quarta-feira, 16 de julho de 2025

Carina Mendes (Travessia)


Essa rua era assim? Sempre foi assim? Há vinte anos passo aqui e não reparei que era de paralelepípedo, onde eu estava? O que mudou agora? Mudei eu ou mudou a rua? Paralelepípedo é bom pra deixar escoar a água, é o que dizem, deixa a água fluir, como lágrimas que não se acumulam, lágrimas, acho que a essa altura não me sobrou mais nenhuma, eu devia estar ainda desconsolada, vinte anos de casamento que escoaram como chuva em piso de paralelepípedo, com uma facilidade fantástica, eu devia estar mal, já estive, hoje não estou, em pleno aniversário eu deveria estar pior, mas já chorei demais, não me restaram lágrimas, elas já se foram e me sinto bem, quero que ele me veja bem, assim, bonita, mais magra, com esse corte de cabelo que valoriza meu rosto, mas ele não vai gostar dessa roupa, costumava gostar de mim de vestido, essa calça, esse sapato, nossa, esse sapato, ele detestava, será que coloquei de propósito? Queria ter raiva, mas não tenho, queria jogar na cara dele que calço o sapato que ele odeia, é uma afronta, só pra ele ver como faço o que quero, mas ele não foi ruim, terminou, só isso, Laura, terminou, tudo termina, por acaso achou que casamentos fossem eternos? Não precisa de um motivo claro e objetivo, não houve traição, não houve sacanagem, ninguém ferrou com ninguém, foi fissurando e não percebemos, foi desgastando, só isso, a vida não é conto de fadas com aquele tal de e viveram felizes para sempre, e essa rua, ainda mais essa agora, de paralelepípedos, e vai me dizer que sempre foi arborizada assim? Rui adora árvores, vai ver por isso escolheu esse bairro, mas essas árvores, nessa rua, são acácias? Ipês? Essa florzinha amarela, a mesma daquelas férias, o chalé na serra, só nós dois, eu tinha que estar pior, me sentindo mal, ele terminou tudo assim, como se desfolhasse uma árvore toda de uma vez, folhas no chão, tristeza escorrendo pelas frestas do paralelepípedo, um ano de cão esse último, demora um ano pra gente drenar todas as lágrimas da cara, não sobra nada, por que me sinto bem agora? E esse sorriso, Laura? Quarenta anos, aniversário, tá feliz por quê? Vinte foram ao lado dele, desde a faculdade, ah a faculdade, época em que não se chorava, e essa rua? Vinte anos dividindo uma vida e fazer quarenta aqui, andando nessa rua, sem lágrimas, pra encontrar com ele, com esses sapatos, por que ele me chamou pra conversar justo hoje? Meu aniversário de nascimento e de reconstrução, um ano me reconstruindo, me reencontrando, e essa felicidade que quer sair, presta atenção na rua pra não cair, Laura, pelo menos a rua do bar é de asfalto, as lágrimas descem pelas bocas de lobo, bocas, beijos, não sinto mais falta dos dele, foram muitos, vinte anos, tá bom, quero viver outros, estou feliz, renascendo, aquele é o bar? Vejo Rui na mesa da calçada, aquilo são flores? Me aproximo, ele abre os braços, uma lágrima lhe escapa, se eu ainda tivesse alguma provavelmente me escaparia, ele sussurra um feliz aniversário, nos abraçamos... as flores são amarelas.
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Carina Mendes é carioca que atualmente mora em Cabo Frio/RJ. É arquiteta e urbanista de formação, servidora pública, trabalha na área do patrimônio cultural, professora universitária. Depois de mestrado e doutorado, decidiu navegar pela escrita criativa. Tem feito cursos, publicado minicontos, contos e crônicas em coletâneas, e como colaboradora em blogs. Publicou o livro Os Entornos e a Proteção do Patrimônio Urbano no Brasil e na Itália.

Fontes:
https://www.carinamendes.com.br/index.php?pgn=texto&idtexto=1996
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

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