sábado, 14 de julho de 2012

José Gaspar (Olhares Difusos)

– Oh menina… deixe-me lá sair… a menina não sabe o que eu tenho para fazer…menina, menina!

Está um dia tão bonito. Elas pensam que eu não sei, mas consegue-se bem espreitar lá para fora pelo canto da janela pequena. Estamos no Inverno e num dia assim, soalheiro, tem que se ir para o campo. Calçam-se as botas de borracha e ala que se faz tarde, enxada e forquilha às costas, leva-se a trouxa para o chão fundeiro. O meu Manel cava a terra, tem que ir bem ao fundo, onde ela ainda está crua e, cômoro atrás de cômoro, eu disponho as couves. Estão desorelhadas, separadas do canteiro onde nasceram, mas a água que lhes faço chegar à raiz, o estrume e um pouco de adubo vão pô-las viçosas num instante.

Vai-se-me acabar a água antes de o chão estar completo, já se percebe o fundo do tanque. Contava que a água desse para a empreitada, mas o Inverno vai seco e não se pode arriscar a deixar as raízes à sorte. Tenho que aparelhar a Branquita e atrelá-la à nora. A Branquita é a burra, foi preciso um grande sacrifício para a comprarmos, mas é um belo animal e não estou nada arrependida. Vedo-lhe os olhos com uma saca de serapilheira e ponho-a a andar à volta do poço e ela, apesar de pequena, dá tal velocidade aos alcatruzes que depressa põe a correr uma levada de água. Tenho um grande amor a este animal, mesmo minorca a burra tem grande energia e, melhor ainda, é esperta, como uma burra que se preze. Faz-me pena vê-la ali à roda, como um cego, parece falta de respeito pelo bicho, mas de outra forma ela não era capaz de fazer o serviço.

Estas couves, se Deus nos der bom tempo, vão ganhar um tronco como deve ser, onde rebentarão folhas largas. Nesta terra que sempre criou couves já as vi de quatro e cinco metros de altura. Uns diziam que era milagre, outros que era um fenómeno, coisa de artes mágicas. Não sei o que foi, mas fiquei satisfeita por ter muita folha para a criação. Tanto as cabras como os coelhos, em anos desses, são lordes de manjedoura sempre fornecida. O mesmo se passa com a manjedoura lá de casa, que é uma maneira de dizer que a panela pode fazer a sopa farta, que com enchido da talha e toucinho da salgadeira vai mantendo a gente a mexer. Quando digo a gente estou a falar de mim e do meu Manel e também dos quatro pequenos, que estes cachopos precisam de comer como deve ser para se fazerem gente.

Mas têm-me aqui presa e não posso tratar da minha vida, o sol já se põe e lá se trespassou mais um dia em que podia ter feito as primeiras sementeiras. Lá vem ela com o prato com aquele caldo sem sabor… não me deixam tratar da fazenda nem do bácoro e assim não se arranja o que é preciso para a sopa, que a isto não se pode chamar sopa, porque falo de sustento a sério, não deste caldo deslavado.

– Oh menina, amanhã é que não posso falhar, está tudo tratado. De manhã passa o porqueiro, o homem que vende os leitõezitos, o meu Manel escolhe os bacoritos, dois machos, que as marrãs são mais sentidas na capadura. Já não é cedo, já não se vão fazer animais de ano, mas se as abóboras não faltarem no serrado e o milho encher a arca, hão-de arrobar como de costume. Não me dê esses comprimidos, menina, que me tolhem as pernas e fico sem forças para levar o balde com as lavaduras para o curral dos bacoritos!

Beterraba, batata, nabo, bagaço, farelo e fruta, quando abunda, tudo isto faz parte do mantimento dos porcos que criamos e que hão-de ser a base do sustento do lar. Parece que já os estou a ver a sangrar, os homens agarrados às pernas, ao rabo e ao focinho, a sangradeira a atingir o coração dos bichos, o esguicho de sangue, que eu mexo e remexo no alguidar de barro, para que não se faça grosso, não posso parar enquanto o líquido está quente. A carqueja a arder põe a coisa a jeito para se chamuscar o pêlo e entesar a carne dos animais. Não digo que não tenha pena, isso não sou capaz de dizer, porque um ano a alimentar os bácoros e a gente afeiçoa-se a eles. Já os vejo lavados, e agora já lhes abrem as carnes. Um homem atrás e outro ao peito: o das traseiras, com mil cuidados, corte minucioso e já ata a tripa, para não derramar porcaria, enquanto o da dianteira ensaia um corte profundo, junto às queixadas, que a facada no porco é sempre bem dada e já se adivinha que são animais de boas febras.

Depois é festa, é sempre assim, matança é festim. Os homens desmancham e salgam e embebedam-se enquanto apostam entre si no peso dos bichos. As mulheres lavam tripas,
fazem morcelas, migam e temperam carnes, cozinham à grande para a família, os amigos e os vizinhos, que um dia não são dias. Acabo por adormecer ao lume, sem forças para avançar para a cama de onde ecoa o ressonar do meu Manel. Mas, mais forte que o cansaço é a alegria de saber que a salgadeira está recheada com a carne que há-de temperar o caldo por mais um ano.

– Oh menina, apague-me esta luz, o sol já se põe e ao lusco-fusco a gente vai para a cama. Se a menina, sempre com essa sua batinha branca, fizesse o favor de correr a cortina eu dava-lhe uma farinheira e uma chouriça das minhas, quando estiverem mais secas, tenho um segredo no tempero que lhe vai deixar a boca a pedir mais, mas não posso contar a ninguém… Agora do que eu preciso é de dormir, não me faz falta essa botica, preciso de me levantar cedo, antes do sol nascer, para fazer o farnel do meu homem.

Nestes dias em que é preciso preparar a bucha é sempre da mesma maneira. Primeiro, às apalpadelas, risco um fósforo e com ele acendo uma pinha e o candeeiro a petróleo. A seguir amontoo lenha sobre as pinhas, a começar paus mais miúdos, para o lume ganhar força e o fumo espalha-se pela cozinha, mas num instante encontra o caminho pela chaminé larga. Já posso juntar lenha mais grossa, uma cepa ou uma cavaca, para ficar a arder ao longo do dia, que o enchido agradece. Com jeitinho, primeiro mais distante do calor e a seguir mais próxima, asso uma chouriça, que junto às couves que sobraram da ceia e que por ela aguardavam na marmita. Arrumo também um quarto de pão e uma maçã e o meu Manel fica com o avio pronto. Vai trabalhar para fora, à jorna, a enxertar árvores, que nisso dizem que é artista, foi um dom que Deus lhe deu.

O tempo está farrusco, o meu homem, que ouço a tossir enquanto se veste, arrisca-se a apanhar uma molha e a piorar a constipação que o tem apoquentado. Mas não há volta a darlhe, a cara que o dia vai ter espera-se no local de trabalho e abençoado quem inventou tal regra, porque de outra maneira muitos homens não chegavam a sair de casa ou da taberna com a desculpa de que se adivinhava temporal.

Aproveito para cortar mais tiras. Pego numa peça de roupa velha que já não usamos e, com uma tesoura, primeiro recupero os botões, depois tiro golas e bainhas, a seguir corto fitas com o maior comprimento que consigo, as quais enrolo em novelos gordos, uns coloridos e outros de cores mais murchas. De vez em quando, a Amarela, gata que tem o nome na cor, pega numa das bolas de tiras e desenrola-a. É uma brincalhona, mas não há tempo para tais desafogos, que o frio aperta e é preciso ter as mantas prontas quanto antes. Amanhã vou levar as tiras à Maria, minha vizinha tecedeira, que com elas vai tecer mantas de trapos. Quando ela as tiver acabado, o Inverno dos meus pequenos vai ser mais aconchegado, porque o peso dessas cobertas, durante a noite, enterra-nos na enxerga e, depois de aquecermos, esquecemonos das agruras da vida. Se o meu Manel aqui estivesse dava um pontapé à gata, que com o pêlo queimado pelo borralho aonde se aconchega parece saída de uma guerra. A mim, já se deve ter percebido, custa-me fazer sofrer os animais, que também são criaturas de Deus e vieram com a gente, que é como quem diz com os nossos antepassados, na grande arca de Noé.

– Deixe-me ir menina. Oh… a menina não é capaz de entender. Nasceu neste tempo em que não há responsabilidade, não há o sentido de que temos que fazer as sementeiras se
queremos colher o fruto. Mas, mesmo assim, uma coisa não basta para que aconteça a outra, é também necessário sachar, regar, espantar a passarada, porque a gente pode ter os cuidados todos e estar-se mesmo a ver que a safra vai ser das boas e… zás! Vem a passarada, ou outros bichos, que é coisa que por cá não falta, e de uma só vez desaparece o fruto maduro e o que estava para inchar. É preciso espantalhar, estar alerta. Mas a menina não percebe nada disso, dá-me uma ou duas pastilhas dessas que parecem grão-de-bico e desfalecem-se-me as pernas, a menina estudou para carcereira. Ah pois, agora está admirada, não sabia que eu conhecia uma palavra tão difícil… acha que aprendi a falar assim no meio destas pedras negras? Não, estive a servir em Lisboa, na casa de uns senhores, foi onde descobri muito do que sei… a senhora era professora, ensinou-me a ler e a ter boas maneiras e eu, à socapa, lia as revistas da época. Mas, nessa altura, a minha mãe adoeceu, tive que voltar para a aldeia… nunca mais de cá saí. Quando regressei ainda dei ajuda nas festas da igreja, depois veio o casamento e logo a seguir os filhos. Nesse tempo comecei a escrever um livro, ainda me lembro do título, chamei-lhe “Vila de Rei: rostos e olhares”. Depois… Tem que me deixar ir, menina, pela sua rica saúde. Tanta roupa que lá tenho para lavar e passar e dentro de poucos dias é a festa da Rainha Santa.

A festa da Rainha Santa é a única em que continuo a colaborar nas actividades da paróquia, porque se não houver gente a ajudar a celebração não se faz ou perde-se a grandeza que a tem marcado ao longo dos anos. Celebra-se o milagre das rosas e da rainha que era amiga dos pobres e lhes dava pão, mas, interpelada pelo rei, viu os hidratos de carbono que carregava transmutarem-se em rosas. “São rosas, senhor, são rosas”, o odor invadiu as narinas dos presente, ainda assim a barriga dos desgraçados continuou a dar horas, mas D. Isabel logo terá mandado fazer mais duas cozeduras de pão. Quanto a D. Dinis, era bom rei, porque mandou plantar pinhais e assinou tratados de paz. Homem de coração amolecido, fez-se poeta, mas não podia permitir que se andasse por aí a dar pão ao povo, que se habituava à barriga cheia sem nada fazer. Ora, um reino que, sabe-se agora, tinha tanto para andar perdia a energia e ficava como um carro sem gasolina na berma da estrada.

Na procissão da Rainha Santa, o meu mais novo vai de anjinho, com duas asinhas de renda e penas a toda a volta. Tem que haver sempre alguém para vestir os fatinhos, mas se alguns soubessem o diabinho que ele é, a quantidade de pássaros que ele engaiola e as patifarias que faz, parece-me que não o iam deixar seguir na procissão sem lhe darem um banho de água benta. A minha mais velha vai de Rainha Santa, escolheram-na por ser bemparecida, sai ao pai, mas vai de contra vontade, foram precisos vários serões para que eu a convencesse. Anda mouro na costa, há um rapazola filho de um comerciante da vila que lhe anda a fazer a corte. É verdade que se trata de um bom partido, mas não sei se os pais dele vão na conversa de ter uma nora sem fazenda. Já disse à cachopa para não se entusiasmar muito, não vá a coisa dar em desgosto, mas tive de lhe fazer ver que sendo ela, mesmo que só por uma tarde, a Rainha Santa isso vai torná-la a princesa da festa, o que lhe há-de ser favorável no interesse do rapazola. É certo que gostava de a ver casada com um bom partido, para amor e uma cabana já bastou este meu casamento, porque o vento entra pelas frechas da choupana e leva parte do amor, mesmo que ele seja muito. Mas cá por dentro mói-me sempre o receio de que o filho do burguês queira festa, se aproveite da moça e depois nos deixe a ambas alagadas em lágrimas. Mãe sofre.

– Já percebeu a minha urgência, não é verdade? Nem assim a consigo convencer? A menina não tem família? Não compreende a minha dor? Carcereira e só carcereira! Não pode ter, não pode, com esse coração de pedra. Ah, já aí vem com a sua arma, com essa seringa que não me deixa ser gente, com essa agulha que me adormece e aprisiona. Mas eu vou na mesma, mas antes de ir preciso de um banho, tenho o corpo amolecido por estes suores, colase-me ao lençol, é o meu sudário. A menina também não gosta de se sentir limpa? Depois do banho sentimo-nos puras e nestes dias soalheiros de Primavera apetece-nos homem. Consigo também funciona desta maneira, não é verdade? Quando o seu namorado está assim, de banho tomado, barba feita, perfumadinho, não lhe apetece atarraxar-se à frescura quente dele? E depois… bem, depois seja o que Deus quiser, que nestas coisas a gente não pode parar a vontade… arrepia-se-nos a espinha. Deixe-me ir menina, primeiro o banhinho e depois saio.

O meu Manel vai chegar do campo e, hoje que é sábado, em que o banho é mais geral, começo a andar num alvoroço, começa-se-me a formar um nó na garganta. É o nó do desejo, atado à espera de mãos habilidosas que o soltem. Ainda hoje, com este rebanho de filhos que Deus me quis dar, quando o pressinto de barba feita, a cheirar a sabão azul, começo a engolir em seco.

Depois da casa lavada, dos garotos aguados e da cozinha arrumada, passo pelas brasas num sono retemperador. A seguir, aqueço bem uma panela grande de água e despejo-a na banheira antiga que encontrámos abandonada no pinhal e que o meu homem ajeitou na pequena casa de banho improvisada. Desço lentamente na água mole e, desde logo, lavo os olhos vezes sem conta, para poder ver bem o prazer que o momento me dá. A seguir, pego no sabão azul, passo-o por todo o corpo, demoro-me nas partes mais íntimas, sem me perder em delírios, porque me estou apenas a preparar para o que a noite me vai trazer.

O meu Manel espera-me na cama, muito sério, preparado para o trabalho mais importante
do mundo. Enxugo o cabelo e deixo-o solto, só de manhã voltarei a fazer o carrapito, sinto-o dançar-me na lisura das costas. Não nos apressamos, se ele acelera sou eu que o travo, que lhe seguro as rédeas do ímpeto. Foi um caminho longo, porque tudo começou exactamente ao contrário, tinha eu dezoito anos, em que com três safanões ele me colocou a barriga da forma e do tamanho da lua cheia. Deixei-me embalar por aquele rapaz elegante, de palavras doces e, zás, eis-me casada à pressa. Mas não se pode amar de afogadilho, fica-nos o sabor a pouco, aprendi-o nas revistas que li à socapa em Lisboa. Quando ganhei coragem, depois de estrebuchar muitas vezes sob os safanões do meu Manel, passei eu para os comandos, deitei-o de costas, prendi-o sob o meu corpo e dei a cadência, num compasso novo para ambos. Depois da surpresa inicial do homem, foi nessa noite que nos casámos de verdade, foi ali que nos tornámos almas gémeas.

– Oh menina, menina, pelo que tem de mais sagrado, pela sua rica família, dê-me as minhas roupinhas, porque se eu não estiver em casa à noitinha pode sempre acontecer qualquer coisa de muito grave. Se eu não apareço, o meu Manel pode não se controlar. A
menina sabe o que isso é, não sabe? Eu conheci o seu paizinho, que Deus o tenha, morreu rebentado do fígado. Lembro-me bem de vocês terem que fugir de casa quando a aguardente lhe atiçava a ira. Era uma vergonha, ninguém falava disso, mas toda a gente sabia. Era normal se fosse numa casa de pobres, mas num lar abastado… E teve consequências, se não fosse aquilo a menina se calhar não era a carcereira de bata branca que é hoje. A meninice marca a gente, disso não há dúvida. Sofreu muito, eu sei, mas não é obrigatório que também faça padecer os que a rodeiam.

Com o meu Manel foi o negócio que esteve na origem do nosso tormento. Nascemos em famílias pobres, tanto ele como eu, acabámos casados à pressa, numa cerimónia triste, com meia dúzia de palavras de circunstância de um padre que me acusou de ir prenha perante Deus e uma dúzia de convidados esfomeados. O meu Manel não aceitava aquela condição e fez-se à vida. Nos primeiros anos, em conjunto, trabalhámos até à exaustão, para conseguirmos um pé-de-meia que nos permitisse olhar para o futuro com outros olhos. Estávamos a conseguir dar a volta por cima e um dia surgiu a oportunidade. Encontrava-se à venda uma serração no cimo da aldeia, não era coisa nova, estava ao abandono, muitas das máquinas achavam-se avariadas, mas o meu Manel começou a magicar, a fazer contas e mais contas, sem me dizer o que quer que fosse. Um dia, ou melhor uma noite, depois de nos termos amado, disse-me que gostava de comprar a serração, que tinha feito todas as contas, porque ele sabia da arte por nela ter trabalhado, e que em dois anos recuperávamos o dinheiro aplicado. Acrescentou que precisávamos de pedir algum capital, que já tinha falado com o senhor doutor, que estava tudo pensado. Ele cheirava a sabão azul, doseado com o que tínhamos transpirado durante a refrega dos corpos nus, e sorri-lhe a dizer que sim.

Arrancou tudo de vento em popa, recuperaram-se as máquinas, contrataram-se empregados capazes, começou-se a comprar a matéria-prima aos madeireiros e aquilo que se produzia tinha saída, porque o meu Manel sabia que a qualidade tinha que ser a imagem da casa. Um dia apareceu um tipo de uma empresa de Lisboa, queria fazer um contrato para a serração produzir só para ele. Trazia dinheiro adiantado e como andávamos apertados para cumprir as prestações do empréstimo não pudemos dizer que não. Depois de um ano em que os pagamentos chegaram dentro do prazo, a produção continuou a sair mas os cheques começaram a atrasar-se e deixaram mesmo de aparecer. O meu Manel confiou e, em pouco tempo, já devia aos fornecedores e aos empregados e o negócio estava em ruptura. A falência foi inevitável, mas como somos gente séria ainda hoje pagamos uma prestação a um banco pelo empréstimo que contraímos para podermos saldar todas as dívidas.

Comecei a ver que o meu homem voltava a casa cada vez mais bebido. No começo ficava calado num canto, depois começou a ralhar por tudo e por nada e um dia, porque as crianças faziam barulho com as suas brincadeiras, levantou a mão para lhes chegar. Travei-lhe o braço e quando o olhar turvo dele se cruzou com as minhas lágrimas disse-lhe pausadamente que ele tinha que escolher, ou a bebida ou eu. Nunca mais bebeu, mas agora que não apareço receio que ele não tenha escolha.

– Oh menina, menina… Pssst.

Não está cá a carcereira. Deve estar distraída ou a dormir. É a minha oportunidade, vou tomar um banho, encontro umas roupas e vou para casa. Não posso esperar pela manhã, é agora ou nunca. Com este andarilho dou os primeiros passos, depois as pernas vão desentorpecer e retomo a cadência da marcha. Já estou na casa de banho. Passo a água fria pela cara e, ai meu Deus… os comprimidos e as injecções estão a dar cabo de mim, os meus cabelos estão brancos e fracos, rugas de todos os feitios lavraram-me o rosto… ai… e agora as pernas fraquejam-me, se calhar é melhor descansar um pouco.
*
Relatório de óbito:
Nome - Maria de Jesus / Idade – 95 anos / Contactos da família – Desconhecidos […].

Fonte:
Município Vila de Rei

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