terça-feira, 10 de julho de 2012

Folclore Brasileiro: Negrinho do Pastoreio (Recontada por Moacyr Scliar)

Olhem o mapa do Brasil. Na ponta do nosso país, lá perto da Argentina e do Uruguai, vocês vão encontrar o Rio Grande do Sul. Esse grande Estado não fazia parte do Brasil, quando os portugueses aqui chegaram; foi conquistado aos espanhóis depois de muita luta. Os chefes dessa campanha vitoriosa dividiram entre si aquele território, e assim ficaram com enormes propriedades. Elas se localizam principalmente na metade sul do Rio Grande, uma região que é conhecida como o pampa. É muito plana, só tem colinas suaves (conhecidas como coxilhas) e presta-se para a criação do gado. Assim surgiram as estâncias e nelas, o personagem típico do sul, o gaúcho. Seu trabalho principal era cuidar do gado, o que ele fazia montado a cavalo. Até fins do século dezenove, porém, boa parte dessa atividade estava entregue aos escravos negros. E foi por causa desses escravos que surgiu aquela que é a lenda mais famosa do Rio Grande do Sul, a lenda do Negrinho do Pastoreio. Tão famosa é esta história que ela foi recontada por grandes escritores, como Simões Lopes Neto. E há também uma canção dedicada ao personagem, uma canção que todos os gaúchos gostam de cantar. Vamos então conhecer o Negrinho do Pastoreio.

Isso aconteceu há muito tempo, na época em que ainda existiam escravos. Nessa época vivia no Rio Grande do Sul um estancieiro, um homem muito rico - e muito malvado, tão rico quanto malvado. Todos sabem que os gaúchos costumam ser generosos, hospitaleiros, mas esse estancieiro não oferecia sua casa para ninguém. E também não ajudava os necessitados.

O estancieiro tinha muitos bois, e também muitos cavalos. Entre estes, o seu preferido era um baio, quer dizer, um animal cujo pêlo era castanho puxando para o amarelado. O baio era um bom corredor, e o estancieiro gostava de desafiar os seus vizinhos para corridas de cavalo. Quem montava o baio era um escravo do estancieiro, um negrinho pequeno e magro. Tão desamparado era o pobre que nem nome tinha, muito menos padrinho ou madrinha; por isso se dizia afilhado de Nossa Senhora. O negrinho sofria muito, inclusive porque o filho do estancieiro, menino malvado, volta e meia batia nele.

Um dia, o estancieiro e um de seus vizinhos, dono de um belo cavalo, fizeram uma aposta alta - mil moedas de ouro - para ver qual dos dois animais era mais rápido. Muita gente veio assistir a essa corrida. Os gaúchos abriam suas guaiacas - uns cinturões muito enfeitados, que servem para guardar objetos - e de lá tiravam dinheiro para apostar. Dada a partida, os dois cavalos saíram em disparada, lado a lado. O pobre negrinho fazia o que podia: se perdesse a corrida, o estancieiro iria castigá-lo sem dó nem piedade.
E foi, infelizmente, o que aconteceu. Quase na chegada, o baio estacou de repente, empinou-se nas patas traseiras. Quando o negrinho conseguiu controlá-lo, já era tarde: o adversário tinha ganho a corrida.

O estancieiro, furioso, atirou no chão o dinheiro que devia. E quando chegou em casa descarregou sua raiva no negrinho: mandou aplicar-lhe uma surra de relho. E deu-lhe um castigo. Como a corrida tinha sido de trinta quadras (quadra é uma antiga medida de comprimento), o rapaz teria de ficar trinta dias no campo, cuidando de cavalos (um pastoreio, no linguajar dos gaúchos). Eram trinta cavalos pretos e mais o baio.

E ali ficou o negrinho. Como estava preso a uma estaca por uma corda, não podia se abrigar da chuva ou do sol forte. Uma noite vieram os guaxinins (uma espécie de cães selvagens) e, com os afiados dentes, cortaram o laço que prendia o baio. O cavalo saiu a galope pelo campo, e os outros o seguiram.

O negrinho, que estava dormindo, não viu nada. Quando acordou, o dia já clareando, e viu que os cavalos tinham fugido, começou a chorar. O estancieiro, avisado pelo filho malvado do que tinha acontecido, mandou dar outra surra no escravo. Surrou-o até a noite e aí mandou que fosse, na escuridão, procurar os cavalos. O negrinho acendeu uma vela e, gemendo de dor, saiu pelo campo, subindo e descendo as coxilhas. Os pingos da vela iam caindo no chão e, coisa prodigiosa, a cada pingo que caía, nascia uma luz, que iluminava o pampa. E assim o negrinho pôde achar os cavalos. Juntou-os todos e, exausto, deitou no chão e adormeceu. Ao clarear do dia apareceu de novo o filho do estancieiro, que - mas era um demônio, mesmo, aquele guri! - soltou os cavalos.

Desta vez, o estancieiro enlouqueceu de raiva. Mandou dar de novo uma surra no negrinho, mas uma surra de relho muito pior que de outras vezes. O negrinho ficou todo lanhado, quase em carne viva, o sangue escorrendo das feridas. E o perverso estancieiro mandou que o colocassem num formigueiro, para que as formigas o devorassem. E ali o deixou. Naquela noite e nas noites seguintes, teve o mesmo sonho: sonhou que tinha ficado muito rico, que tinha mil escravos, mil cavalos baios, mil filhos, um milhão de moedas de ouro.

Três dias depois, foi até o lugar onde estava o formigueiro, para ver o que tinha sobrado do pequeno escravo. Quando lá chegou, arregalou os olhos, cheio de espanto.

O negrinho estava ali, de pé, a pele intata - nenhuma ferida, nada. Junto a ele, o baio e os trinta cavalos pretos. E, vigiando-os, Nossa Senhora. Risonho, o negrinho pulou no baio e saiu a galope, conduzindo a tropa de cavalos...

Para a gente da região o pequeno escravo tinha morrido no formigueiro. Mas então os gaúchos do campo começaram a falar de uma tropa de cavalos que passava à noite, conduzida por um negrinho montando um baio. E daí nasceu uma tradição, no Rio Grande do Sul: quem perdeu alguma coisa no campo deve acender uma vela para o Negrinho do Pastoreio. É o que diz a canção: "Negrinho do Pastoreio / acendo esta vela pra ti / e peço que me devolvas / a querência que eu perdi". Querência, no linguajar gaúcho, é o lar, o lugar a que estamos ligados por laços de afeição. O Negrinho do Pastoreio mora para sempre na grande e acolhedora querência que é a bela tradição do Rio Grande do Sul.
Fonte:
“História recontada por Moacyr Scliar, com base no folclore gaúcho e na narrativa de Simões Lopes Neto”.

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