A cidade de Niampur, na Índia, — conta-nos antiga lenda — vivia outrora um santo hindu que se tornou famoso pelos profundos conhecimentos que possuía acerca das leis, costumes e crenças de todos os povos do mundo.
Chamava-se Kavira, o Bhagavã (1), esse grande e virtuoso sábio.
Um dia Kavira (Allah o tenha em sua glória!) e seu discípulo predileto Lahima Sen, como iam de peregrinação ao templo sagrado de Kasbin, caminhavam por uma larga e serpenteante estrada nos arredores de Hamadã, quando ouviram um alarido singular, que parecia provir do fundo da floresta.
Assustou-se o jovem discípulo com a inesperada bulha.
— Mestre — exclamou, dirigindo-se ao santo — alguma coisa de muito grave e extraordinário se passa na floresta! Ouço um barulho espantoso, como se uma legião de gênios infernais rompesse do seio da terra e viesse apupar o sagrado silêncio que dormia, há pouco, sob estas folhagens.
— Meu filho — respondeu o sábio — devemos procurar para os acontecimentos do mundo explicações simples e naturais. Por que atribuir a fatos mais correntes da vida origens milagrosas e fantásticas? Deus seja louvado! Tudo o que se passa na terra, repito, se prende a causas simples e naturais.
E como o discípulo continuasse a mostrar-se atemorizado com o ruído que ouvia, o mestre prosseguiu:
— Esse grande ruído que perturba agora o silêncio da floresta não é causado nem por gênios malignos nem por demônios em legião. Trata-se simplesmente de um elefante domesticado que os lenhadores obrigam a arrastar um tronco cheio de ramos e folhagens, pela estrada que atravessa a floresta!
Poucos passos depois, realmente, mestre e discípulo viram vários homens que conduziam, aos gritos, moroso e gigantesco paquiderme.
— Eia! Upa! Upa! Kab! — e o hercúleo animal arrastava, na verdade, um grande tronco, cheio de ramagens que remexiam o cascalho do caminho, produzindo um barulho ensurdecedor.
— É tudo assim na vida — observou o bom do Kavira. — É tudo assim na vida! Ouve-se um grande ruído, a inexperta fantasia se apresenta em dar-lhe origens demoníacas. Afinal... não passa o caso de um velho elefante a arrastar ramos secos pelo caminho!
Tinha o famoso Bhagavã proferido estas judiciosas palavras, quando avistou, sentadas à beira da estrada, três mulheres que choravam.
— Eis ali, ó mestre! — exclamou o jovem Lahima — três mulheres debulhadas em pranto! Alguma coisa de muito grave e extraordinário por certo lhes aconteceu.
— Não julgueis assim pelas aparências, meu filho — retorquiu Kavira. — Aquelas mulheres choram, com certeza, por algum motivo muito simples e natural.
— Eis ali, ó Mestre! — Exclamou o jovem Lahima — Três mulheres debruçadas em pranto! Alguma coisa de muito grave e extraordinário por certo lhes aconteceu.
E tomados de viva curiosidade aproximaram-se das três mulheres.
O sábio dirigiu-se à primeira e interrogou-a:
— Por que choras, ó infeliz? Que infortúnio te feriu tão cruelmente para que aqui te entregues ao desafogo das lágrimas?
— Ah! Meu senhor! — respondeu a mulher, entre soluços. — Sou uma desgraçada! Meu marido cada vez que se encontra comigo, nega-se a maltratar-me, não quer espancar-me! Insiste em dispensar-me o maior carinho e bondade!
E de novo entregou-se a copioso e desfeito pranto.
— É incrível! É extraordinário! — exclamou Lahima, assaltado por indizível espanto. — Esta rapariga chora por um motivo singularíssimo, nunca visto! Chora porque o marido não quer espancá-la! Como podemos explicar isto, ó mestre?
O santo Kavira (com ele a oração e a paz!), entreabrindo um sorriso de tolerância e bondade, cifrou nele a sua resposta. Aquele fato que assumia aos olhos do discípulo a feição de um acontecimento absurdo e inconcebível, deveria ter uma explicação simples e natural.
— Vejamos o que diz essa jovem — volveu ele, apontando para outra mulher que também se entregava ao derivativo das lágrimas.
— Ah! Meu senhor — lamentou a interpelada entre soluços. — Allah tenha piedade de mim! Sou Iasmina, filha de Abdul Ben Hamed, a mulher mais infeliz do mundo. Amo apaixonadamente meu marido. Tenho-lhe afeição sem limites, e, no entanto, o ingrato insiste em não querer casar com outra mulher! Não quer escolher outra esposa.
E através do véu claro que ensombrava o rosto da jovem, viam-se as lágrimas a escorrer-lhe pelas faces.
— É espantoso! É inverossímil! — exclamou Lahima. — Esta mulher chora por uma razão que jamais a fantasia humana poderia conceber! Chora porque o marido, que ela tanto estima, sujeito ao seu afeto, não quer casar com outra mulher!
E voltando-se novamente para o sábio, perguntou:
— Como explicas esta anomalia, ó tu que és sapientíssimo?
O piedoso mestre mais uma vez esboçou um sorriso que refletia toda a sua benevolência e brandura. Aquele fato, na aparência tão estranho, deveria ter, na verdade, uma explicação bem simples e natural.
Antes, porém, de justificar com palavras o seu elevado juízo sobre as estranhas razões de infortúnio alegadas pelas duas mulheres, aconselhou ao jovem que ouvisse também a terceira.
E esta, que era mais formosa que a flor azul do lótus, interrogada, assim falou:
— Sou uma infeliz, ó generoso príncipe! Sou a mulher mais desventurada do mundo! Casei unicamente por interesse, com um homem riquíssimo. Meu marido possui terras imensas, ricos palácios e numerosos escravos! Por sua morte todos os seus bens passarão para o meu poder. Há cinco ou seis dias, porém, foi meu marido assaltado por uma enfermidade gravíssima. Os médicos mais ilustres e famosos do país, chamados à consulta, declararam-no perdido, sem cura possível. Percebendo que ia ficar viúva, ajoelhei-me a seus pés e pedi-lhe que me repudiasse antes de morrer. Eu não quero ficar viúva, embora ambicione a riqueza que ele possui!
E, entre soluços, a pobre mulher prosseguiu:
— Meu marido, porém, penalizado com a sorte de minha família, insiste em não querer deserdar-me! Hoje ou amanhã morrerá e eu serei a sua única herdeira! Eis a minha enorme desdita, ó senhor! É por isso que eu choro!
— É positivamente espantoso! — observou Lahima, que mal podia exprimir-se de atônito que estava. — As razões de que se serve esta mulher para lamentar-se são na verdade inconcebíveis. Não quer ser viúva de um homem rico, ao qual se uniu unicamente por interesse! É positivamente absurdo!
Pela terceira vez o grande sábio hindu (Allah, porém, é mais sábio!), ao ouvir as exclamações do discípulo, deu mostras de branda alegria.
E como estivesse habituado a decifrar os mais complicados problemas da vida, falou desta sorte:
— Observei, raciocinei e posso, em conclusão, garantir com absoluta certeza, que estas três mulheres choram por motivos extremamente simples, frutos naturais da alma feminina! A primeira, pela maneira de falar e pelos grossos brincos de osso que traz, deixa perceber que é natural do Afeganistão. Ora, segundo uma antiga lei deste país, o marido que espanca a mulher é obrigado a dar-lhe, a título de indenização, jóias e vestidos novos! Ora, esta moça, como é muito vaidosa, chora porque o marido não a espancando de vez em quando não lhe dá o direito de exigir dele jóias custosas nem trajes vistosos. Chora, portanto, por um motivo simples e natural: chora por vaidade!
— E a segunda, ó mestre! Como explicar o caso desta Iasmina, a rapariga apaixonada?
— O caso de Iasmina, filha de Abdul Ben Hamed, ainda é mais simples de esclarecer. Trata-se, como facilmente pude observar — pelo véu, pelos trajes e pelo nome — de uma jovem árabe maometana. Como é notório, os muçulmanos podem ter até quatro esposas. Iasmina é, porém, a única. Sente-se, entretanto, cansada com os trabalhos caseiros e tem grande vontade de que seu marido tome uma segunda esposa, de modo que ela tenha mais descanso. Uma vida trabalhosa fará facilmente com que ela cedo venha a enfear e envelhecer. Quer, portanto, poupar-se, conservar--se formosa e sedutora para prender com seus encantos um marido que ela ama apaixonadamente.
E, ante o profundo pasmo do jovem, o grande sábio concluiu:
- Quanto à terceira mulher — que deseja ser repudiada pelo esposo moribundo — a explicação de suas lágrimas não oferece a menor dificuldade. Trata-se de uma hindu, cujas seitas religiosas são intolerantes. Segundo as crenças de sua gente, a viúva é obrigada a atirar-se à fogueira que consome o corpo do marido. Não se sentindo com coragem para tão grande sacrifício, por um homem que ela não ama, essa mulher prefere ser repudiada a ter de acompanhar o marido ao fogo! Que lhe poderá importar a herança do marido se os bens superabundantes não lhe hão de evitar a morte?
E Kavira, o santo hindu, concluiu, com um sorriso de bondade e candura:
— Esta, meu filho, chora porque tem medo da morte! E haverá coisa mais natural do que o instinto de conservação?
E ao longe no seio da mata sombria, ouvia-se, ainda, vagamente, o ruído que o elefante dos lenhadores fazia, arrastando a pesada carga pela estrada afora...
— É tudo assim na vida!
Uassalã!
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Nota:
1- Bhagavã - Aquele que está salvo. Bem-aventurado.
Fonte:
Malba Tahan. Minha Vida Querida.
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