segunda-feira, 2 de março de 2020

Dorothy Jansson Moretti (Bandeirante Sem Medo em Noite Escura)


Nada como uma fotografia — e posso falar de cátedra — para fazer-nos reviver um momento qualquer de nossa vida, que talvez houvéssemos esquecido completamente, não tivesse ele sido registrado pela objetiva atenta de um fotógrafo providencial.

Nos "arquivos implacáveis" de meu pai, defronto-me continuamente com essas situações. Há dias, revirando velhos álbuns, deparei com uma foto minha aos nove anos de idade, vestida com farda de Bandeirante. Reportei-me imediatamente aos meus tempos de grupo escolar, c mentalmente revivi dois fatos que de há muito estavam adormecidos em minha memória.

Um deles, ligado à história do escotismo em Itararé, foi uma excursão que fizemos à cidade de Itapeva.

Que agitação! Cedinho estávamos todos reunidos cm frente à casa de nosso monitor, o velho e querido Seu Peppo, italiano itarareense que era todo um folclore e que há de ser sempre lembrado como uma lenda, em nossa Itararé.

Dali partimos em forma para a Estação Sorocabana. Era de trem que se faziam quase todas as viagens naquele tempo. Acomodamo-nos nos bancos, alegres e animados. Foram sem incidentes as duas horas que durou o trajeto.

Chegando a Itapeva, fomos recebidos pelos escoteiros locais, com muita festa e demonstrações de amizade. Houve troca de abraços e de saudações gentis entre os monitores de lá e daqui. Um menino da família Lobo fez o discurso de recepção;

"Caríssimos colegas! Ao entrardes em terras faxinenses" (Itapeva naquele tempo era Faxina) …"Assim começava o discurso que foi muito bonito e muito aplaudido.

Logo depois iniciamos as atividades programadas por nossos amáveis hospedeiros para aquela visita, ocupando-nos toda a manhã.

Ao meio-dia o almoço foi num velho hotel e para nós, gente miúda, uma tremenda novidade comermos assim, todos juntos, servidos por garçons! Parecia-me um luxo tudo aquilo.

Na parte da tarde continuamos nossa interessante programação, sempre acompanhados e assistidos por nossos simpáticos anfitriões faxinenses que nos cumularam de atenções e gentilezas, dando-nos a maior demonstração de cortesia, camaradagem e perfeita educação.

Ao fim do dia estávamos de volta, felizes, emocionados, e cheios de histórias para contar.

O outro fato de que me lembrei, de menor importância mas não menos pitoresco, foi uma embananada em que me meti, por não ter prestado muita atenção a um aviso de Seu Peppo. Ele nos havia dito que no dia seguinte, às quatro horas, iríamos fazer uma de nossas movimentações habituais, que consistiam em longas caminhadas a pé, exercícios ao ar livre, corridas em bicicletas... coisas no gênero, que geralmente praticávamos de manhã. Às vezes, devido à distância que iríamos percorrer, levávamos um pequeno lanche para comermos na estrada ou no campo.

Não sei por onde andava o meu pensamento (sempre fui meio desligada), na hora em que Seu Peppo deu o aviso; mas chegando cm casa, participei à minha mãe a ordem recebida. Se ela estranhou, não me lembro. De madrugada chamou-me. Já estava com o café na mesa e a sacolinha de lanche pronta para eu levar.

Quatro horas da manhã seria escuridão total se as fracas lâmpadas dos postes não estivessem todas acesas. Incríveis tempos aqueles, em que uma garotinha saía só e tranquilamente de casa àquela hora, sem que nada ou ninguém a molestasse! A não ser um cãozinho que latiu para mim na beirada da esquina, ninguém mais tomou conhecimento dessa minha insólita aventura madrugona.

A casa de Seu Peppo ficava ali mesmo na outra quadra da Rua Quinze. Quando fui me aproximando, comecei a estranhar não haver luzes lá dentro, nem viva alma pelas imediações. Parei em frente ao portão, hesitante... "Bato ou não bato?"

Achei melhor esperar; talvez o relógio lá de casa estivesse muito adiantado.

Passaram-se alguns minutos. E então, repentina como um relâmpago, acendeu-se uma luzinha, não na casa de Seu Peppo, mas bem lá no fundo de minha cabecinha avoada...

"Será que ouvi direito? Vai ver que é às quatro da tarde... Claro, sua idiota! É isso mesmo!…"

Era, Voltei para casa sem graça, murchinha e chateada, mas sem outro prejuízo que não fosse a perda daquelas horas gostosas do sono da madrugada... logo eu que nunca fora muito amiga de levantar com as galinhas...

Fonte:
Dorothy Jansson Moretti. Instantâneos. São Paulo: Dialeto, 2012.

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