domingo, 19 de março de 2023

A. A. de Assis (Jardim de Trovas) 24

 

Olavo Bilac (Os Anéis)

A bela sociedade, a sociedade alegre, composta de rapazes e de raparigas, estava reunida em roda da larga mesa da sala de jantar, convertida em mesa de jogo. A velha mãe das raparigas, a gorda Sra. Manuela Matias, bem sabia que aquelas noitadas de víspora e chá lhe custavam os olhos da cara... mas que havia de fazer a Sra. Manuela Matias? — morrera-lhe o marido, deixando-lhe aquelas seis filhas, e — com todos os diabos! — era preciso casar as raparigas, pois não era? E ali estava a boa viúva à cabeceira da larga mesa da sala de jantar, embrulhada no seu xale de ramagens, vigiando as filhas, que, ao lado dos namorados, iam cobrindo com os grãos amarelos do milho os cartões do víspora...

Cacilda, a mais velha, (vinte anos, dizia ela; vinte e cinco, diziam as más línguas) estava ao lado do louro Eduardo, um janota que, às vezes, no flerte inocente com meninas solteiras, descansa das aventuras mais práticas com as casadas... Juntos, juntinhos, inclinados sobre os cartões — tão juntinhos que, de quando em quando, as suas cabeças se tocavam e seus hálitos se confundiam... E os outros pares iam marcando os números... E Cacilda e Eduardo — que caiporismo! — tinham os cartões descobertos, tinham o monte de grãos de milho intacto, sobre a toalha da mesa... E a boa senhora Manuela Martins, cochilando, embrulhada no seu bonito xale de ramagens, presidia àquele divertimento inocente. Então? era preciso casar as raparigas, pois não era?

De repente, o louro Eduardo deixa escapar da garganta um grito de dor, de angústia, de horror... E, muito pálido, o louro Eduardo aperta apressadamente com as mãos a... barriga, enquanto Cacilda baixa a face inundada de uma onda de rubor.

— Que foi?

— Que foi?

— Que foi?

— Nada... uma dor que me deu... já passou... já passou...

E, à saída, depois do chá, o louro Eduardo confia ao seu amigo Américo o segredo do seu grito. E Américo, entre duas risadas, indaga:

— ... com as unhas?

— Qual com as unhas, filho! Com os anéis! Eu não sei para que é que aquela rapariga quer tantos anéis na mão direita! Estou todo arranhado...

Fonte:
Disponível em domínio público.
Olavo Bilac. Contos para velhos. Publicado originalmente em 1897.

Raquel Ordones (Poemas em Gotas) III

CLASSIFICADOS

Precisa-se: poetas e humildade.
Verdade em versos; soltos feito brisa.
Precisa é a sua idoneidade
Qualidade; pois é; receita visa.

Precisa-se: poetas sem vaidade.
Confrade sem status; só poetiza.
Batiza-se POETA; raridade.
Invade-se, o bom não exterioriza.

Precisa-se: poetas: toda idade.
Veracidade; não “se acha” e ironiza.
Pisa; competição; pódium: deidade.

Saudade da atenção, do ler: divisa.
Desliza o olhar; comenta: - majestade!
Velocidade; só se valoriza.
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GRAVADO COM PROFUNDEZA

Fazenda: uma estação feliz que exporta.
Exorta-me: é tão distante a emenda.
Entenda: quase nunca me comporta.
Conforta a imagem linda, não é lenda.

Moenda de café, no quintal a horta.
Corta o capim pro gado: uma oferenda.
Renda numa toalha; sobre: a torta.
Conforta leite e bolo na merenda.

Legenda não precisa; a ideia entorta.
Importa é a estrela do ser: prenda.
Agenda? Só folhinha atrás da porta.

Aorta via aberta: campo tenda.
Parlenda aprendi; minha alma transporta.
Reporta-se de tudo numa venda.
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O MURO DA QUINTA

Tinta; é tanta tinta! O muro noto.
Boto meus olhos, coisa que requinta.
Pinta uma efígie, tão logo a decoto.
Broto junto; minha alma é faminta.

Extinta a escória; agora bela foto.
Adoto a cor; meu ser então se pinta.
Tilinta o coração; de encanto loto.
Borboto gradação; no cinza a finta.

Cinta é colorida; nó picoto.
Devoto-me à obra; coisa absinta.
Sucinta admiração, mas não me esgoto.

Arroto estrelas; obra é distinta.
Sinta-me dentro da arte que piloto.
Denoto-me perante o céu da quinta.
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OUVINDO ESTRELAS

Ouço! Mas não me venha expor:_ Maluca!
Machuca. Escuto estrela em todo gosto.
Rosto feliz, e na alma uma muvuca.
Caduca nada; meu ser é o oposto.

Posto: numa janela. Imo batuca.
Nuca encrespa em contato com o encosto.
Deposto-me ao céu; graça cutuca.
Arapuca, me pego presa. Eu exposto.

Arrosto; à lonjura não retruca.
Cuca fresca assisto ao show disposto.
Agosto, maio; tanto faz. Véu educa.

Truca a imagem; cenário já proposto.
Imposto ouvido; entendo. Nada infuca*.
Suca-me** o verso, verbo bem composto.
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* Infuca = intriga.
** Suca-me = suga-me.
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PARNASUS CONTEMPORÂNEO

Chapéu negro; de costas é tão bela.
Tela no cabelo e no dedo, anel.
Pitéu; mas quando se vira : congela.
Pela um medo; que horror, coisa pinel!

Véu na alma, e pelos olhos a remela.
Mela o nariz e manca em seu tropel.
mundaréu de caras, boca banguela.
Apela em feiura e ganha troféu.

Céu de maldade, nuvem de mazela.
atrela  frisson, bizarro painel.
cruel é seu jeito, em nada singela.

Anela o mal, em volta fogaréu.
Fel e pesadelo  Vênus "Cruela",
flagela o sonho; de Zeus é um réu.

Fonte:
https://raquelordonesemgotas.blogspot.com/

Carolina Ramos (Folclore Brasileiro) Estado de Alagoas

No Brasil são chamados de festeiros os grupos de foliões, que dançando ou não danças dramáticas, celebram os Reis e também outras festividades da época, o que é bastante comum em Alagoas, sendo estas festas programadas com bastante antecedência.

Afirmam pesquisadores que Alagoas é, dentre os estados brasileiros, aquele considerado como o que apresenta maior diversidade de manifestações culturais, sempre com programações bastante intensas.

Entre as modalidades mais importantes, são citadas as danças e os folguedos, ao todo 27, destacando-se; as Baianas, o Bumba-meu-Boi, a Cavalhada, o Fandango, o Guerreiro, Pastoril, Quilombo e o Reisado.

Pequenos barracões, cobertos com folhas de palmeiras, são armados em bairros distantes - arrabaldes de Maceió - quatro meses antes do Natal. E "é neles, à luz de candeeiros, que acontecem os ensaios". Desses ensaios, participa toda a população mestiça dos subúrbios de Maceió. Barracas e carrinhos de mão ajudam a vender "guloseimas típicas daquela região, tais como cocadas, amendoim torrado, pipoca, paçoquinha, bobó, a animar ruas e praças, e esta é uma das fases mais movimentadas da vida alagoana".

O Rei (Rainha), o Secretário, ou Mestre-Sala, o Contramestre, ou Vassalo, o Mateus e a Catirina compõem o grupo de foliões do reisado alagoano, todos eles personagens com função determinada. 

As vestimentas usadas, ricas em adereços, são adornadas com enfeites feitos de cacos de espelhos, "aos quais é atribuída função amulética".

O Reisado, de origem portuguesa, não foge aos moldes repetidos em vários outros estados do Brasil, aqui chegado via Pernambuco, numa adaptação do Maracatu que, por sua vez, absorveu características das danças e canções de origem afro-religiosa.

O Bumba-meu-Boi, não difere do que acontece nos demais estados.

Quanto ao Fandango dançado em Alagoas, de origem lusitana, é bem diferente daquele originário da Espanha e dançado, aos pares, no sul do país. O Fandango de Alagoas é náutico, ligado à Marinha, representada pelas cores azuis e brancas das vestimentas. Aos violões e cavaquinhos cabe a música.

O Pastoril, também de origem portuguesa, é folguedo natalino dos mais populares. Dele, apenas doze moças participam, divididas em dois cordões, com roupas de cores diferentes, azul e vermelha.

As Cavalhadas, como o nome indica, são corridas de cavalos. Lembram aquelas da Idade Média, realizadas em praça pública, comuns em Siena, Itália, durante as quais "os competidores tentam apossar-se de argolas suspensas por uma garra". A corrida é antecipada por visita à Igreja, sendo, em seguida, o santo homenageado posto em lugar de destaque na Praça.

O Quilombo pode ser apresentado em qualquer época, mas acontece de preferência em festividades de cunho religioso. Trata-se de uma adaptação das danças que representam guerras entre raças, mais objetivamente, entre mouros e cristãos.

Fonte:
Enviado pela autora.
Carolina Ramos. Canta… Sabiá! (folclore). Santos/SP: 
publicado pela Editora Mônica Petroni Mathias, 2021.

Aparecido Raimundo de Souza (Tal mãe, tal filha)


Quando não se pode dizer a verdade, mas se diz algo semelhante à verdade, não se está traindo a verdade”.
José Mauro de Vasconcelos (escritor)

O TELEFONE TOCOU INSISTENTEMENTE na residência da senhora Viviane Cardoso de Godói. Ao ouvir o som do aparelho se destrambelhando, fez sinal para que a sua filha Tati, uma criança ainda, que tomava seu café matinal, atendesse. Antes que a menina tirasse o auscultador do gancho, a mãe insistiu com veemência para que a pequena dissesse a quem quer que estivesse do outro lado da linha (ainda que a figura do papa ou do presidente da república), não importava quem fosse, ela não se encontrava em casa. A guria, contudo, cara de poucos amigos, sem entender bulhufas, contestou:

— Mas a senhora está aqui, mamãe. É feio mentir.

— Faça o que eu digo e não faça o que eu faço. Eu não estou. Não está vendo que eu saí cedo? 

— E a senhora foi aonde mamãe, às oito e meia da manhã?

— Invente uma desculpa qualquer. Seja criativa. Sei que arranjará uma boa desculpa. Atenda logo essa porcaria. A campainha dessa droga me irrita os tímpanos e me tira do sério! Vamos, Tati, se mexa... não estou pra ninguém. NINGUÉM!

A menina obedeceu, o semblante fechado:

— Alô?  Bom dia. Quem é?

— Bom dia, aqui é o Pedro das “bugigangas”. Dona Viviane se encontra?

— Não.

— Saiu?

— Mais ou menos...

— Como mais ou menos? Ela está ou não?

— Não sei não, senhor. Dona Rosa, a vizinha aqui do nosso lado esquerdo acabou de me dizer que ela foi abduzida. 

— Não entendi. Foi o quê?!

— Abduzida.

— Abduzida?

— Foi o que eu disse. 

— Meu Deus, que absurdo. A sua vizinha falou isso pra você?

— Sim, senhor... 

— Essa senhora que disse essa barbaridade está aí do seu lado? Deixa-me falar com ela. Passe, por gentileza, o telefone. É urgente. 

— Não senhor. Dona Rosa deu meia volta e correu para avisar aos outros moradores próximos...

— Mocinha, como é o seu nome?

— O meu?

— É.

— Tati.

— Muito bem, Tati. Lindo nome.

— Obrigada. Foi papai quem escolheu. Se fosse pela vontade de mamãe eu seria batizada Sara. 

— Quantos anos você tem, Sara?

— Eu? Cinco. E não é Sara, é Tati.

— Perdão, minha jovem. Tati. Legal. Nossa! A mim está dando a impressão de ser uma garotinha inteligente, criativa e extrovertida. Pretende ser o que quando crescer?

— Olha, seu Pedro, estou pensando em Física.

— Professora de educação...?

— Não, física mesmo. Gosto de estudar as coisas absurdas.

— Entendo! Minha linda, pegando o gancho desse assunto, acaso saberia me dizer, em poucas palavras, o que eu, particularmente, poderia deduzir dessa expressão “abduzida?”. Confesso minha criança, até agora, essa coisa toda é muito nova e desconhecida para mim...

— Saberia sim senhor. 

— Estou pasmo! Vá em frente. Sou todo ouvidos. O que é ser abduzida? 

— O senhor está fazendo hora com a minha cara. Parece até o tio Pequinês. Tio Pequinês não me leva a sério! 

— Quem é esse tio Pequinês?

— O irmão cachorro de meu pai.

Risos. 

— Tá bom. O que significa ser abduzida? Juro a você, minha curiosidade não é outro senão a de aprender, claro. Hoje em dia adquirimos conhecimento com os mais novos. Essa juventude tem futuro. 

— Tá bom. Pela sua conversa, seu Pedro, isso quer dizer que o senhor nunca foi abduzido! Acertei?

— Com todas as letras, minha princesa. O que é, afinal, ser abduzido ou como sua mãe abduzida? 

— Abduzida ou abduzido tanto faz. A ordem dos cavalos não altera a rotina das cocheiras. Abduzida ou abduzido é tudo aquilo que a física ainda não conseguiu responder. E nos engambela afirmando que abduzido é a mesmíssima coisa que ser raptada ou sequestrada.

— E não é? Não entendi. Poderia ser mais explícita?

— No caso da mamãe?

— No caso da sua mamãe.

— Então, seu Pedro, ela foi abduzida, e não raptada, nem sequestrada, quando saia agora cedo, por volta das oito horas, em direção à padaria. Em resumo, ser abduzida é ser levada do nosso planeta terra para outra dimensão. Nossa empregada está de folga hoje e ela resolveu ir às compras por sua conta e risco. Mamãe é muito apressada.

— Que loucura! Estou passado, Tati. Conte todos os detalhes.

— Segundo dona Rosa...

— Calma lá. Você falou nessa dona Rosa não tem dois minutos. Quem é dona Rosa? Sua empregada?

— Dona Rosa é a vizinha aqui do lado, dois portões abaixo do nosso... e a nossa empregada se chama Elzira. Hoje é folga dela. 

— Continue...

— Segundo dona Rosa, desceu uma nave espacial num campinho de futebol aqui pertinho, colada ao supermercado. O supermercado (não sei se o senhor conhece aqui onde a gente mora) fica uns duzentos metros, mais ou menos da padaria onde mamãe pretendia ir... 

— Não, não conheço. Só falei duas vezes com a sua mãe por telefone e umas quatro, via WhatsApp.

— Entendi. Como dizia, de dentro dessa geringonça saíram vários seres pequenininhos todos verdes. 

— Todos verdes?

— Sim senhor. Verde-musgo. E tinham anteninhas amarelinhas e compridas com bolinhas brancas no alto de suas cabeças. Pareciam os anõezinhos da Branca de Neve. O senhor se lembra dos anõezinhos da Branca de Neve, não lembra? 

— Mais ou menos. Mas deixa pra lá. Prossiga...

— Assim! Essas criaturinhas simplesmente chegaram, viram a mamãe na rua, sozinha e sem mais nem menos, sem nenhuma explicação, “botaram ela” pra dentro da tal espaçonave.

— Meu Deus! Que coisa! Inacreditável!... e depois?

— Depois, seu Pedro, quando a dona Rosa deu o alarme os tais seres verde-musgo acho que se assustaram. Nisso se apressaram (arrastando a mamãe pelos cabelos) e sumiram de vez.

— Su... sumiram de vez?

— Sim e nesse sumiço...

— Minha princesa desculpe interromper. De onde você tirou essa historinha fantasiosa? Da sua imaginação, suponho?

— Não tirei. Aconteceu...

— Agora cedo?

— Cedinho mesmo. Tem uns quinze ou vinte minutinhos. A rua aqui onde eu moro, virou, num piscar de olhos, uma feira livre. O bairro em peso está sem saber o que fazer. Todo mundo abalado e em polvorosa.

— Com a chegada da tal nave?

— Não, senhor. Com a levada à força e contra a vontade da mamãe por essa cambada vinda do espaço. Como disse, ela acabou de ser abduzida. Abduzida não raptada... ou sequestrada.  

— E seu pai? Cadê seu pai?

— Está trabalhando. Ia falar com a senhorita Norma do escritório dele avisando justamente na hora em que o senhor ligou. 

— Meu Deus, criança! Vamos por etapa. Calma. Respira. Conta até dez. Quem é a senhorita Norma?

— A senhorita Norma é a secretária de meu pai.  Quando dona Rosa me deu a notícia de mamãe, ia exatamente fazer isso. Ai então o telefone berrou. Saí aos tropeções da mesa, onde tomava meu café para atender. Era o senhor! Nem sei o que vou dizer a ele... 

— A ele? A ele quem?!

— Ao meu pai... 

— Não entendi.

— É que ele ainda não sabe.

— Tati, minha linda, o que ele, seu pai, ainda não sabe?

— O que eu disse ao senhor...

— Nossa, Tati, você me disse tantas coisas. Estou de queixo caído... tremendo... juro por Deus. Se pudesse me ver...

— Eu estou me referindo ao que lhe disse até agora de mais importante...

— OK! De mais importante?

— Sim senhor...

— E o que foi? Desculpe. Você me falou tanta coisa, me encheu de informações, contou uma novela, me enredou de tal forma... perdi o rumo. Não consegui digerir toda essa babel. É muita coisa pra minha cabeça...  

— Seu Pedro, eu estou me referindo, repetindo o que informei ainda agorinha. O que eu disse de mais importante. Aliás, disse isso (o mais importante), se não me engano, pela segunda vez.

— Tá legal, desculpe. Falha minha. O que foi mesmo?! Me deu um branco áspero. Viajei como diz meu filho, na maionese...

— Eu disse que a mamãe não está. A mamãe como falei há pouco, foi A B D U Z I D A...

Tati tão convincente se fez no que abordava na conversação entabulada, que dona Viviane Cardoso de Godoi (que a tudo assistia e ouvia, diga-se de passagem, incrédula e estupefata), teve um piripaque momentâneo. Emoção, talvez. Caiu desmaiada. A menina largou o fone fora do gancho, com o tal do Pedro das “bugigangas” falando à deriva, dependurado no vácuo da sua ausência e se precipitou porta da frente, se esgoelando, literalmente por dona Rosa. Dona Rosa, desta vez, chegou, de fato, carne e osso, com meia dúzia de vizinhos, num alvoroço medonho. Alguém (da tropa que a acompanhava) ligou para o marido de dona Viviane. O pai de Tati chegou escoltado do doutor Marcos Capiloto (médico da família), vinte e cinco minutos depois.   

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

sábado, 18 de março de 2023

Coelho Neto (A felicidade)

Em volta do palácio, que era todo de fino e reflorido mármore, estendia-se, a perder de vista, o rumoroso acampamento.

Gente de toda a casta, homens de todos os países: uns cobertos de cerdosas peles, outros semi-nús, com uma tanga ligeira em torno dos rins; ainda outros com albornozes longos, fotas (turbantes) recamadas de pedrarias, papuzes (chinelos sem salto) de couro florejado, armas à cinta, seguidos de muitas lanças; e eram reis, e eram príncipes. Sacerdotes com os seus ídolos; sábios com os seus papiros; poetas com as suas liras; mercadores com os seus escravos; guerreiros com os seus escudos e tímidos, agachados entre os carros, disputando um lugar aos camelos enxareilados e aos ginetes cobertos de telizes (bordados com as insígnias dos cavaleiros), mendigos maltrapilhos que se encolhiam com medo.

Todos esperavam que se abrisse a enorme porta de bronze e aparecesse o gênio que devia, por força do Destino, buscar o afortunado a quem coubesse o palácio com as suas inúmeras riquezas. Todos contavam com a ventura e já se imaginavam o eleito da Fortuna quando, ao clangor de uma buzina, a porta abriu-se de par e na soleira assomou o gênio.

Alto e gracioso mancebo, de um louro fulvo, de Sol, que mais fazia realçar a alvura do rosto, de beleza feminina e meiga. Túnica de cor celeste, com flores de ouro, cobria-lhe ondulantemente o corpo airoso. À mão trazia, à maneira de cetro, largo trifólio engastado em comprida haste, também de ouro.

Os homens, tolhidos em maravilhado assombro, não tiravam os olhos do mancebo. Viram-no descer as escadas, seguir à sombra dos álamos, chegar ao acampamento e, indo, sem indecisão, por entre tendas de púrpura e tendas de linho, entrar num bosque onde um homem, enrolado em farrapos, roía, com voracidade, um osso disputado aos cães.

O gênio deteve-se e então, acenando ao miserável com o trifólio, ajoelhou-se na terra sórdida e, veneradamente, o elegeu senhor do palácio e de toda a sua riqueza.

Foi um desapontamento na turba. Ninguém se conformava com a estranha escolha do Destino. Pois onde havia reis, príncipes, altos senhores, poetas, sábios que liam nas estrelas, sacerdotes que se comunicavam com os deuses, mercadores que possuíam frotas nos mares e minas no seio da terra, havia de ser um roto mendigo o favorito?...

Logo se arrancaram as lendas, arreiaram-se os animais, jungiram-se os bois aos carros e, lentamente, começou o desfilar das caravanas. Ao limiar do palácio saíram a esperar o mendigo fâmulos (subservientes) e ancilas (escravos) e, por entre colunas de coral e ouro, por baixo de abóbada trêmula de iriados (matizados) flabelos (leque de plumas), pisando tapetes macios e ouvindo o fresco cantar das fontes, extasiadamente o miserável atravessou o peristilo (pátio rodeado por colunas), os corredores luminosos, os pátios enxadrezados e entrou na câmara, que era toda de oloroso cedro com tauxias (incrustações) de ouro e prata e incrustações de pedras.

O banho que o esperava rescendia e era todo de leite de flores. Refrescado, vestiram-no e rei algum carregou jamais sobre o corpo as riquezas com que o recobriram.

Inclinou-se o mordomo e, por entre o tanger de flautas e de cítaras, o foi guiando à grande sala onde o esperava o banquete em lauta mesa, lampejante de baixelas e cristais e toda florida.

Sentou-se o venturoso.

Logo rompeu o concerto delicado de finas harpas, de flautas suaves e de vozes.

Ao fim do repasto levaram-no a ver os jardins onde a Primavera não daria por falta de uma só das suas flores. Passaram aos pomares de toda a fruta, entraram ao bosque de frescos, assombrados e redolentes meandros, onde se desafiavam em gorjeios todos os passarinhos e os dóceis animais silvestres passeavam. Foram às cavalariças, onde estadeavam os mais formosos e robustos ginetes do deserto. Adiantaram-se os pastores a dar-lhe contas dos gordos rebanhos que guardavam.

Por fim, fez o mordomo a volta da torre de pedra onde se empilhavam os tesouros e em torno da qual, silenciosamente, iam e vinham roldas e sobre-roldas de guerreiros possantes.

De regresso ao palácio — já a rútila (cintilante) Vésper subia no horizonte, — o afortunado avistou na varanda, entre os inclinados ramos dos jasmineiros e das acácias que florescem de ouro, as lindas, esbeltas mulheres do seu gineceu que o esperavam, qual mais ansiosa do seu beijo, esmerando-se em seduzí-lo com lânguidos meneios e logo as chamou com o sôfrego desejo tanto tempo contido e, por toda a noite longa, enquanto soavam as músicas voluptuosas e os escansões serviam os vinhos em crateras e as bailarinas faziam os mais difíceis e graciosos passos, gozou exaltadamente a delícia do amor.

Recolhendo à câmara — já as cotovias ensaiavam o canto — viu o seu leito, de macia cócedra (colchão de penas), forrado a seda, ladeado por dois grifos de olhos de carbúnculo. Deitou-se, mas o sono fugia-lhe. Lembrou-se, então, dos dias de fome, das noites de frio, das injúrias dos homens, do desprezo das mulheres.

Insone levantou-se, abriu largamente uma das grandes janelas e, à pálida luz da manhã, que nascia, sentindo o aroma dos jardins, pareceu-lhe que, ao longe, muito longe havia um palácio maior e mais rico, com mais ouro, jardins mais vastos e mais floridos, pomares mais fartos, tesouros mais cheios, mulheres mais belas, guerreiros mais robustos, músicas mais concertadas, iguarias mais saborosas e vinhos mais antigos.

Então, pendendo a cabeça, achou pequena a sua fortuna e, com inveja dos que haviam partido à aventura, invejando-o, pôs-se a murmurar pensativo: « Ainda há riquezas maiores! . . .»

E, a suspirar tais queixas, entre as púrpuras e os brocatéis da câmara, veio encontrá-lo o sol, o sol que, ainda na véspera, o vira entre farrapos, disputando aos cães dos nômades, sobre o estravo (excremento) dos camelos, um osso esburgado (separado da carne).

Fonte:
Disponível em domínio público.
Coelho Neto. Fabulário. Porto/Portugal: Livraria Chardron, de Ceio & Irmão, 1924.

Lima Barreto (Uma conversa)

- Disse-te ainda há pouco, falou o Zeca Magalhães, na mesa de chopes em que estávamos, que não tinha certeza das minhas sensações e, portanto, não tinha nenhuma das minhas ideias. Não é o momento de te citar filósofos, nem organizar raciocínios rimados. Conto-te somente um caso ilustrativo, cheio de proveitosos ensinamentos.

Pegou do copo e sorveu um segundo chope, enquanto eu via, numa mesa ao lado, um gordo alemão com um focinho de porco Yorkshire, acompanhado da mais linda alemã que foi dado aos olhos de um carioca, que nunca saiu da sua cidade natal, ver e contemplar.

- Zeca, disse eu, a meia voz, vê que alemã bonita.

- Era disso mesmo que eu queria falar, fez ele descansando o copo.

- Da alemã?

- Relaciona-se. Eu estava no teatro... Foi há vinte anos, ou mais. Estava no teatro, no jardim, quando vi uma mulher. Que beleza era! Tinha uns olhos, um nariz! E que boca!

- Pintura.

- Qual! Ouve. Olhei-a demoradamente, analisei traço por traço, via-a na luz, pus-me mais perto e a impressão continuava a mesma, e até crescia. Ao sair, acompanhei-a... tu sabes o resto? Pela manhã, quando acordei e contemplei a mulher, sob a luz do sol, não era a mesma! Cos diabos! fiz eu. Querem ver que me trocaram a mulher? Nada disso, despedi-me com toda a conveniência e saí. O caso não me saiu da cabeça. Eu a tinha visto no teatro, em plena integridade dos meus sentidos; tinha analisado detalhadamente - como era então que a mulher que eu via, às oito horas da tarde, não era a mesma de quem me despedi às seis da manhã do dia seguinte?

“Pintura? Não foi, eu tinha reparado bem. Voltei à sua casa dias seguintes. Examinei-a bem, traço a traço, comparei-a com as duas imagens que tinha dela - a das oito da tarde e a das seis da manhã. Nada lembrava a primeira, sendo exatamente igual à segunda. Voltei ao teatro, estive a lhe falar - era ainda a segunda imagem, a mais próxima. Estava doido naquela noite! pensei. Rememorei o que fizera naquele dia e nos precedentes ao meu encontro com a tal italiana.

“Lembrei-me que tinha recebido umas estampas de grandes obras de escultura e, na sua contemplação, gastara horas seguidas de uma atenção absorvente. Estava aí a causa do erro! Sobre os seus traços verdadeiros, ou antes, os mais reais, eu tinha depositado a imagem anterior da grande beleza que me ficara do livro; e, quando de manhã, com a fadiga, etc., ela se esvaiu, ficou mais ou menos a mulher comum, fugindo por completo a ideia anterior com que eu a resvestira.

“Daí concluí, não sem ligeireza, que essa nossa mania de beleza é um contágio dos delirantes sonhos de alguns homens, dados a loucuras de Arte, exacerbados com os delírios das tradições de antigas raças e sofrendo a tirania dos ideais belos; é que as nossas sensações são interpretadas pelo nosso entendimento, de acordo com as imagens de certos padrões, que já estamos predispostos a recebê-las..."

- Concordo em parte; mas daí podias concluir que a Arte é útil, estimula o Amor, a eternidade da vida...

- Quanto a isto, não; há nas boticas outros sucedâneos menos perigosos.

Não havia uma hora que eu o tinha visto terno; agora estava desabusado, cinicamente brutal, cobrindo com um sarcasmo o que sempre o vira engrandecer.

- Entretanto, observei, para que a visses assim, era preciso que ela tivesse alguma coisa da tal estampa que se te gravara no cérebro.

- Estava talhada para isso... No momento, possui uma disposição qualquer, nos seus elementos fisionômicos, capaz de suscitar e de emitir a imagem que eu já tinha, nos seus traços vivos.

Bebíamos o quinto chope, e, embora por estas alturas, eu sempre fique mais inteligente e animado, naquela noite, a fadiga não me permitiu. Despedi-me.

Fonte:
Disponível em domínio público
Lima Barreto. Histórias e sonhos. Publicado originalmente em 1920.

sexta-feira, 17 de março de 2023

Analecto de Trivões n. 1

 

Nilto Maciel (Dois Seres)

Há poucos dias estamos aqui. Trouxeram-nos um homem, uma mulher e uma menina. Chegamos dentro de uma jaula. Vivíamos numa jaula maior, com outros inúmeros semelhantes nossos. Não sabemos como eles estão, nem se ainda vivem no mesmo lugar. Nossos dias e nossas noites são sempre iguais. Dormimos muito, porque não temos quase nada a fazer. Passamos quase todo o tempo comendo a ração que nos dão, dormindo ou brincando numa roda. Às vezes o homem aparece, fuma, bebe, olha para a rua, o céu, conversa sozinho. Olha para nós e some. A mulher surge sempre à mesma hora: põe a ração dentro do pequeno estojo, despeja água noutro estojo, molha as plantas, fala alto e nos xinga. A menina pouco vemos. Fala-nos com carinho, olha para nós demoradamente e nos chama por nomes esquisitos. Os nomes certamente ela os inventou, porque antes nunca os ouvimos. 

Do outro lado da porta há sempre gente falando e às vezes cantando. São figuras pequenas, mais ou menos do meu tamanho, dentro de uma tela iluminada. O homem parece ouvi-las à noite. Não sei para onde vai durante o dia. A mulher nunca se senta ao lado do homem. Não sei mais o que fazer. Penso em fugir, mas a pequena prisão é de metal e entre as hastes mal cabe minha pata. Se eu conseguisse fugir, nem sei para onde deveria ir. Onde estarão meus irmãos e meu pais? 

Também penso em morrer logo. Não sei se duraremos muito nesta vida, embora não nos falte comida e água. O sol é muito quente de manhã. Faz frio de noite. Há uma casinha dentro da jaula e nela às vezes nos refugiamos. No entanto, é muito quente, abafada, sem ar. E meu companheiro é muito egoísta. Não me dá espaço. O jeito é arranhar as hastes da jaula e pensar em fugas. A mulher aparece e grita: “Sossega, bicho danado”. Se emagrecer muito, talvez consiga fugir. Para onde, não sei. O homem surge diante de nós e resmunga: “Esses bichos devem pensar também”.

Fonte:
Enviado pelo autor.
Disponível em Nilto Maciel. Pescoço de Girafa na Poeira. Brasília/DF: Secretaria de Cultura do Distrito Federal/Bárbara Bela Editora Gráfica, 1999.

Josefina de Castro Fonseca (Poemas Esparsos)

AO MEU CORAÇÃO

Por que estás tão apressado,
Coração, a palpitar?
Queres, deixando meu peito,
Por esses ares voar?
Queres do meu pensamento
A carreira acompanhar?

Queres, misero insensato,
Este desejo cumprir?
Intentas da fantasia
Os amplos voos seguir?
Buscas, vencendo a distância,
Tua saudade extinguir?...

Esta saudade tão funda,
Tão viva, tão pertinaz,
Que te faz tão desgraçado,
Que tão ditoso te faz?
Que tanto te amarga às vezes,
Que às vezes tanto te apraz?

Pretendes tu, pobre louco,
Tuas dores aumentar?
Desejas ao lado — Dele—
De martírios te fartar?
Queres nos olhos, que adoras,
Mais desenganos buscar?

Se ao excesso do tormento
Tivesses de sucumbir,
Quem tanto havia de amá-lo,
Deixando tu de existir!
Quem ousaria contigo
Em firmeza competir?

E ele, onde poderia
Tão soberano reinar?
Onde iria sua imagem
Obter tão devoto altar,
E tão desvelado culto,
Tão fervoroso, encontrar?

Deixa ir só meu pensamento,
De seus voos na amplidão;
Quem sabe se ao lado doutra
O acharás, coração?
Morre embora de saudade;
Porém de ciúme... não!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = 

A PEDIDO
(Para um álbum)

Eu engenho não tenho sublime,
Que te possa o que sinto, expressar;
Minha lira não tem a doçura,
Com que deve teus dotes cantar.

Para dizer-te somente, que és bela,
Não se hão de meus lábios abrir;
Que a lindeza, que tens no semblante,
Esta frase não pode exprimir.

O teu rosto, que as graças enfeitam,
Chamar belo — é mui fraca expressão,
Ele aos olhos o tipo apresenta
De sublime, ideal perfeição.

Eu não sei nesta folha querida
Dedicar-te um louvor que me agrade;
Nela apenas escrevo um protesto
De extremosa, sincera amizade.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = 

IMITAÇÃO DO SR. ABOIM

Se eu fora da Trácia o Vate sublime,
A lira afinara para só te cantar;
Se eu fora o pintor de Itália famoso,
Quisera o teu rosto para mim copiar.

Se eu fora a fontinha, que corre indolente,
E sobre conchinhas se vai espraiar,
Então me verias, correndo anelante,
Teus pés delicados risonha beijar.

Se eu fora um infante gentil, inocente,
Só tuas carícias quisera lograr;
Se sono tranquilo meus olhos cerrasse,
No teu brando seio quisera pousar.

Se eu fora a violeta, que sob as folhinhas
Esconde os encantos que Deus lhe quis dar,
A ti me mostrara, e sobre teus lábios
Meus puros perfumes quisera entornar.

Mas eu não sou fonte, pintor, ou violeta,
Nem vate, que possa teu nome exaltar;
Apenas sou triste mulher, que te adora
O mais que na terra se pode adorar.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = 

MEUS DESEJOS
(A Angelina)

Eu quisera dizer-te, meu anjo,
Quanto és por minha alma adorada;
Eu quisera mostrar-te que trago
Tua imagem no peito gravada.

Eu quisera, que a sabia natura
Seus primores para ti reservasse;
Eu quisera, que o Deus de bondade
De mil ditas teus dias coroasse.

Eu quisera, de todo o universo
Sobre o trono melhor te assentar;
Eu, enfim, desejara ser homem
E poético amor te ofertar.

Só em ti, enlevado, veria
O meu voto mais caro cumprido;
Quando uma alma, que a minha entendesse,
Ao Eterno eu houvesse pedido.

Tu então realizarás, meu anjo,
Meu querido ideal amoroso;
Tu me deras do céu as delícias;
Eu seria o mortal mais ditoso.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = 

UNS OLHOS
(Num álbum)

Num semblante peregrino
Dois olhos castanhos vi,
Tão ternos, tão matadores,
Outros jamais conheci.

Do sol ardente não tinham
O deslumbrante fulgor:
Mas, como a serena lua,
Moitas falavam de amor.

Brilhavam com a luz suave,
Que alumia o coração;
Do divino olhar dos anjos
Tinham o doce condão.

Olhos, que assim possuíam
Tão poderosa magia,
Quem, depois de os avistar,
Por eles não morreria?!…

Fonte:
Disponível em Domínio Público.
Adélia Josefina de Castro Fonseca. Ecos de minha alma. Publicado originalmente em 1866.

Hans Christian Andersen (O Linho)


O linho estava todo em flor, coberto de pequenas corolas azuis, delicadas como as asas da cigarra - e ainda mais transparentes. Recebia a luz do sol e as águas da chuva: era como a criancinha que depois do banho recebe um beijo da mamãe. Isso aumenta a beleza das crianças, e foi o que aconteceu com o linho.

- Dizem que cresci muito, - exclamava ele - que estou muito alto e que hei de dar um belo pedaço de pano. Sou na verdade muito feliz! Sou, certamente, o mais feliz de todos. Que sorte tenho tido! E tudo me sairá bem. O sol me alegra tanto e a chuva me refresca - esta chuvinha boa e agradável! Sou infinitamente feliz, não há ninguém mais feliz do que eu!

- Pois sim, pois sim! - disse a taquara. - Não conheces o mundo , mas eu conheço, pois sou toda cheia de nós.

E ela rangia, lamentando-se:

"Lá-lá-ri, lá-ri-lá-lá,
Lá-lá-ri, lá-ri-lá-lão!
Acabou-se a cantoria!"

- Não, senhora! Não acabou! – disse o linho - Amanhã o sol há de brilhar, ou há de vir a chuva  me refrescar. Sinto que estou crescendo... sinto que estou em flor. Ah! Sou eu o mais feliz!

Mas um dia vieram uns homens e seguraram o linho pelo pescoço, arrancado-o com raiz e tudo. Aquilo doeu muito! Depois deitaram-no à água, como se quisessem afogá-lo, e  depois o expuseram ao calor do fogo - parecia que iam agora assá-lo! Foi uma coisa horrível!

- Ora, não se pode viver bem todos os dias. – disse o linho - Devemos passar trabalhos: é assim que se aprende.

Mas o fato é que padeceu tormentos horríveis. Foi molhado, torrado, despedaçado, e  cardado... Nem ele mesmo sabia que nome havia de dar a todos os processos a que o submeteram. Afinal, meterem-no na roca: Rrrr! ...Rrrr!... Nem lhe era possível concentrar as ideias. E, no meio de todas aquelas torturas, ia sempre pensando:

- Fui muito feliz outrora... A gente deve contentar-se com os bens que já gozou... contentar-se... contentar-se... ar! ...Ai!

E foi então que o meteram no tear, e ali ele se transformou em uma grande e bela peça de pano. E todo o linho, até a última haste, foi gasto naquela única peça.

- Mas que coisa extraordinária! Quando é que eu ia imaginar isto! Vejam como a sorte me favorece! A taquara não estava mal-informada quanto aquele "lá-lá-ri-lá-ri-lá-lá" que cantava! Mas a cantiga não se acabou, não! Pelo contrário, agora é que vai começar. É, com efeito, extraordinário! É certo que me fizeram sofrer um bocado, lá isso é verdade, mas cheguei  a ser alguém. Sou eu o mais feliz de todos. Como fiquei forte, distinto, branco , e tão comprido... Isto sim vale a pena! Não é só ser uma planta, ainda que esteja coberta de flores! Ninguém se importava comigo, e água, só recebia quando chovia. Agora  sim, tratam de mim, enchem-me de mimos. A criada vira-me todos os dias, e todas as noites me dão um banho de chuveiro, com o regador. A esposa do pastor até fez um discurso, dizendo que eu era a melhor peça de linho de toda a paróquia. Não! Eu não poderia se mais feliz do que sou!

Levaram o pano de linho para dentro de casa, e lá caiu ele sob os golpes da tesoura. Ah! Como o talharam e retalharam! Não era nada agradável, aquilo! Mas afinal foi convertido em doze peças de roupa - peças cujo nome não se costuma dizer, mas que todas as pessoas devem usar. Fizeram uma dúzia, dessas peças.

- Vejam! Agora é que me tornei uma coisa útil. Era então este o meu destino! Que maravilha! Agora presto serviços, tenho utilidade no mundo, como todos devem ter. Isto é que causa prazer à gente! Somos agora doze peças, mas somos todas uma e a mesma coisa. Formamos exatamente uma dúzia. Que sorte extraordinária a nossa!

Passaram-se anos. Um dia, enfim, o pano de linho estava gasto.

- Tudo se acaba, afinal. – dizia cada peça de roupa - Eu gostaria de durar mais um pouco, mas a gente também não deve desejar o impossível.

Foram então rasgadas em pedacinhos. E, quando se viram assim picadas, encharcadas de água e cozidas, pensaram que agora, sim, estava tudo acabado. Nem elas mesmas sabiam quanta coisa acontecia... e de repente estavam transformadas em belo papel branco.

- Mas que surpresa, que maravilhosa surpresa! - disse o linho. - Sou mais fino agora do que dantes, e hão de escrever sobre a minha superfície! Pois isto não é uma sorte extraordinária?

E realmente nele foram escritas as mais lindas histórias e poesias, e apenas um único pingo de tinta lhe caiu em cima, fazendo um borrão, isto em um momento de pouca sorte. E as pessoas ouviram o que fora escrito sobre o papel, eram coisas boas e inteligentes, que tornavam os ouvintes muito melhores e mais instruídos. Havia uma benção nas palavras escritas naquele papel.

- Mas isto é muito mais do que eu podia imaginar, quando era uma simples florzinha azul, lá no campo! Como ia esperar que um dia pudesse espalhar alegria e conhecimentos entre os homens? Ainda não posso compreender, mas realmente assim é. Deus sabe que não fiz senão o que minhas limitadas forças me obrigaram a fazer, para assegurar a minha subsistência e, todavia, ele me favorece desta maneira, fazendo que eu vá de uma alegria a outra, de uma honra a outra honra. E cada vez que penso comigo: "acabou-se a cantoria!"  torno de novo a uma vida melhor, mais elevada! Agora, com certeza, irei viajar pelo mundo, para que os homens me possam ler... Não pode ser de outra  maneira. Não há nada mais certo! E tenho pensamentos magníficos, e tão numerosos como fora, outrora as minhas flores azuis... Sou a criatura mais feliz do mundo!

Contudo não o mandaram viajar: enviaram-no à tipografia. E lá aquilo que nele estava escrito foi composto e impresso, para formar um livro, e até muitas centenas de livros; assim poderiam tirar alegria e proveito de sua leitura muito maior número de pessoas que não lhes seria possível fazer se um único papel corresse mundo, gastando-se no caminho.

- É claro que isso é muito mais razoável - pensava o papel escrito. - Nem me lembrava de semelhante coisa. Fico em casa, onde serei honrado como um velho avô, e é o que no fundo venho a ser de todos esses livros novos. Assim o resultado será muito maior. Eu não poderia circular daquele jeito. Mas foi em mim que fixou os olhos aquele que escreveu a obra. Cada palavra entrou em mim, vinda diretamente da pena. Sou a mais feliz das criaturas!

E o papel foi amarrado, feito um fardo, e assim o lançaram em um barril, na lavanderia.

- Quem bem trabalha, melhor descansa! É muito útil a gente se concentrar e ter tempo para meditar sobre as coisas que traz no seu íntimo. Só agora sei realmente o que está escrito em mim. E conhecer-se a gente a si própria é a verdadeira sabedoria. Que farão de mim, agora? De qualquer forma darei um passo à frente: é sempre para a frente que a gente caminha. Isso já o sei por experiência própria.

Mas um belo dia todo o papel foi retirado do barril e posto sobre o fogão. Ia ser queimado. pois não podia ser vendido no armazém para embrulhar manteiga ou açúcar. E todas as crianças da casa se agruparam em roda, porque gostavam de ver arder papel, que dava labaredas tão altas e tão lindas. Além disso a gente via nas cinzas aquela multidão de faíscas vermelhas, que esvoaçavam para todos os lados, e iam extinguindo-se rapidamente. As crianças chamavam aquela brincadeira "ver as crianças saírem da escola";  e a última faísca era o mestre. Muitas vezes toda a gente pensava que ele já tinha saído, quando de repente lá vinha mais outra faísca:

- Lá se foi o mestre-escola!

Mas é que não estavam bem informados. Deviam saber quem era que ia saindo! Nós o sabemos, mas as crianças ignoravam-no.

Todo o papel velho, o fardo inteiro, inflamou-se num instante.

- Uuuu! - clamava ele, quando flamejava em labaredas altas. - Uuuu! ...

Não se pode dizer que aquilo era lá muito agradável. Mas quando tudo estava em chamas, ergueram-se elas a tamanha altura como o linho nunca poderia erguer suas florzinhas azuis, e brilhavam como o pano branco jamais poderia brilhar. Todas as letras escritas nele ficaram vermelhas no mesmo instante, e todos os pensamentos, todas as palavras que estavam ali se transformaram em labaredas.

- Agora subo diretamente até o sol! – clamou a chama.

E foi como se mil vozes cantassem uníssono. E as chamas saíram no topo da chaminé.

E mais finos ainda que as chamas, invisíveis para o olho humano, adejavam seres pequeninos: tantos quantas tinham sido as flores do linho. Eram mais leves que a chama de que haviam nascido. E quando esta se extinguiu, e do papel nada mais restava senão a cinza escura, eles dançaram ainda uma vez por cima dela: onde quer que um deles a roçasse, brotava centelhas rubras.

- As crianças saíram da escola e o mestre foi último!

Grande era a alegria, e diante da cinza morta cantavam as crianças:

"Lá-lá-ri, lá-ri-lá-lá,
Lá-lá-ri, lá-ri-lá-lão!
Acabou-se a cantoria!"

Mas todos aquele pequeninos seres invisíveis disseram:

- A cantiga não se acaba nunca! E é isso o que há de mais lindo. Bem o sei eu, e por isso mesmo sou a criatura mais feliz do mundo!

Todavia , eram palavras essas que as crianças não podiam ouvir, nem entender.

Também, não era preciso: pois as crianças não devem saber tudo, não é ?

Fonte:
Disponível em Domínio Público.
Hans Christian Andersen. Contos de fadas. Publicado originalmente em 1847.