sábado, 14 de agosto de 2021

Marques de Carvalho (No baile do Comendador)

– Desculpe, mas não creio, doutor, da sinceridade das suas palavras!

E a bela Arcelina tapou os rubros lábios, entreabertos em zombeteiro sorriso, com as rendas finíssimas do seu leque amarelo canário, de varetas de madrepérola.

— E por que, não me dirá? insistiu o doutor Machado, debruçado sobre a cadeira da interlocutora, a fixar-lhe os seios semi vísiveis com um ardente olhar vibrado através o cristal do monóculo petulante.

— Por quê? — respondeu ela, com uma curta gargalhada de chasco, a fitá-lo bem na menina dos olhos, falando-lhe por cima do ombro esquerdo, polvilhado de recendente velutina – Porque... a vida é uma boa mestra, doutor, e eu tenho recebido dela bem duros  e cruéis exemplos!

— Apesar de ser tão nova assim?

— A vida não escolhe discípulos entre aqueles que apresentam a cabeça encanecida. Bem ao contrário, parece que aos moços dá, por vezes, preferência, como compensando-os de não terem o discernimento preciso para bem conhecer e evitar os revezes da sorte.

— Mas — é maravilhoso tudo quanto estão a dizer-me os seus divinos lábios com a música angelical da sua voz, minha adorável senhora! Se já não sentisse por sua pessoa — e pelo seu espírito — este indomável afeto de que falei-lhe há pouco, penso que deveria experimentá-lo agora — e bem profundamente! — depois de ouvir-lhe tão razoáveis e inesperados conceitos.

— Deveras?

— Por certo.

— Oh! é muito amável...

— Digo a verdade.

— E, todavia, continuo a não crer...

— Faz muito mal!

— Por quê?

— Ah! Já faz perguntas? Porque quem confessa descrença em semelhante assunto, deseja crer, ou, pelo menos, não quer descrer...

— O que redunda no mesmo. Errou, porém, estabelecendo até mim a regra geral, doutor. Dificilmente se engana a mulheres como eu, convença-se. O mundo tem sido para mim uma grande escola, Sr. dr. Machado. Lições bem ríspidas tenho recebido nele, para agora, sem discrepância das suas opiniões, fazer que o senhor acredite nas suas próprias ilusões fantasiosas. Pois quê! Persuade-se acaso de que jamais poderei tomar ao sério as banalidades da confissão que me cantou há instantes o seu lirismo? Estará o senhor, efetivamente, tão enamorado de si mesmo, que se julgue irresistível, fatal? Vaidade sem razão, doutor!

— Como é cruel, minha senhora!

— Não sou cruel, não, cavalheiro. Sou justa apenas, e porque simpatizei inexplicavelmente com o senhor, é que desejo trabalhar para extorquir-lhe do espírito esse orgulho desarrazoado que lhe embota o sentimento. Permite-me a liberdade duma franqueza?

— Ora essa! Por que não?...

— Muito bem! Pretendo matar-lhe na alma o seu ilimitado... pedantismo.

— Como diz?

— Ouça bem: o… seu…ilimitado… pedantismo.

— e... mas...

— Olhe, sente-se aqui, a meu lado. Assim conversaremos com tranquilidade, enquanto essa quadrilha d'Offenbach absorve todas as atenções da sala. Escute-me.
***

“Eu era menina, dez anos apenas, uma simples criança insignificante. Seriam nove horas da noite. A chuva caía sem parar desde que anoitecera, uma triste chuva hibernal, que dava arrepios intercadentes, sob a luz oscilante do gás. Estávamos ao serão, reunidos na varanda, umas dez pessoas, eu, minhas duas irmãs, algumas escravas, e uma preta velha, muito velha e alquebrada, que o tráfico da escravatura arrancara aos sertões africanos para transplantar no Brasil.

“Costuravam umas, outras faziam rendas. Eu e minhas duas irmãs brincávamos a vassourinha, formando círculos sobre a mesa, em torno da qual trabalhavam as escravas.

“De repente, um silêncio operou-se na varanda inteira e nós interrompemos o brinquedo, ao tempo que as raparigas erguiam as cabeças, detinham no ar a mão que empunhava a agulha, ou descansavam cautelosas os bilros sobre as almofadas onde pregavam-se as rendas incipientes.

“A velha Eufrásia anunciara que ia contar uma história da cabanagem, o que era o suficiente para lhe hipotecarmos a mais absoluta tranquilidade. Porque, fique desde já sabendo, a Eufrásia era autoridade na matéria! A sua narração tinha alguma coisa de lúgubre, de compungente, de parceria com certo tom verídico e muito expressivo na concatenação dos fatos e na flagrância da nota, ou épica ou bucólica, de que pretendia ocupar a atenção dos ouvintes.

“Todos aconchegaram-se mais, fitando os olhos da velha, iluminados duma fulguração estranha, que parecia o reflexo derradeiro dos belicosos tempos de que ela ia tratar.

“Estabelecido o mais completo silêncio, tanto quanto era possível obter-se com o ruído da chuva a desabar nas telhas, a boa preta começou a referir a pequena história que passarei a expor à sua atenta bondade, sucintamente, para o não enfastiar com imprudentes delongas.

“Da outra banda do rio, à margem esquerda deste mesmo Guajará que rola suas turvas águas aos pés de Belém, uma roça havia, naquele tempo, em 1835, que era o abrigo de uma simples família de modestos caboclos agricultores: pai, mãe e um filho, rapaz esbelto, no pleno vigor duns 20 anos sadios e bem desenvolvidos.

“Viviam todos na mais lata felicidade que poderiam almejar em sua simplicidade medíocre de lavradores remediados. A farinha da sua roça era a mais afamada na praça de Belém e a seriedade com que tratavam os negócios tinha-lhes aberto largo crédito na casa do seu correspondente na cidade.

“O rapaz, Aniceto, andava de casamento justo com a Tomásia, uma rapariga da margem oposta do rio, moradora num sítio quase fronteiro à roça. Pelo São João deveriam vir à capital da província, efetivar perante um padre a mais persistente aspiração que em peitos amazônicos jamais palpitou e que dava-lhes, na sua só lembrança, uma como ebriedade olímpica de soberanas venturas transcendentes.

“Uma vez por semana, aos sábados, a pequena montaria do jovem caboclo rasgava, cheia de vigor, o claro seio do rio e transportava-o rejubilado à pequenina casa da venturosa amante sequiosa de mirar-lhe as suaves transparências do olhar e ouvir-lhe a incomparável meiguice das longas falas singelas e apaixonadas.

“Horas inteiras de intensíssimo contentamento, eram as que passava ao lado da rapariga, a tecer com ela o gracioso debuxo da sua risonha existência por vir, quando a sós, no copiar de mãos entrelaçadas e o olhar perdido ao longe, nas aquosas sinuosidades esbatidas nas sombras do fundo, compraziam-se em acastelar ilusões, numas inflorescências de amplas fantasiais admiráveis.

“Semelhante existência, parecia abençoá-la o céu, na sua clemente bondade rejubilada pelo edificante espetáculo de tão acrisolada (purificada) paixão.

“Mas houve um dia em que a sorte,— sempre inclemente e cínica, doutor! — pareceu querer zombar da voz geral, corrente a respeito daquela invejável bonança de duas vidas felicíssimas.

“A cabanagem assolava esta parte da província. As aguerridas guerrilhas dos revoltosos percorriam sedentas de sangue povoados e roças, buscando e fazendo vítimas por toda a parte, com o desabrimento impudico da mais ousada barbaridade.

“Em tais condições, a casa dos pais de Tomásia não poderia escapar à visita dos desalmados. Esta foi sujeita à mais torpe violência que se pode intentar contra uma donzela, e os pais da rapariga, por haverem querido dissuadi-los da infâmia,— após assistirem à perpetração selvática do atentado sem nome, sofreram inermes a pena última, dependurados, um defronte do outro, em dois galhos de sombrosa sumaumeira!

“Escaparam ao rápido furor dos revoltosos Aniceto e seus pais, que embrenharam-se precavidos nos profundos recessos da floresta. De sua casa haviam presenciado o que passava-se na roça fronteira e nem um só momento o rapaz, aquele mesmo namorado férvido da véspera, sentiu um assomo de correr a vingar o ultraje a que tinham-lhe submetido a noiva! Admire que sinceridade a daquela paixão, doutor, dias antes apresentada em labiosos floreados de fantásticos arremessos idílicos! Que grande coração, o daquele homem!

“Fugiu, poltronamente, cheio de medo, sem um remorso que, exprobrando-lhe a indignidade, propelisse-o a ir morrer no sítio onde haviam insultado a sua noiva, sem ir arrebentar os miolos de um dos abjetos infames, ainda mesmo quando tivesse a certeza de ser feito pedacinhos pela tropa dos sicários!

“Anos depois, quando estabelecera-se a pacificação na província, a Eufrásia encontrou-o em casa, muito satisfeito e cínico, a viver na companhia de torpe mulata animalizada por uma vida de largas materializações soezes (vulgares) e gordurosas.

“Ainda podia rir, ainda tinha canções para zangarrear* ao som do cavaquinho!

“Lá defronte, porém, a roça, tão florescente dantes, convertera-se em matagal e a infeliz Tomásia, apatetada e envelhecida, coberta de andrajos e chorosa, tinha simplesmente como testemunha da sua desgraça, uma criança inconsciente, um filho que dentro dela semeara a hedionda selvageria dos revoltosos.”
***

Calou-se a bela Arcelina, ofegante e ruborizada. Vibrando toda de emoção, teve um momento de silêncio empregado em fitar longamente o rosto do dr. Machado. Depois, abrindo o leque amarelo canário, agitando-o vagaroso, com uma certa majestade de soberana vencedora, perguntou sorrindo irônica:

— E crê, depois disto, que eu acredite na existência de um só homem sincero e verdadeiramente amante, capaz de efetuar todas essas palavrosas mentiras que o senhor cantarolou por aí?
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*Zangarrear = tocar (instrumento de corda, esp. viola ou similar) de maneira desafinada, sem arte, monótona, repetindo os mesmos acordes em rasgado;

Fonte:
Jornal A Província do Pará. Coluna Folhetim. 1889.

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