quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Danglei de Castro Pereira (Sousândrade: tradição e modernidade) Parte I

Resumo: O presente estudo procura contribuir para uma melhor compreensão do papel de Sousândrade dentro dos limites do Romantismo brasileiro. O artigo aponta para o fato de que sua poética não só perpetua o espírito libertário e revolucionário desse movimento, como também pode ser incluída em um Romantismo titânico. A partir desse romantismo racional, a poética de Sousândrade pode ser compreendida como precursora da modernidade.

1 Introdução

O propósito deste trabalho é estudar a presença de um olhar crítico em relação à tradição romântica na obra de Joaquim de Sousa Andrade ou como o próprio poeta se auto- intitulava, Sousândrade.

Selecionamos como corpus representativo da obra sousandradina fragmentos do poema O Guesa, em sua edição Fac-similar, organizada por Jomar de Morais, publicada no ano de 1979. A escolha se deu por acharmos que essa versão, sendo a última reedição de O Guesa, apresenta-se mais completa, oferecendo maiores possibilidades para o pleno desenvolvimento do trabalho.

Concordando com o posicionamento de Lobo (1986, p. 24), para quem o Romantismo teve um caráter “revolucionário e inovador – antes mesmo que o Modernismo preconizasse a deglutição do estrangeiro para sua reintegração na cultura nacional”, procuramos compreender esse movimento como ponto de partida para a Modernidade. Acreditamos que as antecipações à estética modernista encontradas na obra de Sousândrade – fato já apontado pela crítica do século XX[i] – estão intimamente relacionadas à racionalização imposta pelo poeta ao impulso emotivo primário do movimento romântico. Nossa hipótese é a de que o poeta maranhense, ao se apropriar da tradição romântica, o fez de maneira racional, tocando algumas características que ganhariam contornos definitivos com a arte do século XX.

O Romantismo brasileiro é visto aqui como um movimento amplamente heterogêneo, no qual podem ser percebidas duas vertentes principais: de um lado, uma vertente epigonal ou canônica, na qual prevalece uma visão conservadora marcadamente emotiva e extremamente dependente de modelos externos; de outro, uma vertente racional ou titânica, perpassada por uma maturação crítica e racional das características canônicas consagradas pela vertente epigonal e que, a nosso ver, pode ser percebida na poética de Sousândrade.

Como comenta Lobo (1986, p. 167), o “Romantismo tardio passou a apontar para novas soluções literárias, em busca de uma nova linguagem e um novo tipo de homem”. Esse “Romantismo tardio”, crivado de racionalidade, estaria na base do pensamento moderno. A partir desse prisma, centramos nossas considerações na modernidade de Sousândrade, entendendo-a como resultado de um olhar impregnado pelo Romantismo.

2 Romantismo: considerações preliminares

O Romantismo foi a expressão artística de uma sociedade em transição. O século XIX foi marcado por grandes mudanças sócio-econômicas como a Revolução Industrial, a Revolução Francesa, o crescimento e fortalecimento da classe operária, a transferência de grandes massas populacionais do campo para a cidade, além do fortalecimento e posterior ascensão da burguesia ao poder, que representaram uma mudança radical do comportamento do homem desse século.

Ocorre, assim, uma mudança de ordem social, e o Romantismo, como arte desse período, expressa as novidades e as agitações do “novo mundo”, expondo as expectativas e frustrações do conturbado homem do século XIX. Para Kal Mannheim (1959), o Romantismo foi a expressão dos sentimentos das camadas que ficaram à margem da sociedade. O artista romântico via, na arte, a concretização da “liberdade” materializada na rebeldia contra a estética vigente.

Sendo a expressão dos marginalizados, o movimento refletiria o desconforto do homem com seu meio, caracterizando o chamado “desajuste romântico”. Apresentando em seu âmago um profundo desapontamento com sua realidade, já que seus ímpetos eufóricos iniciais (concretização do ideário francês de Liberdade-Igualdade-Fraternidade) foram bruscamente interrompidos pelo aumento da pobreza e pela dificuldade de ascensão social na Europa do século XIX, o artista tenta, através da arte, expressar a possibilidade de mudança desse quadro degradante.

Diante desse quadro, o Romantismo expõe o desajuste do Eu com a realidade circundante. O sujeito nega a realidade para criar uma ilusão de equilíbrio. O mundo empírico não é suficiente para a expressão das aspirações do Eu; é preciso transfigurá-lo, transcendê-lo. Não podendo esse mundo ser alcançado na realidade empírica, o desejo de transcendência leva à transfiguração da realidade e, como conseqüência, a uma valorização da visão do Eu em relação ao mundo. “O mundo exterior nada é senão o mundo íntimo elevado a um estado secreto” (NOVALIS apud ROSENFELD, 1985, p. 158). Tem-se, então, o que Novalis denomina “transcendência romântica”.

Dessa forma, a transcendência configura-se como desejo de mudança, pois a perspectiva individual/subjetiva impõe a valorização da visão do Eu em relação ao “real’. O sujeito bifurca-se em duas possibilidades realizáveis: uma, centrada na realidade e outra, centrada na sublimação dessa realidade. Essas duas possibilidades complementam-se na esfera do Eu transcendente. Este, à medida que filtra a realidade, produz uma nova realidade através do olhar subjetivo sobre o mundo.

Centrado no traço subjetivo/individual, o movimento romântico, como representação de uma individualidade conflitante, torna-se complexo e escapa a uma definição exata e totalizadora, refletindo a inquietação do homem inserido no mundo. O romântico vive a contradição em seu grau máximo, pois, ao negar a realidade, nega a si próprio. Ao afirmar que seria necessário ter perdido todo o espírito de rigor para definir o Romantismo, Valéry (1999) já alertava para a dificuldade de uma delimitação exata da visão romântica. Segundo o crítico, é a totalidade complexa do movimento, imposta pelo olhar subjetivo/individual sobre o mundo, que dá a ele sua importância renovadora e o marca como ponto de influência sobre a arte moderna.

É justamente a complexidade do Romantismo que o leva a chocar-se com a linearidade objetiva e equilibrada da visão clássica. No lugar do equilíbrio clássico, surgiria no romântico a adoção do exótico, do mistério e de uma estética avessa à rigidez canônica. T S. Eliot (1989, p. 68), em comentário ao crítico John Middlteton Murry, observa que a diferença entre o clássico e o romântico está “entre o integral e o fragmentário, o adulto e o imaturo, a ordenação e o caos”. Para Rosenfeld (1993, p. 261), “o Romantismo é, antes de tudo, um movimento de oposição violenta ao Classicismo e à época da Ilustração”. O poeta romântico não quer pensar o mundo objetivamente, mas senti-lo em sua plenitude; a obra deve refletir aquilo que o Eu sente em relação ao mundo. Na busca por uma “pureza” expressiva, o artista romântico rebela-se contra a prisão imposta pela tradição clássica e, com isso, volta-se para o impulso emotivo, percebido como um mecanismo capaz de expressar os estados individuais em sua plenitude.

Permeada por uma rebeldia latente, tal postura proporciona ao movimento uma pluralidade expressiva, uma vez que o Eu muda sua perspectiva individual com o posicionamento do sujeito diante do mundo. Daí termos, nesse movimento, uma grande variedade de manifestações que lhe acabam outorgando uma enorme gama de possibilidades expressivas. Na Alemanha, por exemplo, o Romantismo deriva de um movimento surgido por volta de 1770, chamado “Strum und Drang” (tempestade e ímpeto) que, marcado por uma forte emotividade, teve uma atitude impulsiva em relação às características encontradas no discurso clássico.

Não obstante apresente afinidade com o “Strum und Drang”, o Romantismo alemão, propriamente dito, distingue-se dos “gênios impulsivos” no que se refere à irracionalidade impulsiva e à excessiva emotividade. Segundo Rosenfeld (1985, p. 154), o Romantismo na Alemanha “nada tem do titanismo fáustico dos gênios originais”, antes, busca a racionalização do ímpeto inicial dos Strümer do que sua perpetuação. Os artistas românticos alemães são racionais e tentam atingir o equilíbrio interior não pela pura emotividade, mas pela equalização racional desse elemento.

O poeta romântico alemão posiciona-se, assim, na interação racional com a sensibilidade emotiva. Dada essa tendência racional, a negação ao clássico, mais branda na vertente alemã, revela um fazer poético lúcido e consciente, valorizando, com isso, o trabalho estético como possibilidade de plasmar o impulso emotivo. Conhecida como Romantismo titânico, essa vertente racional do Romantismo alemão teve em Hölderlin um de seus maiores representantes.

Essas colocações vêm corroborar para a percepção da heterogeneidade imanente ao espírito romântico. Na Alemanha, por exemplo, os artistas procuram redefinir a realidade pela compreensão e interação e não pela simples emotividade. A esse respeito, Maurice Blanchot (1988) afirma que o Romantismo alemão teve um caráter político. Para esse autor, os alemães não querem negar a realidade, mas sim modificá-la por meio da interação do Eu com o mundo. Desejam, assim, retornar à situação de equilíbrio através da compreensão dos problemas que deterioram e corrompem os ímpetos positivos do homem. Para conseguir essa racionalização do ímpeto, os alemães buscam uma poesia emotiva trabalhada esteticamente.

Fonte:
Revista Linguagem em (Dis)curso, volume 4, número 2, jan./jun. 2004

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