho gravata,
o último bigode raspei em primeiro de abril
de sessenta e quatro.
Darcy menina, inventora da mini-saia
ficou com as crianças, eu fugi
na subversiva perua Volkswagem.
Tenho pudor de ser poeta,
prefiro escritor, cineasta, hipnotizador emérito,
palavras nem explicam
a economia doméstica,
amordaçam lágrimas ditas femininas,
derramadas pelo sexo másculo.
Há sempre um atrás nos versos
a libertar rostos, mostrar pegadas viscosas
em direção ao seu quarto.
Minhas balas nunca explodiram,
a navalhada espanhola é barbeador elétrico.
Tento ser eclético, abarcar o continente.
Fui Navajo no Arizona,
joguei poquer em cartas marcadas,
dou nó em pespontos,
lavo louça sem nenhum interesse.
De onde surgem estas formigas minúsculas?
Deus displicente, esmago-as sem pena,
almas sem micróbios e baratas são desprezíveis.
Do satélite, só avisto a muralha da China
e a floresta amazônica em chamas.
Meu carro tem pontos de ferrugem,
o aço se transforma em marrons abstratos,
alguns botões da camisa fecham ao contrário,
marca feminina do contraste.
Sigo cego o rumo coletivo deste ônibus.
Passam cenhos cerrados,
proíbem beijar de língua nas bibliotecas,
trocar roupas nos alpendres,
casar filhas com negros,
gargalhar no tribunal togado.
A morte vai batendo de porta em porta,
vendendo bilhetes irrecusáveis
aos guardiães da sociedade.
Eu me escondo no banheiro,
disfarço lendo histórias em quadrinhos
e escapo.
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Poema de
FILEMON MARTINS
São Paulo/ SP

A JANGADA

Ei-la singrando a imensidão dos mares
tão frágil, tão veloz e independente,
deixando a praia, busca outros lugares
sem medo, sem temor, inconsequente...

Lançada ao mar... As ondas pelos ares...
Vai conquistando o mar azul, fremente,
não há tristezas, dores, nem pesares...
Só a jangada deslizando à frente.

As ondas vêm e vão... E chega a tarde,
aflora um sentimento de saudade
e ela retorna cheia de emoções...

Quantos sonhos viajam na jangada?
mas ao raiar da fresca madrugada
vai para o mar repleta de ilusões!
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Poema de
MARIA EFIGÊNIA MALLEMONT
Petrópolis/RJ

AMOR EM POESIA

Sobre a mesa,
livros, canções,
odes e sonetos,
onde me debruço,
aconchegando,
meus sonhos.
Na face da noite,
a voz do poeta,
murmurando sonhos
em meu coração deserto!
Aos seus devaneios,
me entrego invisível,
nua, sem resposta.
Deixa-me amar,
do mundo alheia,
nas frágeis torrentes
da tua poesia.
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Soneto de
MIGUEL RUSSOWSKY
Santa Maria/RS (1923 – 2009) Joaçaba/SC

RECEITA DE SAÚDE E FELICIDADE

Não antecipe nunca o sofrimento!...
Diga “Bom Dia!” ao sol que lhe saúda.
Seja qual um discípulo de Buda:
- É mister se gozar cada momento.

No “que será...será” que não se muda,
se abrigam primaveras...(mais de um cento!)
os “depois” nem podem ser tormento
se os “agoras” lhe derem boa ajuda.

“Cara feia” - sinal de enfermidade -
com certeza, costuma sobrepor
mais pesos aos obstáculos da idade.

"Alegre-se e sorria, por favor!
Um sorrisinho dá felicidade,
pois contagia e ativa o bom humor"
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Soneto de
PAULO VINHEIRO
Monteiro Lobato/SP

QUIMERA

Quimera, alguma esperança mantenho
Cantilena, monotônica toada trovoa
Do boi o carro carroçando vai cantando
À vera trocam letras tropeçando pedras
Escrevo sem sentidos, abstraio teus olhos
Perdoe o perverso que rabisco a toa
Enxugo lágrimas que não nasceram
Em vão de página… Quem sabe em vão
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Poema de
DANIEL MAURÍCIO
Curitiba/PR

Índios,
Ao longo
Dos séculos
Sambaquis
De almas...
Na natureza,
A vida
Clama
Em silêncio.
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Humberto de Campos (Melhoramentos...)

A grande preocupação nacional do momento, conforme é notório, é a visita de sua majestade o rei da Bélgica. Da Gávea à Tijuca, do Cais Faroux às águas paludosas do rio Pavuna, reinam uma febre, uma atividade, uma fúria de empreendimentos verdadeiramente assombrosa. Nunca se viu, no Rio, atacados de uma só vez, tão grande número de melhoramentos. A cidade modifica-se, rejuvenesce, transforma-se, das pedras das ruas à crista dos monumentos.

Aí estão, demonstrando a influencia benéfica dessa visita real, as notícias da imprensa, registrando essas alterações. Calça-se uma rua dos subúrbios? Para que? Para o rei Alberto ver... Modifica-se o palácio Guanabara? Reforma-se o jardim da praça Maná? Aumenta-se o edifício da Prefeitura? Com que intuito? Para o rei Alberto ver... Até a pintura das carroças de lixo, ordenada pela Limpeza Publica, já foi atribuída à próxima visita de sua majestade.

Isso, no que está patente, visível, positivo. Os melhoramentos privados, secretos, de iniciativa da população, estes ainda são mais numerosos, mais sérios, mais significativos do nosso entusiasmo. Dezenas de vestidos de baile, "para o rei Alberto ver", já foram encomendados aos grandes costureiros daqui, de Paris e de Londres. Há, mesmo, até, nas rodas elegantes, quem se esteja entregando, pessoalmente, na cidade, com o mesmo fim, a melhoramentos mais interessantes.

Um destes dias, entrava eu no Instituto de Beleza, onde ia comprar um vidro de tintura para o cabelo, quando encontrei, no salão de espera, a minha velha amiga D. Sofia Pedreira, que aguardava, ali, pacientemente, a lindíssima viúva Odete Aires, que se achava, no momento, no gabinete do cabeleireiro. Começávamos nós a conversar sobre coisas sem importância, quando a formosíssima senhora suspendeu o reposteiro, e apareceu à porta, radiando e cheirando, como uma grande rosa que desabrochasse num vaso.

- O senhor por aqui, conselheiro? - gritou a encantadora criatura, com alvoroço, e com todos os dentes, estendendo-me, de longe a sua mão rosada e fina, onde as unhas faiscavam, rubras, como corais.

- É verdade, - expliquei, titubeando.

- Vim comprar uma caixa de pó para dentes... E a senhora?

- Eu? - respondeu, rindo. - Eu... Olhe?

E, espiando para um lado e para outro, a ver se não nos observavam, suspendeu até o ombro deslumbrante a manga curta e larga do finíssimo vestido de seda, mostrando a parte inferior e extrema do lindo braço de mármore, fina, alva, lisa, como de uma criança.

- Veja! - ordenou-me.

E já no primeiro degrau da escada, por trás do leque, piscando-me um olho, com brejeirice:

- Para o rei Alberto ver.

Fontes:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925. Disponível em Domínio Público.  
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segunda-feira, 17 de março de 2025

Adega de Versos 137: Juan Ramón Jiménez

 

Figueiredo Pimentel (Os anões mágicos)

I
Custódio era sapateiro-remendão, vivendo exclusivamente do seu ofício.

Todavia, por mais que se esforçasse, por mais que trabalhasse, nunca recebia justa recompensa do seu insano labor. Por isso era pobre, paupérrimo.

Chegou uma ocasião em que se viu quase na miséria. Haviam-lhe encomendado um par de botas de verniz. Com o lucro desse trabalho, que ia ser muito bem pago, desde que ficasse bom e fosse entregue no dia marcado, sem falta, contava comprar mais cabedal, e, assim, aprontar alguns pares de botinas, que tencionava vender vantajosamente.

Contudo, no dia em que ia começar o serviço, adoeceu. Foi uma fatalidade, porque não podia dar as botas no dia designado, e, desse modo, ia perder o verniz, em que empatara o único dinheiro que lhe restava.

À noite deitou-se, devorado por violentíssima febre.

Pela manhã acordou ainda mais doente. Assim mesmo, febril, tiritando de frio, e com terrível enxaqueca, tentou trabalhar. Foi procurar o verniz, e soltou uma exclamação! Na véspera apenas havia cortado o couro, e, no entanto, já estava feito o par de botas de montar, um trabalho esplêndido, digno, de um hábil artista.

Foi grande a sua surpresa, e nem sabia como explicar fato tão extraordinário.

Apanhou os sapatos, examinado-os atentamente, virando-os de um lado e do outro; estavam muito bem-feitos, e não tinham nem um ponto sequer fechado, sendo obra de causar admiração.

Quando veio buscar a encomenda, o freguês pagou mais do que havia tratado, tão satisfeito ficou.

Com o dinheiro dessa venda, o sapateiro foi comprar couro para fazer dez pares de botinas.

Trouxe-o para casa, e à noite cortou-o, deixando-o para fazer a obra pela manhã.

Mas, ao outro dia, quando se dirigiu para a sua mesa de trabalho, encontrou tudo pronto, como na noite anterior.

Dessa vez também, não faltaram fregueses. Com o dinheiro que produziu a venda, ele pôde comprar couro para outros pares.

No terceiro dia as botinas estavam prontas. E assim sucedeu noites e noites seguidas, durante bastante tempo. Todo o couro que Custódio cortava de noite, aparecia pronto, transformado em pares de botinas, muito bem-feitas, de modo que o sapateiro foi melhorando, a ponto de ficar quase rico.

II
Uma noite, na véspera de Natal, quando acabava de cortar couro, indo deitar-se, voltou-se para Adelina, sua mulher, e disse-lhe:

– E se nós passássemos a noite em claro, para ver quem nos ajuda dessa maneira?

Adelina concordou no que lhe propunha o marido. Deixando uma lamparina acesa, ocultaram-se os dois dentro de um guarda-roupas, por trás da roupa, e esperaram.

Quando o relógio bateu meia-noite, dois anõezinhos, completamente nus, sentaram-se na mesa do sapateiro, e apanhando o couro cortado, com as suas mãozinhas começaram a coser, furar e bater com tanta ligeireza e cuidado que não se ouvia barulho algum.

Trabalharam sem cessar, até que a obra ficou pronta, desaparecendo então subitamente.

No dia seguinte, Adelina disse:

– Aqueles anõezinhos nos têm enriquecido: é preciso que nos mostremos reconhecidos. Eles devem sentir muito frio, andando assim nus, sem nada sobre o corpo. Sabes? Vou coser uma camisa para cada um, um paletó, uma calça e um colete, e lhes fazer um par de meias de tricô, e tu fazes para cada um, um par de botinas.

Custódio aprovou a ideia da mulher e, à noite, quando tudo estava pronto, colocaram os objetos sobre a mesa em vez do couro cortado para os sapatos, e ocultaram-se de novo, para ver de que modo os anões recebiam os presentes.

À meia-noite, os anões chegaram, e iam começar o trabalho, quando em lugar do couro encontraram as roupas. A princípio mostraram grande espanto, que depressa se transformou em grande alegria.

Vestiram imediatamente a roupinha, e começaram a cantar e saltar:

– Nós somos uns lindos rapazes!... Adeus, couro, sapatos e botinas!...

Depois começaram a dançar e saltar por cima das cadeiras e bancos, e sempre dançando, ganharam a porta e desapareceram.

Desde aquele momento ninguém tornou a vê-los. Custódio, porém, continuou a ser feliz o resto de seus dias, e tudo quanto empreendia saía conforme os seus desejos.

III
Havia numa casa uma pobre criada muito trabalhadora, chamada Isabel. Todos os dias ela varria a casa, e depois juntava o cisco, que colocava em frente à porta da rua.

Uma manhã, quando começava o trabalho, achou uma carta no chão. Como não sabia ler, pôs o caixão de cisco no chão, e foi levá-la aos patrões.

Era um convite da parte dos anões mágicos que lhe pediam para ser madrinha de um dos seus filhos.

Isabel não sabia que resolver, mas depois de muitas hesitações, como lhe disseram que era muito perigoso recusar, aceitou.

No dia marcado, três anões vieram buscá-la, e levaram-na para uma caverna, na montanha onde moravam.

A mãe do anãozinho que nascera, estava num leito de ébano incrustado de pérolas, com colchas bordadas a prata. O berço do recém-nascido era de marfim, e a bacia de banho, de ouro maciço.

Depois do batismo, a criada quis voltar imediatamente para casa. Os anões, porém, pediram-lhe muito para ficar mais três dias com eles. Ela anuiu ao pedido, e passou esse tempo em festas, porque os anõezinhos lhe faziam o mais agradável acolhimento.

No fim de três dias, como quisesse absolutamente regressar, os anões encheram-lhe os bolsos de ouro, e conduziram-na até à saída do subterrâneo.

Chegando à casa dos patrões, Isabel recomeçou o trabalho de todo dia, e apanhou o caixão do cisco, o qual ainda estava no mesmo lugar em que deixara, o que a admirou sobremaneira. Estava varrendo, quando saíram da casa uns homens desconhecidos para ela, que lhe perguntaram quem era e o que queria.

Foi só então que a criada soube que não estivera com os anõezinhos apenas três dias, como julgara, mas sete anos inteiros, e que durante esse tempo, seus patrões haviam morrido.

IV
Um dia os anões roubaram de uma mulher o filhinho, que estava no berço, e puseram em seu lugar um pequeno monstro, que tinha uma cabeça muito grande e dois grandes olhos fixos, e era insaciável, esfomeado, querendo comer e beber a todo o momento.

A pobre mãe foi pedir conselho a uma vizinha.

Esta aconselhou-a a levar o monstrengo para a cozinha, e colocá-lo em cima do fogão, acender o fogo ao lado dele, e ferver água em duas cascas de ovo. Isso faria rir o monstro, e se ele se risse uma vez, seria obrigado a partir.

A mulher fez o que a vizinha lhe tinha ensinado. Assim que viu as cascas de ovo cheias de água, sobre o fogo, o monstro exclamou:

– Nunca vi, se bem que não seja novo, ferver água em casca de ovo! 

E soltou uma gargalhada.

Apareceu imediatamente, um bando de anões, que trouxeram o verdadeiro filho, colocando-o no berço, e levando o monstrengo em sua companhia.
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ALBERTO FIGUEIREDO PIMENTEL nasceu e morreu em Macaé/RJ, 1869 — 1914 foi além de poeta, contista, cronista, autor de literatura infantil e tradutor. Manteve por muitos anos, desde 1907, uma seção chamada Binóculo na Gazeta de Notícias. Publicou novelas, poesia, histórias infantis e contos. Um de seus grandes êxitos foi o romance O Aborto, estudo naturalista, publicado em 1893, e por mais de um século completamente esgotado. Como poeta, participou da primeira geração simbolista chegando a se corresponder com os franceses. Era amigo de Aluísio Azevedo, com quem trocou cartas, enquanto o autor de O Cortiço estava fora do país como diplomata. Poeta, romancista, escritor de literatura infantil, ganhou destaque e se perpetuou nos compêndios da literatura brasileira. A coluna Binóculo, assinada pelo autor na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, de 1907 até 1914, obteve grande sucesso entre leitores e leitoras, ditando moda, o que faz de Figueiredo Pimentel o primeiro cronista social da capital. Era ele quem tratava das novidades da moda, do bom gosto, do chique em voga em Paris e que deveria ser aqui aclimatado. Obras: Fototipias, poesia, 1893; Histórias da avozinha, conto - somente em 1952; Histórias da Carochinha; Livro mau, poesia, 1895; O aborto, 1893; O terror dos maridos, romance e novela, 1897; Suicida, romance e novela, 1895; Um canalha, romance e novela, 1895.

Fontes:
Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. Publicado originalmente em 1896. 
Disponível em Domínio Público. 
Imagem criada por Feldman com Microsoft Bing

José Feldman (A Colisão da Balbúrdia)

Era um dia com muitas nuvens na cidade, e dois idosos José e Marlene estavam a caminho do mercado. José dirigia seu velho fusquinha, enquanto Marlene estava atrás do volante de seu karmann guia, um carro pequeno e brilhante. Ambos estavam ansiosos para comprar os ingredientes do almoço.

Enquanto se aproximavam de um cruzamento, José, distraído, tentava se lembrar de uma velha receita.

— Ah, eu preciso de batatas! — gritou ele para si mesmo, sem perceber que o semáforo estava vermelho.

Marlene, que estava prestes a virar à direita, viu José avançar. Ela tentou buzinar, mas o som do seu carro era mais como um "bipe" tímido.

— Olha o sinal! — gritou Marlene, mas era tarde demais.

BAM!

Os carros colidiram com um estrondo, e os dois motoristas ficaram paralisados por um momento, olhando um para o outro.

— José! O que foi que você fez? — exclamou Marlene, saindo do carro.

— Eu? Você que não olhou para os lados! — respondeu José, já saindo do fusquinha.

— Eu olhei, seu apressado! Você é que avançou o sinal! — Marlene bateu o pé, enquanto ajeitava o cabelo.

Os dois idosos começaram a discutir, levantando os braços e gesticulando como se estivessem no meio de uma apresentação teatral.

— Você deveria usar menos os ouvidos e mais o cérebro! — gritou José, apontando para Marlene.

— E você deveria usar mais os olhos e menos a boca! — retrucou ela, cruzando os braços.

As pessoas que passavam, começaram a parar para assistir à cena, algumas rindo, outras torcendo para que a discussão não terminasse em algo mais sério.

— Olha, gente! Um show de comédia grátis! — gritou um jovem, fazendo todos rirem.

— Calma, pessoal! Isso não é uma competição de quem grita mais alto! — comentou uma mulher idosa que passava.

Nesse momento, o guarda de trânsito Antunes, apareceu, com um ar de autoridade.

— O que está acontecendo aqui? — perguntou, olhando para os dois motoristas.

— Esse senhor avançou o sinal! — disse Marlene, apontando para José.

— Eu não avancei nada! A senhora é que estava distraída! — José respondeu, indignado.

O guarda olhou de um para o outro, tentando entender a situação. 

— Então, vamos lá, quem estava certo aqui? — indagou o guarda Antunes, tentando apaziguar a situação com um sorriso.

— Eu estava certa! — gritou Marlene.

— E eu também! — José respondeu, cruzando os braços.

A confusão só aumentava. Os transeuntes começaram a opinar.

— Eu vi tudo! A Dona Marlene estava certa! — disse um homem que estava vendendo frutas.

— Não, não! O José é um bom motorista! — defendeu uma mulher.

— Eu estava lá! A Dona Marlene estava tão distraída com a maquiagem que nem viu o sinal! — gritou um adolescente.

— A maquiagem é essencial para a segurança no trânsito! — Marlene protestou, dando uma piscadela para o guarda.

— Isso é verdade! Um bom batom pode salvar vidas! — disse uma idosa que estava assistindo a cena.

— Espera aí! — disse o guarda, levantando as mãos. — Vamos esclarecer isso. Quem se machucou?

— Ninguém! — disseram os dois em uníssono.

— Então, por que tanta confusão? — perguntou o guarda.

— Porque ele não sabe dirigir! — apontou Marlene novamente.

— E porque ela não sabe parar de falar! — José retrucou.

A situação estava tão engraçada que as pessoas começaram a aplaudir, como se estivessem assistindo a uma peça de teatro.

— Olha, gente! A disputa dos campeões de trânsito! — gritou o vendedor de frutas, fazendo todo mundo rir mais.

O guarda, percebendo que a situação havia tomado um rumo cômico, decidiu intervir para encerrar a confusão.

— Vamos lá, pessoal. Que tal um acordo? — sugeriu. — Vocês dois vão para o mercado, compram suas comidas e depois se encontram para um café. Assim, resolvem tudo de forma civilizada.

Marlene e José se olharam, ainda um pouco irritados, mas a ideia começou a fazer sentido.

— O que você acha, José? — perguntou Marlene, suavizando o tom.

— Eu acho que um café não seria tão ruim assim... desde que você não fique falando do meu jeito de dirigir! — disse José, já se rendendo.

— E eu prometo não olhar para o lado enquanto você toma café! — riu Marlene.

Assim, os dois motoristas se dirigiram para seus carros, deixando o guarda e os espectadores aliviados e felizes com a resolução da confusão.

— Até a próxima trombada, amigos! — gritou um jovem, enquanto todos riam novamente.

E assim, José e Dona partiram, prometendo que a próxima vez que se encontrassem, seria em um lugar onde não houvesse semáforos, apenas café e boas risadas.
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JOSÉ FELDMAN nasceu na capital de São Paulo. Formado em técnico de patologia clínica trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais; membro da Casa do Poeta “Lampião de Gás”. Foi amigo pessoal de literatos de renome (falecidos), como Artur da Távola, André Carneiro, Eunice Arruda, Izo Goldman, Ademar Macedo, e outros. Casado com a escritora, poetisa, tradutora e atualmente professora pós-doutorada da UEM, mudou-se em 1999 para o Paraná, morou em Curitiba e Ubiratã, morando atualmente em Maringá/PR em 2011. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a diversas academias de letras, como Academia Rotary de Letras, Academia Internacional da União Cultural, Academia de Letras de Teófilo Otoni, Confraria Luso-Brasileira de Trovadores, Academia Virtual Brasileira de Trovadores, etc, possui o blog Singrando Horizontes desde 2007, e Pérgola de Textos, um blog com textos de sua autoria. Assina seus escritos por Floresta/PR. Publicou mais de 500 e-books. Premiações em poesias no Brasil e exterior.

Fontes:
José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
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domingo, 16 de março de 2025

José Feldman (Guirlanda de Versos) * 26 *

 

Coelho Netto ( O “Rato”)

Vivia de esmolas num estreito e úmido quarto de estalagem, onde mal cabiam os móveis: a cama onde jazia prostrada a moléstia, uma pequena mesa, duas velhas cadeiras e uma arca. Acompanhava-a o filho, um rapazola de nove anos, sadio e robusto, de uma tal vivacidade que todos na estalagem não o conheciam senão pela alcunha: o Rato.

Era um dos primeiros que acordavam e, ainda escuro, fazia toda a limpeza do aposento, mudava a água nas bilhas, deixava ao alcance da mão da paralítica a cafeteira e o pão, e saía cantarolando. Saía, porque a mãe, julgando-o ainda tenro e fraco para o trabalho e não dispondo de recursos para manter-se, pedira um atestado ao médico que, por misericórdia a tratava e, entregando-o ao pequeno, dissera: — Vai e fica à porta das igrejas: e aos que passarem mostra esse papel e pede uma esmola para tua mãe.

O pequeno saiu, e, à noite, tornando à casa com algumas moedas, entregou-as à mãe; mas, no mesmo momento, rompeu em pranto, atirando-se, soluçante, sobre a velha arca.

A paralítica, atribuindo a angústia da criança à quantia escassa que trouxera, procurou palavras de consolo: — Não chores, meu filho. Hás de ser mais feliz amanhã; o que trouxeste basta para passarmos o dia. Deus velará por nós. Não chores.

O pequeno, porém, longe de consolar-se, afligiu-se ainda mais e, à noite, a paralítica que velava ouviu ainda durante algum tempo os soluços do filho. De manhã, porém, cedo, como de costume, levantou-se, e, depois do serviço, foi beijar a mão à velha enferma, e partiu.

Era tarde, quase dez horas da noite, quando o Rato apareceu na estalagem cantarolando. A mãe, que passara o dia cheia de cuidados, mal o viu entrar falou com certa severidade:

— Ah! Meu filho, a que horas vens? Muito deves ter esmolado para que só às dez horas da noite voltes a casa!

O Rato, porém, risonho, beijou a mão da enferma, e logo, metendo as mãos nos bolsos, pôs-se a tirar moedas e notas atirando tudo para cima da cama. A paralítica, sorrindo, disse:

— Então, bem te disse eu que hoje havias de ser mais feliz, meu filho...

— Sim, minha mãe, fui muito mais feliz, principalmente porque ninguém me injuriou.

— Como? Pois houve alguém que te injuriasse, filho?

— Sim, minha mãe, ontem. Como a senhora me havia ordenado, fui ficar à porta da igreja. Quando cheguei, já havia lá muitos pobres, uns cegos, outros aleijados; meti-me entre eles e logo começaram as injúrias, porque eu era uma criança sadia e forte que ia para ali vadiar, quando podia estar empregando o meu tempo em alguma coisa útil. Uns mandavam-me para a escola, outros para a oficina e, se aparecia alguém, vendo-me avançar com o papel na mão para pedir, empurravam-me, davam-me beliscões, e um atirou-me uma bordoada às pernas com a muleta.

“Tudo isso, porém, fazia-me rir; o que me fez chorar foi o que me disse um velho que levava um pequeno pela mão, um pequeno do meu tamanho.”

“Quando eu lhe pedi esmola, ele olhou-me carrancudo, meteu os dedos no bolso do paletó, tirou um níquel e ficou algum tempo a olhar-me; depois vagarosamente guardou a moeda e, puxando o menino, disse baixinho: — Verás, vai daqui direto para a taverna... — O pequeno, mamãe, olhou-me de tal modo, que eu senti o sangue subir-me ao rosto e as lágrimas saltarem-me dos olhos. Vendo-me chorar, o pequeno teve pena de mim e falou ao pai. Pararam, e eu enxugava os olhos, quando ouvi a voz do menino: — Toma! — Olhei, e vi que ele me estendia a moeda. Estive para recusar, mas olhava-me com tanta meiguice que não tive ânimo. Recebi-a, agradeci e guardei. Logo, porém, que os vi entrar na igreja, tirei-a do bolso, dei-a a um velho cego que estava sentado perto de mim, e desci. Desci os degraus, disposto a voltar para casa, mamãe, mas lembrei-me de ti, lembrei-me que nada havia em casa e pensei em pedir trabalho em algum lugar...”

“Foi então que encontrei o Vicente com um maço de jornais, apregoando. Pedi-lhe alguns e, fazendo como ele, fui vendendo, e com tanta facilidade, que não me ficou um só. Ele, então, ficou de arranjar-me maior quantidade para hoje e não mentiu.”

“Passei o dia todo vendendo jornais, primeiro os da manhã, depois os da tarde; e à noite o Vicente convidou-me para acompanhá-lo até a porta do Liceu, onde aprende, e onde quero que mamãe me faça entrar, para que eu não ande a pedir aos outros que me ensinem a apregoar as notícias dos jornais. Hoje ganhei mais do que ontem: e estou contente, mamãe, porque ninguém me tomou por vadio.” “Quando eu for mais forte, irei para uma fábrica, e tu não terás necessidades, nem ninguém me falará mais com o desprezo com que me falou o velho que me julgou tão mal...”

A paralítica, com os olhos rasos d’água, tomou a cabecinha loura do filho junto ao colo, e, beijando-a, disse comovidamente:

— Fizeste bem, meu filho; fizeste bem: a humilhação é a pior das afrontas. Fizeste bem, meu filho, e eu te abençoo.
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Fontes:
Olavo Bilac e Coelho Netto. Contos pátrios para crianças. Publicado originalmente em 1931. Disponível em Domínio Público.
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