terça-feira, 25 de março de 2025

Carina Bratt (Como uma turista extraviada)


O TEMPO. Sempre ele. Este tempo, o mesmo que não nos dá tempo, que nos tira o tempo, que nos rouba em surdina. Este tempo nada mais é que um urdidor invisível. Como tal, entrelaça as nossas vidas com fios de lembranças, muitas delas adormecidas no passado. Deitada na minha varanda, a rede balouçando vagarosamente, contemplo o céu lá no infinito. Um infinito mavioso e sem nuvens, embeleza meus olhos. Os prédios à minha frente, do outro lado da alameda, parecem mudos, tristes, vazios e sem vida. Só parecem. Sei que formigam vidas em todos os andares.

Contudo, nem todos os apartamentos refletem o magnetismo do pleno cotidiano com todo o alvoroço de uma comunidade buliçosa. Meu andar é alto. As construções horizontais ao alcance dos meus olhos, me permitem vasculhar cada canto, cada desvão. São condomínios de doze e quinze andares, enquanto o meu, de vinte, me deixa contemplar o topo de cada um, às vezes até sem ser vista. Estou acima das caixas d’água, das casas dos elevadores, da moradia do porteiro... neste momento, rindo das tramas que rolam em cada pavimento.

Ontem mesmo me lembrei que antes de me mudar para esta torre, morava numa rua estreita em Araçás (bairro próximo aqui da Praia da Costa) onde as casas ao redor pareciam sussurrar segredos. As janelas com seus rostos antigos, as flores murchas em vasos acondicionados nos parapeitos, davam conta de histórias de velhos amores e desencontros. Crianças (como eu) corriam pelas adjacências, descalças, riam alto, promoviam algazarras enquanto trocavam olhares desencontrados e distantes de qualquer aparência de felicidade.

Nesse tempo, as tardes se alongavam, e o sol se punha devagar tingindo o céu (o mesmo que agora contemplo da minha varanda enorme), com a diferença de que os tons se faziam mais claros. Os abraços dos que cruzavam (fossem indo ou vindo) tinham um tempo mais comprido, como se o calor daquele encontro objetivasse frear o tempo. Todavia, o meu tempo, o ontem dos meus idos de menina, avançava e deixava na poeira dos olhares as risadas, os sonhos, os abraços...

Coisa de uma semana atrás, fui passear num desses bairros onde morei aqui em Vila Velha. O bairro Araçás. As casas, agora, têm novas janelas, as pedras e a terra batida das vielas foram substituídas pelo asfalto. As crianças do meu tempo se fizeram adultas e num piscar de futuro, se espalharam pelos confins de outras localidades. Uma das muitas ruas, notadamente a que onde morei, a Montevidéu, mudou a sua personalidade. As interrogações de sorrisos delongados são apenas resquícios da minha memória.

O passado se dissolveu. Virou pó. Se fez envelhecido e em profunda solidão. O passado do meu tempo de outrora, se evaporou das cores originais e, hoje, o preto e o branco, tomaram conta das minhas fotografias sobre o piano. De tudo ficou um tempo obumbrado. O que vi nos idos das minhas tranças em meus cabelos, das minhas bonecas de porcelana, dos afagos de meu pai, das comidas de vovó e das guloseimas de mamãe, restou o cheiro gostoso de um ontem que se fez glorioso. Sabores e sensações, idem. Pedaços desencontrados de risadas e abraços, de quando em vez, me fazem afagos, mas parecem rupturados de cores vivificantes.

Imagino que o tempo que não nos dá tempo, da mesma forma que nos tira o tempo que não mais temos, nada mais é que um infeliz desalmado. Um ser vazio, infame, que tem o condão de mudar tudo. Tudo, menos o meu céu azul lá no infinito. O azul sem nuvens segue colorindo meus pensamentos, os prédios a minha frente, apesar de mudos, vazios e sem vida, continuam imutáveis. O meu passado não está só no que o meu tempo quer me mostrar.

Ele está presente dentro do meu ‘eu’ universo. Uma espécie de caixinha de recordações que ninguém de fora consegue acessar. Ninguém! Eu, da minha rede, envolvida no balanço dela, olhando o céu, vasculhando os apartamentos, perscrutando cada canto... às vezes capturando cenas engraçadas, outras participando de brigas e confusões, sorrio matreira. Também não me escapam casais se amando em contradições de sexo despudorado, pessoas indo embora, outras chegando. Não importa. Eu sou inteiramente feliz. Na verdade, euzinha, SOU A DONA DO MEU TEMPO.

Fonte:
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

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