sábado, 22 de agosto de 2020

Cora Coralina (O Cangaceiro)


Aquela cidadezinha do Norte do Estado tinha sido, em todo tempo, teatro de velhas lutas políticas, partidárias, sociais e econômicas. Muita briga feia de homem ensopara de sangue a areia daquelas ruas descalçadas. Por nada, ninharia, toma-lá-dá-cá, eram tiros, facadas, pancadaria. A impunidade era a lei vigente da terra. Um ou outro pobre, desapadrinhado, era que, dentro das grades, justificava a existência da cadeia, ali. Agora, porém, estava tudo mudado, e a cidade, pacata e sossegada. Com a descoberta dos cristais do Chiqueirão e do Pium, distante 30 léguas, o pessoal de fora, bagunceiro e de instinto criminoso, tinha se passado todo para o cristal.

A cidade tinha feito, automaticamente, a higiene dos indesejáveis. Até o delegado, que ativava maior desordem, com sua valentia, ignorância e falta de prudência, tinha ido pra lá, onde, além de autoridade do novo distrito, sustentava sua meia-praça com um garimpeiro do Piauí.

Foi o tempo em que a gente firme, alicerçada e conservadora do lugar, de acordo com o prefeito, entendeu de procurar Seu Lilico, ótima pessoa, caridosa e muito de bem, para o cargo, acéfalo, de delegado de polícia. Seu Lilico refugou de entrada. Não tinha jeito para aquilo; não tinha traquejo, não tinha preparo, não desejava se meter num cargo que só viria a lhe dar aborrecimentos.

Os amigos insistiram. Não podiam ficar sem delegado. Era da Lei e, se o cargo havia de ir para outra pessoa que comprometesse o sossego do lugar, melhor seria que ficasse com ele, Lilico, que era da confiança de todos, Um assoprozínho na vaidade vence resistências depois de boas falas. Não havia mais jeito de recusar, e Seu Lilico acabou aceitando. Como era calmo, moderado, tímido mesmo, e sempre de justa razão, passou a haver ordem na cidade e a paz de Deus entre aquelas criaturas.

Foi quando chegou ali um caboclo com ares de jagunço nordestino. Chapéu de serigoba, rebatido na testa, a meio encourado e aferrado de suas armas. Sozinho, se aboletou num rancho largado na saída da cidade e por ali se deixou ficar sem pedir trabalho, sem conversar e procurar intimidades com o povinho da redondeza.

Aquela gente, desconfiada por natureza e acostumada, de velhas tradições, com criminosos, tiros e brigas, começou a achar no indivíduo, assim fechado, traços e parecença com um facínora perigoso, meio conhecido de uns tantos.

Vieram o fuxico, a agitação, o diz-que-diz. Correu, então, que o tal era um inimigo de Seu Balduíno, dono da Loja do Sol, de quando esse vivia em Carolina, no Maranhão, e comprava couro de bode. Que, por via de mulheres, ou de negócio, tinha vindo ali para ajustar com Seu Badô uma velha conta de rancor e tiros trocados.

Ninguém sabia nada ao certo; mas assim mesmo é que sempre se fez a história dos homens. Os repórteres do boato tomaram conta do assunto e o jornal falado das esquinas, com suplemento diário, passou a ter várias edições. A cidade se achou unida e coesa. Seu Badô era negociante estimado. Homem recursado, de crédito largo e preceituoso; e os amigos tinham várias folhas lançadas no grande borrador do balcão e que passavam, automaticamente, para a conta-corrente, onde dormiam, por tempo indeterminado e prazo longo, o tranquilo sono da espera. Por esta e mais aquelas, todos cerraram fileiras e juraram que Seu Balduíno não seria desacatado,

Ficou resolvido que se devia prender o cangaceiro que, pelo jeito e contado, era mesmo o Felinho, de Carolina, conhecido na zona como chefe de bando armado.

Havendo na terra um delegado, foram falar com ele. Queriam fazer tudo dentro da lei, civilizadamente, e aquela prisão só podia ser emanada de autoridade competente. Contaram o caso do cangaceiro que tinha vindo ali para matar Seu Balduíno e arrasar com a família do negociante. Acrescentaram mais endechas, mesmo que o Felinho - decerto era ele - estava armado de 32, rifle e lapiana e que seu bando jagunço pombeava as estradas, esperando o momento de se reunir para atacar a Loja do Sol, liquidando com Seu Badô.

Seu Lilico, que nada sabia, ouviu o caso com espanto e uma vaga tremura pelas pernas. Não esperava por aquela entalada. Como era homem de brio, amigo de Seu Badô e autoridade por aclamação, não achou por onde se virar e topou a parada; tanto mais que muita gente já estava ali na sala esperando a ordem de prisão.

Seu Lilico mandou chamar o cabo e os dois soldados do antigo destacamento que tinha se passado para o garimpo. Assinou o mandado e recomendou ao cabo que tivesse muita cautela e fosse com. muito jeito.

Um fuxiqueiro logo anotou que o homem fora avisado da prisão e que estava esperando os soldados, comendo fogo e com a mão na escorva. Seu Lilico pediu licença e se retirou para o quarto. Era homem de devoção e de preceito. Foi se ajoelhar nos pés de Nossa Senhora da Abadia, pedindo para se sair bem daquele aperto e, sobretudo, que não houvesse sangue de homem derramado.

Seu Lilico era congregado. Nas procissões era da opa e da vara do pálio, vara da frente. Não dava passada ou tomava deliberação sem apelar para algum santo protetor. Além de vários quadros pelas paredes, tinha oratório no quarto e, dentro de um antigo baú de tampa pesadona, uma linda imagem, novinha, da Virgem, que mandava vir de fora e para quem apelava em suprema instância.

Tinha despachado os mantenedores da lei com ordem de prisão para o cujo cangaceiro, parecido com o Felinho, facínora perigoso. Ali, sozinho no seu quarto, abriu o bauzão de tampa pesada e rezava contrito de joelhos, debruçados para dentro, onde estava a Senhora tão linda com a criança nos braços, pedindo que fizesse tudo correr bem, que mandasse o cangaceiro se entregar sem resistência, com as armas, os balázios, o facão e os canivetes e que o bando que pombeava a cidade se dispersasse sem tiros e fosse parar lá nos Piuns.

Que ele faria a novena e a romaria do ano, a pé e curtindo sede. Rezando assim, fervoroso e contrito, batendo no peito um mea-culpa mais cheio, esbarrou com o cotovelo na tampa mal-escorada do baú, que lhe veio duro na cabeça, na hora certinha em que passava um pião de boiadeiro, correndo a cavalo pela rua de sua casa, atrás de um boi assomado e gritando:

- Arreda minha gente, arreda, que é brabeza!...

E como o boi investia, alguns disparos foram dados. Com a pancada seca na cabeça e com a cavalhada, a gritaria e os tiros na sua rua, Seu Lilico viu foi o cangaceiro dentro de casa. Ali mesmo, ajoelhado com a tampa no cocuruto e arcado para dentro do baú:

~ Não faz isso comigo não. Seu Felinho... Não faz assim não, Seu Felis... Bem eu que não queria ser delegado... Não me mata, seu cangaceiro, eu mando relaxar sua prisão...

A mulher de Seu Lilico, que estava na cozinha, ouvindo aquele vozerio surdo no quarto, empurrou a porta e entrou. Levantou a tampa pesadona do baú e tirou o marido daquela atrapalhação. Bom delegado, Seu Lilico. Por ele não vinha mal ao mundo.

Fonte:
Cora Coralina. Estórias da casa velha da ponte.

Nenhum comentário: