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quinta-feira, 21 de novembro de 2024

José Feldman (O Natal de Seu Miguel)

Era véspera de Natal e a cidade estava envolta em uma atmosfera mágica. As luzes piscavam nas janelas, as ruas estavam decoradas com guirlandas e as pessoas se apressavam para comprar os últimos presentes. No entanto, na pequena casa de Seu Miguel, a única coisa que iluminava o ambiente era a presença de sua fiel companheira, a cachorra Lili.

Seu Miguel era um homem idoso, com cabelos brancos e mãos calejadas pelo trabalho de uma vida inteira. Ele havia se casado, cerca de  25 anos depois o amor que um dia o aquecera se afastara sendo uma lembrança distante daqueles momentos. Seus irmãos, que moravam em outro estado, não o visitavam desde que ele se casou. A solidão tornara-se sua única companheira, e a casa, antes cheia de risadas e alegria, agora ecoava o silêncio de sua tristeza.

Lili, uma simpática vira-lata, estava sempre ao seu lado. Com seus olhos brilhantes e o jeito carinhoso de se aconchegar a ele, ela trazia um pouco de luz aos dias sombrios de Seu Miguel. Ele costumava dizer que ela era o único presente que realmente importava. Ao olhar para ela, ele sentia um amor incondicional que aquecia seu coração.

O quarto de Seu Miguel era acolhedor, mas carregava a marca do tempo e da solidão. As paredes eram de um tom suave de azul desbotado, com algumas manchas de desgaste que contavam histórias de muitos anos. Um quadro antigo, com uma paisagem de verão, pendia um pouco torto acima da cama, lembrando dias mais alegres.

A cama de casal, coberta por um edredom de retalhos. Ao lado da cama, uma pequena mesa de cabeceira sustentava um abajur de luz amarelada, que iluminava suavemente o ambiente ao entardecer. Sobre a mesa, havia um livro aberto, suas páginas amareladas pela passagem do tempo, e uma xícara de chá fria, esquecida em um canto.

O chão era de madeira, com algumas tábuas rangendo sob o peso dos passos, e um tapete desgastado cobria parte do espaço, dando um toque de calor ao ambiente. Perto da janela, uma cortina balançava suavemente com a brisa, permitindo que os as gotas de chuva que caíam lá fora fossem visíveis.

Em um canto do quarto, uma prateleira abrigava souvenirs e fotografias emolduradas, capturando momentos de felicidade que agora pareciam distantes. Havia um porta-retratos com uma imagem de Seu Miguel e sua ex-esposa, sorrindo em uma praia.

No chão, ao lado da cama, estava a caminha de Lili, um acolchoado simples, mas confortável, onde a cachorra costumava descansar. O ambiente, embora nostálgico e um tanto triste, tinha um toque de amor e lembranças que preenchiam o ar com uma sensação de lar.

Na véspera de Natal, enquanto a chuva começava a cair lá fora, Seu Miguel sentou-se na poltrona ao lado da lareira. Ele olhou para o pinheiro que havia montado, uma árvore simples, já sem enfeites para alegrar o ambiente, mas, naquele momento, ela parecia mais uma lembrança dolorosa do que um símbolo de celebração.

Ele fechou os olhos e fez um desejo silencioso. Queria sentir o abraço da família novamente, ouvir as risadas que preenchiam a casa, e quem sabe até mesmo ouvir os filhos e netos de seus irmãos correndo pelo lugar. A saudade o apertava como um nó no peito, e ele não conseguia evitar que as lágrimas escorressem pelo seu rosto.

Lili, percebendo seu desânimo, levantou-se e se aproximou. Ela encostou a cabeça em seu colo, como se dissesse: "Eu estou aqui, não se preocupe." 

Seu Miguel sorriu, acariciando o pelo macio da cachorra. Ela era a única que o compreendia, a única que não o abandonara.

A noite avançava e, enquanto a neve cobria a cidade, Seu Miguel decidiu preparar um pequeno jantar. Ele fez um prato simples, mas saboroso, e dividiu um pouco com Lili, que se deliciou com cada pedaço. Durante a refeição, ele contou histórias para a cachorra, compartilhando memórias de tempos mais felizes. Lili parecia atenta, como se entendesse cada palavra.

Após o jantar, ele pegou um cobertor e se acomodou na poltrona, enquanto a lareira crepitava suavemente. A melodia suave de canções de Natal vinha das casas vizinhas, e, por um momento, ele se deixou levar pela nostalgia. As músicas o transportaram para um tempo em que a vida era mais cheia e as preocupações pareciam distantes.

Mas a realidade logo o trouxe de volta. Ele olhou para a árvore e, em meio à tristeza, sentiu uma onda de gratidão por Lili. Ela era sua luz nos dias escuros, seu motivo para levantar da cama todas as manhãs. Apesar da solidão, ele ainda tinha alguém que o amava.

Enquanto a chuva caía suavemente lá fora, a música de Natal envolvia a casa de Seu Miguel em um manto de nostalgia e esperança. Ele fechou os olhos por um momento, permitindo que o cansaço o levasse, quando um toque suave na porta interrompeu seu pensamento. 

Seu coração disparou. Quem poderia ser? Nunca ninguém o visitava. 

Ele hesitou, mas Lili, sempre curiosa, correu até a porta, latindo.

Ao abrir, Seu Miguel se deparou com seus irmãos, acompanhados de suas famílias. Eles estavam com sorrisos largos e braços abertos, prontos para abraçá-lo. A surpresa tomou conta dele, e a tristeza que há tanto tempo o acompanhava começou a se dissipar.

— Feliz Natal, Miguel! — gritaram.

Ele mal podia acreditar. O abraço apertado de seus irmãos, os risos das crianças e a alegria contagiante daquela noite o envolveram como um cobertor quente. Lili, animada, pulava ao redor, recebendo carinhos e afagos.

Naquela noite, a casa de Seu Miguel se encheu de amor e risadas. As memórias dolorosas foram substituídas por novas, e a solidão deu lugar à alegria.

Mas, de repente, a cena começou a desvanecer. As vozes dos familiares se tornaram ecos distantes, e a luz da árvore, que antes brilhava intensamente, começou a se apagar. Seu Miguel tentou chamar seus irmãos, mas suas palavras não saíam. Ele se viu sozinho novamente, perdido na escuridão.

Quando finalmente despertou, a realidade o atingiu como um balde de água fria. A sala estava silenciosa, e a única luz vinha da lareira, que agora crepitava suavemente. Lili, sua fiel companheira, estava deitada ao seu lado, olhando para ele com olhos cheios de preocupação.

A tristeza tomou conta de seu coração. Ele olhou ao redor e percebeu que estava novamente sozinho, sem os abraços calorosos de sua família. Um nó se formou em sua garganta, e as lágrimas começaram a escorregar por seu rosto.

Os olhos, grandes e expressivos de Lili, se iluminaram ao ver que o velho estava acordado. Com um leve abanar de rabo, ela se levantou de seu canto e se aproximou, suas patas macias fazendo pouco barulho no chão.

Lili cheirou o ar ao redor de Seu Miguel, como se buscasse entender suas emoções. Ao notar as lágrimas em seu rosto, ela pousou a cabeça suavemente em seu colo, olhando-o com um olhar preocupado. Seu coração canino parecia sentir a tristeza dele, e ela se aconchegou ainda mais perto, buscando confortá-lo.

Lili lambeu a mão dele, como se dissesse: "Estou aqui, não precisa ficar triste." Sua presença calorosa e carinhosa trouxe um alívio instantâneo ao coração de Seu Miguel. Ela se aninhou nele, oferecendo seu amor incondicional, e ficou atenta, como se estivesse pronta para proteger seu amigo de qualquer dor.

Com um suspiro profundo, ele envolveu os braços em torno de Lili, apertando-a contra seu peito. Naquele momento, ele fez uma promessa a ela:

— Nunca vou te abandonar, Lili. Você é minha única amiga, minha luz em meio à escuridão. Não importa o que aconteça, sempre estarei aqui para você, assim como você sempre esteve para mim.

Ele sentiu a presença calorosa da cachorra, e um conforto profundo começou a preencher o vazio da solidão. Ali, no silêncio da pequena casa, Seu Miguel percebeu que, mesmo sem a família por perto, ele ainda tinha um amor sincero e verdadeiro.

E assim, enquanto a chuva continuava a cair lá fora, ele e Lili se aconchegaram juntos, prontos para enfrentar o Natal e todos os dias que ainda estavam por vir. 

Seu Miguel sentiu uma onda de gratidão. A maneira como Lili reagiu, com sua lealdade e compaixão, fez com que ele se sentisse menos sozinho. Ela era uma luz em sua vida, sempre disposta a estar ao seu lado. E naquele momento, ele soube que, independentemente da solidão que o cercava, ele nunca estaria verdadeiramente só, enquanto tivesse Lili.

E assim, enquanto as estrelas brilhavam no céu, ele fez um novo desejo. Enquanto tivesse sua fiel companheira, seus dias seriam sempre iluminados, não apenas naquela noite, mas em todos os dias que viriam. Afinal, a verdadeira magia do Natal reside nas conexões que cultivamos e no amor que compartilhamos, mesmo quando a vida nos parece solitária.
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Nota do blog:
Infelizmente esta é uma realidade cada vez mais constante nos dias de hoje, principalmente em pessoas idosas que não tem filhos.

O Natal é uma época de celebração, amor e união, mas para muitos idosos, essa época do ano pode ser repleta de solidão e tristeza. Infelizmente, muitos deles se encontram abandonados por seus familiares, sentindo-se esquecidos e desamparados.

Se você conhece algum idoso que está sozinho, uma simples visita pode fazer toda a diferença. Ouvir suas histórias e compartilhar momentos pode trazer alegria a seus corações.

Oferecer seu tempo para atividades ou até mesmo um café da tarde pode iluminar o dia de alguém.

Muitas vezes, a falta de apoio é resultado de desinformação e preconceitos. Vamos mudar essa narrativa!

É fundamental que, como sociedade, estejamos atentos a essa realidade. Os idosos merecem carinho, respeito e atenção, especialmente em momentos que deveriam ser de alegria. O abandono pode afetar profundamente a saúde emocional e física dessas pessoas, tornando o Natal uma lembrança dolorosa em vez de uma celebração.

Fontes: 
José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

sábado, 25 de maio de 2024

Livros Recebidos

Últimos livros publicados enviados pelo correio ou entregues em mãos pelos autores,  cujo conteúdo estou publicando gradativamente no blog:

A. A. de Assis. Histórias da história de Maringá.
Arthur Thomaz. Leves contos ao léu: insondáveis.
Arthur Thomaz. Rimando Sonhos: trovas.
Carolina Ramos. Meus bichos, bichinhos e… bichanos
Daniel Maurício. Alma lírica: poesias.
Daniel Maurício. Amar é: poesias.
Daniel Maurício. Cacos e retalhos: poesias.
Daniel Maurício. Gotas poéticas.
Daniel Maurício. Leve-me: poesias.
Daniel Maurício. Miudezas do coração: poesias.
Daniel Maurício. Mosaico de sentimentos: poesias.
Daniel Maurício. Olhares: poesias.
Daniel Maurício. Origamis de palavras: poesias.
Daniel Maurício. Palavras de cheiro: poesias.
Daniel Maurício. Poesias da madrugada.
Edy Soares. Sonetos sonantes.
Lucília Alzira Trindade de Carli. Canteiros: trovas.
Luiz Poeta. Trov…ansi…arte.
Pedro Cardoso & Goulart Gomes. Poemas encolhidos: poetrix.
Renato Benvindo Frata. Contos infantis.
Renato Benvindo Frata. Fragmentos: 102 crônicas.
Vanice Zimerman Y Gustavo Henao Chica. Saudade… : poesias.

Meus agradecimentos aos autores.

domingo, 19 de maio de 2024

José Feldman (Á Guisa de Explanação)

Eu sempre tive um problema (dádiva ou maldição?). Não me contento com pouco. No sentido de divulgar os literatos. Desde quando comecei o blog em 2007, quem vem acompanhando, percebe que ele tem aumentado de tamanho (hoje são mais de 19 mil publicações, com dezenas de milhares de trovas, poesias, contos, etc). É muita gente, e pior, ou será melhor? Muita gente de valor. Desde quando entrei no “campo” trovadoresco, lá pelos idos de 1991, mais especificamente, quando recebi meu certificado da Oficina A Hora da Trova, na Casa Mario de Andrade, em São Paulo, das mãos do seu coordenador, mais tarde um grande amigo e incentivador meu, o falecido Izo Goldman, deixei de ser um rosto perdido na multidão. 1991… são 33 anos transcorridos. A quantidade de amigos/as, amigos/as-irmãos/as que nunca sonhei em ter nos meus 37 anos vividos anteriores, multiplicou-se a uma progressão geométrica nos últimos 33 anos. É… a trova faz amigos, mais… faz-nos ver que não somos apenas um número a mais, e que cumprimos um papel importante neste mundo imenso. Também fazemos inimigos, mas quem não os têm? Mas vale a pena. São muitos nomes, entre poetas, trovadores e escritores. Este ano, em setembro completo 70 anos, estimando que se seguir os passos de minha mãe, já falecida, viva pelo menos mais 23, não vai dar para colocar todos, então espero me perdoe se seu nome não estiver em destaque, não será por má vontade, mas pela quantidade enorme de nomes deste imenso Brasil, de Portugal e outros países.

segunda-feira, 6 de maio de 2024

Licença Médica por tempo indeterminado

 Prezados leitores do blog


Devido a uns problemas de saúde (dores no ciático) estarei de repouso, com pausa nas publicações do blog por mais tempo que esperava, sem previsão de retorno.

Obrigado pela compreensão.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Sobre a Política de Textos do Blog


Tenho recebido textos/poesias e comentários que não condizem com a proposta da existência do blog.

Este é um blog de literatura propriamente dita. Textos ou comentários que abarquem ataques a pessoas específicas, organizações, governos e governantes, textos com conotação chula, apelo sexual, pornografia explícita ou implícita, etc. ou mesmo doutrinários, não serão postados.

Por favor, não insista em enviar estes textos. Existem sites e blogs destinados a desabafos, textos jornalísticos, protestos, fofocas, etc. Procurem-nos.

O blog possui mais de dois milhões de leitores e cerca de 17.500 postagens dos mais variados temas e gêneros que não ofendem a nossa política, e acredito que não seja nem 0,1% de textos/versos que existe no mundo todo em todas as épocas, e pretendo cumprir a proposta de divulgar o que for possível. Literatura, na acepção da palavra, é o que não falta.

Como especificado na coluna da direita do blog, abaixo das boas vindas a ele:

O editor do blog se reserva ao direito de não postar textos ou comentários que possuam conteúdo racista, machista, homofóbico, pornográfico, político, religioso, que ataquem pessoas ou organizações ou de qualquer forma preconceituosa.

Agradeço a compreensão.

sábado, 17 de outubro de 2009

Nilto Maciel (O Pião)

Nota Introdutória de José Feldman

Ontem, sexta-feira, tive o enorme prazer de receber de presente o livro Contos Reunidos, volume I, lançado este ano de 2009, deste escritor de Baturité, Ceará, Nilto Maciel. Constantemente ele me tem enviado seus livros de contos ou sobre os contistas do Ceará, além de jornais e boletins do Ceará.

Antes de colocar um conto deste livro para abrir o apetite do leitor, gostaria de colocar algumas palavras sobre este "fantástico escritor fantástico".

Tudo isto nos faz remeter a um estado que pouco se tinha conhecimento de sua literatura, ou se conhecíamos, nosso inconsciente não poderia conceber que tais obras fossem escritas por escritores da região. O que nos vem a mente, é a seca, a pobreza, a violência, mas não que apesar de todo este drama que se desenvolve, existam tantos e tantos escritores de alta qualidade, como é o caso de nosso irmão de letras, Nilto Maciel.

O que poderia dizer sobre o que escreve, além de que é sem sombra de dúvida escritos que nos levam a vagar por sobre as ondas do cotidiano, isto, entre a ficção e a realidade, que nos remete a vivenciar seus personagens. Não são contos que são presente, ou passado, mas que transformam os tempos em um só, havendo uma fusão de passado, presente e futuro. O futuro que não conhecemos, mas que somos seus construtores.

Nilto nos mostra em seus contos algo que vai além de uma simples fotografia, ele pinta um quadro que envolve toda uma paisagem e que nos faz penetrar na alma dele. Vivemos cada instante seus personagens. Carlim ou Hiroito (contos que coloquei aqui no blog), são testemunhas disto. Eles surgem do nada, às vezes em uma paisagem dantesca e penetram nosso ser, e ficam enraizados dentro de nós.

Como bem nos diz Silvério da Costa, no Jornal Sul Brasil, de Chapecó, SC, em 2 de junho de 2005, “contos quase que integralmente oníricos e inspirados na história e na mitologia, transpõe para os dias de hoje, de forma subvertida e alegórica, histórias longínquas que arrebatam o leitor e que não só tirou minha dúvida, como também me tirou do sério, por trazer tudo aquilo que há de mais encantatório, para mim, na arte do conto, que é o mágico-fantástico de um Gabriel Garcia Márquez, a absurdez kafkiana, a alusão a castelos, princesas, fadas, anjos, monstros, enfim, heróis exóticos de todas as estirpes e para todos os gostos, bem como a evocação de figuras das artes, da história, da ciência e da mitologia, como, entre outros, Ícaro, Átila, Jesus, Napoleão, Pilatos, Santos Dumont, Carlos Magno, Descartes, Malthus, Sophia Loren, Joana d'Arc e Lampião.

Uma salada excêntrica, cujos personagens brotam de um passado mais ou menos remoto, e que, associadas a ingredientes como vida, morte, velhice, desilusão, fanatismo, repressão, dinheiro e prazeres da carne, se atualizam e nos levam à complexidade e aos desajustes do ser humano moderno, e à inter-relação de seus mundos, interior e exterior, em situações esdrúxulas, só concebíveis na ficção, das quais as personagens se libertam graças à caneta do autor, à intervenção do deus Morfeu, aliás, a grande recorrência de que se vale o Nilto para livrá-las das suas encrencas
”.

Enfim, pelo que já li de seu livro, Nilto é um pintor das palavras, transforma paisagens e momentos em letras que nos presenteiam com seu encantamento seja em seus dramas, ou não. Ele nos faz rir, nos faz chorar, sofrer, e mesmo pensarmos em quem somos nós e qual a nossa participação no mundo que vivemos.
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Nilto Maciel (O pião )

O menino atirou à distância o pião e puxou o cordão. O objeto alcançou o chão, com violência, e se pôs a girar. E tão velozmente girava, que Us imaginou estar ele parado. No entanto fazia voltas no chão, num movimento de translação ao redor de um ponto imaginário.

Aos poucos, o giro se fazia mais lento e Us pôde perceber o movimento de rotação do pião.

Mais alguns giros, e o objeto perdeu o equilíbrio. Entrou em desordem, rolou deitado e foi repousar longe do lugar onde originalmente caíra.

O menino atirou-se em busca do brinquedo. Certamente enrolaria de novo o cordão ao redor do pião e reiniciaria a brincadeira. Us, porém, não esperou o novo espetáculo. Devia se sentir satisfeito. E correu para casa.

– Mãe, compra um pião pra mim.

A mulher resmungou sim ou não e mudou de assunto. Fosse o filho tomar banho. A hora do almoço não tardava. Se não se apressasse, ia chegar atrasado à escola.

Us tomou banho com o pião girando em sua cabeça. Durante o almoço falou do brinquedo. A caminho da escola repetiu o pedido à mãe.

Mal teve início a aula, a professora chamou a atenção de Us. Deixasse a conversa para a hora do recreio. Ele falava a um amiguinho sobre o pião que iria ganhar.

Para sua mãe, no entanto, aquilo parecia muito perigoso. Mas ele não via perigos, só via piões. E sonhava esquisitices. Um mundo de piões. Todos girando. Nas calçadas, nas ruas, nos telhados, nos ares. A Lua, um pião enorme e lindo. As estrelas, piões do céu, brinquedos dos anjos.

E se a Terra também fosse um pião gigante a rodopiar no espaço? Brinquedo de Deus, aquele ser poderoso das aulas de religião e das missas de domingo.

Mas como os sonhos durassem pouco, durante o dia Us não se continha e fugia de casa para o país dos rodopios. Esquecia-se do tempo, dos estudos, da mãe. Aprendia a soltar piões. Olhos atentos às mãos dos outros meninos. Daqueles felizardos. E pedia, humílimo, para ao menos enrolar o cordão. Negavam-lhe esse favor, essa caridade. Comprasse ou mandasse fazer um pião.

Ora, a mãe jamais lhe daria dinheiro para comprar tão perigoso brinquedo. De qualquer forma, iria ao carpinteiro. Talvez não custasse tanto um pequeno pião.

Não custou nada. O carpinteiro com certeza se apiedou do pobre Us.

E toda a felicidade humana se incorporou ao menino. Tão feliz se sentia, que não carecia de platéia nem de elenco para seu espetáculo. Só de palco, do pião e de si mesmo. E se isolava nos becos, nas pontas de rua, nos terrenos baldios.

Havia, porém, um espectador oculto a ver todo o seu sonho rodar no chão. Um velho escultor. Entalhava uma estátua de Deus-homem, e só lhe faltava o coração. Aquele pião talvez servisse.

O menino se assustou e agarrou o brinquedo. Não, não venderia nem daria seu pião. Custara-lhe caro. O homem sorriu. Via mentira nos olhos de Us. Contasse a verdade. Ele também tinha sua via-crucis para contar.

Fizeram-se amigos. E o pião de Us acabou incrustado no peito do Deus do velho escultor.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contos Reunidos. Vol.I. Porto Alegre, RS: Bestiário, 2009.
Capa do Livro = fotografia de José Feldman

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Agradecimentos


Meus agradecimentos aos escritores que me enviaram suas obras e material literário:

Alberto Gomes, de Portugal (Revista Bumerangue 2, 3 e 4)

André Augusto Passari (Tempo, Solidão e Fantasia)
André Carneiro (Quânticos da Incerteza)
Carlos Saquetini (Puro Prazer)
Douglas Lara (Rodamundinho 2008; 1a. Coletânea Teia dos Amigos 2008)
Goulart Gomes (Minimal)
Izo Goldman (Trovas de quem ama a trova)
José Verdasca (A vida, o homem e o universo)
Neida Rocha (Danilo, sua mochila e seus amigos; Minha não metade)
Ney Garcez (Antologia de Trovadores do Paraná, sob a organização de Vasco José Taborda e Orlando Woczikosky)
Nilto Maciel (Carnavalha; Pescoço de Girafa na Poeira; Contistas do Ceará, além dos jornais e boletins literários publicados no Ceará)
Pedro Viegas (Trajetória Rebelde)
Valter Martins de Toledo (Direito, Cultura & Civismo: textos seletos; Jurisprudência e Doutrina Maçonica)
Vânia Maria Souza Ennes (Paraná em trovas, além de revistas dos Jogos Florais e jornais de trovas)
Muito obrigado
José Feldman