domingo, 8 de agosto de 2021

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia) XXVI

“BEM, HOJE QUE ESTOU SÓ E POSSO VER”

 
Bem, hoje que estou só e posso ver
      Com o poder de ver do coração
Quanto não sou, quanto não posso ser,
      Quanto se o for, serei em vão,

Hoje, vou confessar, quero sentir-me
      Definitivamente ser ninguém,
E de mim mesmo, altivo, demitir-me
      Por não ter procedido bem.

Falhei a tudo, mas sem galhardias,
     Nada fui, nada ousei e nada fiz,
Nem colhi nas urtigas dos meus dias
     A flor de parecer feliz.

Mas fica sempre, porque o pobre é rico
     Em qualquer coisa, se procurar bem,  
A grande indiferença com que fico.
     Escrevo-o para o lembrar bem.
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“BRINCAVA A CRIANÇA”
 
Brincava a criança
Com um carro de bois.
Sentiu-se brincado
E disse, eu sou dois!

Há um brincar  
E há outro a saber,
Um vê-me a brincar
E outro vê-me a ver.

Estou atrás de mim
Mas se volto a cabeça
Não era o que eu qu'ria
A volta só é essa...

O outro menino
Não tem pés nem mãos
Nem é pequenino
Não tem mãe ou irmãos.  

E havia comigo
Por trás de onde eu estou,
Mas se volto a cabeça
Já não sei o que sou.

E o tal que eu cá tenho
E sente comigo,
Nem pai, nem padrinho,
Nem corpo ou amigo,

Tem alma cá dentro
'Stá a ver-me sem ver,
E o carro de bois
Começa a parecer.
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“CAI CHUVA DO CÉU CINZENTO”
 
Cai chuva do céu cinzento
Que não tem razão de ser.
Até o meu pensamento
Tem chuva nele a escorrer.

Tenho uma grande tristeza
Acrescentada à que sinto.
Quero me a dizer, mas pesa
O quanto comigo minto.

Porque verdadeiramente
Não sei se estou triste ou não,
E a chuva cai levemente
(Porque Verlaine consente)
Dentro do meu coração.
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“CAI CHUVA. É NOITE. UMA PEQUENA BRISA”
 
Cai chuva. É noite. Uma pequena brisa,
      Substitui o calor.
P'ra ser feliz tanta coisa é precisa.
      Este luzir é melhor.

O que é a vida? O espaço é alguém pra mim.
      Sonhando sou eu só.
A luzir, em quem não tem fim
      E, sem querer, tem dó.

Extensa, leve, inútil passageira,
     Ao roçar por mim traz
Uma ilusão de sonho, em cuja esteira
     A minha vida jaz.

Barco indelével pelo espaço da alma,
     Luz da candeia além
Da eterna ausência da ansiada calma,
     Final do inútil bem.

Que, se quer, e, se veio, se desconhece
    Que, se for, seria
O tédio de o haver... E a chuva cresce
    Na noite agora fria.

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