001
Enquanto quis Fortuna que tivesse
esperança de algum contentamento,
o gosto de um suave pensamento
me fez que seus efeitos escrevesse.
Porém, temendo Amor que aviso desse
minha escritura a algum juízo isento,
escureceu-me o engenho co tormento,
para que seus enganos não dissesse.
Ó vós que Amor obriga a ser sujeitos
a diversas vontades! Quando lerdes
num breve livro casos tão diversos,
verdades puras são, e não defeitos...
E sabei que, segundo o amor tiverdes,
tereis o entendimento de meus versos!
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Camões fala da matéria prima de sua poesia - o Amor - e alerta que, para ser entendido, é necessário que se partilhe o mesmo sentimento
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002
Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
mas não servia ao pai, servia a ela,
e a ela só por prêmio pretendia.
Os dias, na esperança de um só dia,
passava, contentando se com vê la;
porém o pai, usando de cautela,
em lugar de Raquel lhe dava Lia.
Vendo o triste pastor que com enganos
lhe fora assi negada a sua pastora,
como se a não tivera merecida;
começa de servir outros sete anos,
dizendo:-Mais servira, se não fora
para tão longo amor tão curta a vida.
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Soneto narrativo de influência petrarquiana. O amor de Jacó por Raquel transcende a tudo e simboliza a fidelidade e a constância, fazendo com que o pastor viva para e pelo amor, embora a possibilidade de concretiza-lo seja remota. O amor é idealizado, perfeito. Inspirado no personagem bíblico do Gênesis.
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003
Busque Amor novas artes, novo engenho,
para matar me, e novas esquivanças;
que não pode tirar me as esperanças,
que mal me tirará o que eu não tenho.
Olhai de que esperanças me mantenho!
Vede que perigosas seguranças!
Que não temo contrastes nem mudanças,
andando em bravo mar, perdido o lenho.
Mas, conquanto não pode haver desgosto
onde esperança falta, lá me esconde
Amor um mal, que mata e não se vê.
Que dias há que n'alma me tem posto
um não sei quê, que nasce não sei onde,
vem não sei como, e dói não sei porquê.
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Mudanças são contínuas. O interessante neste soneto é o jogo de imagens sucessivas que em si mesmas expressam a movimentação dos acontecimentos,
pontos de reflexão do autor. Percebe-se que o ritmo vai acompanhando a estrutura do soneto até o final inesperado, quando é revelada uma mudança da própria mudança.
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004
Tanto de meu estado me acho incerto,
que em vivo ardor tremendo estou de frio;
sem causa, juntamente choro e rio,
o mundo todo abarco e nada aperto.
É tudo quanto sinto, um desconcerto;
da alma um fogo me sai, da vista um rio;
agora espero, agora desconfio,
agora desvario, agora acerto.
Estando em terra, chego ao Céu voando,
num'hora acho mil anos, e é de jeito
que em mil anos não posso achar ü'hora.
Se me pergunta alguém porque assi ando,
respondo que não sei; porém suspeito
que só porque vos vi, minha Senhora.
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Soneto em que Camões compõe o retrato feminino ideal. Pouco descritivo, no sentido físico, encerra aspectos psicológicos do ente amado - "morrer de olhos", "riso brando", "despejo quieto"... A força paradoxal dessa mulher aparentemente tão revoltada e frágil por aprisioná-lo.
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005
Amor é um fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.
É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.
É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.
Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?
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Inspirado em Petrarca, de quem toma o último trecho, estes versos trazem um dos temas mais trabalhados por Camões: a importância do engenho e da arte para cantar plenamente as diferentes faces do amor, materializado na beleza inatingível ("de vosso gesto / A composição alta e milagrosa") da mulher que o desprezara.
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006
Doces águas e claras do Mondego,
doce repouso de minha lembrança,
onde a comprida e pérfida esperança
longo tempo após si me trouxe cego;
de vós me aparto; mas, porém, não nego
que inda a memória longa, que me alcança,
me não deixa de vós fazer mudança,
mas quanto mais me alongo, mais me achego.
Bem pudera Fortuna este instrumento
d'alma levar por terra nova e estranha,
oferecido ao mar remoto e vento;
mas alma, que de cá vos acompanha,
nas asas do ligeiro pensamento,
para vós, águas, voa, e em vós se banha.
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Soneto descritivo em que o poeta oscila entre o ato de ser a natureza e o de ser visto por ela. Neste jogo, existe a troca de sensações que vão de benfazeja alegria, oferecida pela natureza ao poeta, a profunda amargura, causada pelo "mal" (saudade do amor perdido) que o entristece.
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Fonte:
Luís de Camões. Lírica de Camões: melhores poesias. Notas de Célia A. N. Passoni.
2.ed. São Paulo: Núcleo, 1997.
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