Entrei.
No meio da sala, mal iluminada e forrada de tapetes amarelos, avistei um homem
alto, pálido, de barbas grisalhas, que se dirigiu para mim vagarosamente.
Ostentava largo turbante de seda branca, onde cintilava uma pedra que não pude
classificar. No seu semblante havia cansaço e esse não sei quê de misterioso
notado em todos quantos mercadejavam com a magia. Era o famoso feiticeiro
hindu. Os marroquinos do bairro, com aquela precisão com que o vulgo geralmente
apelida os tipos populares, haviam-no denominado “o mercador de sonhos”.
— Que desejais, ó jovem? — perguntou,
fitando em mim os seus olhos negros e perspicazes.
— Afirmaram-me — respondi — que o senhor
possui, graças a certos fluidos mágicos, o estranho poder oculto de fazer com
que uma pessoa tenha o sonho que quiser. Sou curioso. Quero experimentar os
encantos de sua magia, a força de seus fluidos maravilhosos. Quero sonhar.
— É verdade, ó muçulmano! É verdade —
confirmou o mago indiano. — Tenho, realmente, esse dom raro e precioso de poder
proporcionar às pessoas que me procuram todas as alegrias e todos os prazeres
de um sonho desejado.
E, apontando para uma larga poltrona escura
que estava a um canto, disse-me com gentileza:
— Senta-te e dize-me: com quem desejas
sonhar? Que espécie de sonho mais te agrada, ó maometano?
Contei-lhe então o motivo único da minha
visita àquele antro misterioso da magia-negra.
— Antes de tudo — comecei — devo dizer-lhe
que sou um indivíduo excessivamente romântico e idealista. Sempre senti a forte
atração das fantasias. Ultimamente, durante uma festa militar em Marraqueche,
conheci certa jovem cristã, filha de um francês de alta linhagem, que exerce
funções diplomáticas na corte do sultão. Apaixonei-me loucamente pela rumie (apelido
que os árabes dão aos cristãos franceses), mas não sei ainda se sou
correspondido. Não obstante, desejo sonhar uma vez ao menos com a minha amada,
um sonho claro e perfeito! Nesse sentido já fiz o possível, mas os meus sonhos
povoam-se de imagens quase sempre desconexas, em meio das quais nunca
vislumbrei a dona dos meus enlevos, a inspiradora do meu grande amor!
—
E qual é o nome dessa jovem ideal? — perguntou-me o feiticeiro.
—
Susana de Plassy.
—
Curioso — observou o famoso ocultista, passando vagarosamente a mão larga pela
testa bronzeada — muito curioso! Ontem, ao cair da tarde, fui
procurado por uma
jovem cristã que aqui apareceu acompanhada por uma escrava moura: a
minha formosa visitante pediu-me que a fizesse sonhar com um dos oficiais da
guarda do sultão, Omar Ben-Riduan! Indaguei do seu nome e soube que a jovem se
chamava Susana de Plassy!
Ao
ouvir semelhante revelação, um frêmito me percorreu o corpo todo e levantei-me
como se fosse impelido por alguma possante mola de aço.
—
Omar Ben-Riduan? Omar Ben-Riduan é o meu nome! Omar Ben-Riduan sou eu! Se ela
pediu que a fizesse sonhar comigo, é certo que me ama também.
—
Felicito-o, ó jovem — replicou o indiano, batendo-me, carinhoso, no ombro. — É
muito raro ver-se uma formosa cristã apaixonada por um muçulmano. Bem sabes o
imenso abismo que separa os adeptos de Mafoma daqueles que professam a religião
de Jesus!
Louco
de alegria, atirei um punhado de ouro ao velho feiticeiro e corri para casa.
Sentia-me alucinado como se estivesse sob a ação perturbadora de forte dose de
haxixe.
Reuni
alguns de meus mais íntimos, contei-lhes o que havia ocorrido e pedi-lhes que
me ajudassem a encontrar uma solução para o meu caso sentimental.
El Hadj (1) Ben Cherak, homem sensato e
muito relacionado na alta-sociedade marroquina, disse-me, sem hesitar:
—
Conheço muito bem o pai de tua apaixonada. É um cristão mau como um emir e mais
orgulhoso do que um paxá. Detesta os árabes e jamais consentirá que sua filha
se case com um muçulmano! Só vejo, portanto, uma solução: terás de raptar a
jovem Susana! E isso só conseguirás com a sua cumplicidade!
Seguindo
o conselho do prudente Ben-Cherak, fiz, naquela mesma tarde, os preparativos
para a minha fuga com a linha rumie. Passei a fil-leile (2) a conversar com os
amigos sobre a minha singular aventura.
Já tarde da noite, chegou à minha casa, de
volta, o portador que eu enviara ao rico palacete do nobre francês. Fui então
informado de que Susana oito dias antes havia partido para a Europa, a fim de
lá se casar com um fidalgo escocês.
Percebi,
no mesmo instante, que fora vítima de vergonhosa mistificação do indiano.
Revoltado
e furioso por causa do papel ridículo que havia feito, voltei novamente ao
antro do intrujão, resolvido a tirar tremenda desforra.
O
velho hindu — depois de atender a vários clientes que o esperavam — recebeu-me
calmo, cínico, o semblante plácido de quem nunca praticara ação censurável.
Gritei-lhe,
ameaçando-o com o punho fechado:
—
Miserável! Por que mentiu? Susana nunca veio aqui a este antro nojento!
—
Vamos devagar, meu jovem amigo — replicou o charlatão, imperturbável,
segurando-me pela mão que o ameaçava. — Não fiz senão o que tu me pediste. Vi,
casualmente, o teu nome gravado no cabo do rico punhal que trazes à cinta.
Jogando facilmente com o teu nome, pude proporcionar-te o encanto de uma ilusão
efêmera. Menti para que pudesses não somente sonhar com um amor impossível como
também acreditar nele!
E
concluiu, sardônico, terrível:
—
Afinal, o que vieste buscar aqui? Não foi um sonho? Não foi uma ilusão? Pois
bem, eis, precisamente, o que te vendi: Um sonho... uma ilusão...
________________________
Notas:
(1)
El-Hadj — titulo honroso que precede sempre o nome de todo muçulmano que já fez
a peregrinação à Meca.
(2)
Fil-leile — expressão intraduzível. Significa, mais ou menos, a parte da noite
que se segue ao pôr-do-sol.
Fonte:
Malba
Tahan. Minha vida querida.
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