sábado, 14 de julho de 2012

Sara Gaspar Pedro (“Vila de Rei – Rostos e Olhares” / Elisa Moniz (1990))

Capítulo 1

Passo os dias, imóvel, junto à janela, a tentar observar, de olhos semi cerrados. Hoje, uma criança brinca lá fora e tenta, com grande esforço, colocar o seu papagaio a voar. Não sei quem ela será, provavelmente a neta de algum dos anciãos que me acompanham nesta casa. Gostava de me aproximar, correr com ela, como teria feito muito anos antes com os meus irmãos.

Já conheço o mundo há oitenta e nove longas Primaveras, mas o tempo não foi simpático comigo. Hoje, quando acordei, tentei ver-me, através da branquidão que se vai apoderando do meu olhar, e não me reconheci. O meu rosto, repleto de marcas profundas mostram uma vaga ideia do que fui. As minhas mãos, marcadas pelo tempo, têm constantemente aquele aspecto de quem passou demasiado tempo debaixo de água.

Durante muito tempo fui considerada a rapariga mais bonita da aldeia de Fernandaires. O meu cabelo avermelhado, igual ao do meu pai, dava nas vistas, em especial durante o pôr-do-sol, em que parecia brilhar. Eu e os meus irmãos costumávamos mergulhar todos os dias no rio Zêzere e saíamos a tempo para observar o entardecer. A Maria era a mais velha, como tal, era quem tomava conta de todos nós. Passado um mês da minha irmã ter nascido, a minha mãe tinha engravidado novamente. O meu pai desejava ardentemente um rapaz, para que o ajudasse nos campos e na casa, e ficou radiante quando 9 meses depois recebeu dois: o Luís e o Pedro.

A minha mãe descrevia aquela noite como uma das mais assustadoras da sua vida. Estava a chover torrencialmente, a trovoada rebentava no céu e até o rio parecia zangado! Assim que se ouviram os primeiros trovões, as dores começaram, e a parteira não havia forma de chegar. As Fernandaires não eram um local fácil de aceder, pior ainda naquelas condições. As dores iam aumentando e chegaram a um ponto tal que o meu pai foi obrigado a ajudar a minha mãe a trazer ao mundo o Luís. Ela falava com carinho da cara de felicidade do meu pai quando viu o rapaz. Era pequeno mas chorava com força: “Vai ter garra este rapaz!”. Assim que disse estas palavras, a minha mãe voltou a gritar de dores, sem conseguir compreender porquê. Por momentos achou que ia morrer. Foi nesta altura que chegou a parteira, completamente encharcada e enlameada. E minutos depois nasceu o Pedro.

Enquanto cresciam, os meus irmãos eram exactamente iguais, tanto no aspecto como em tudo o que faziam, quase como se tivessem feito um pacto no ventre da minha mãe de se revezarem em tudo. Havia alturas que trocavam de lugares, sem que ninguém se apercebesse. Por mais que a minha mãe tentasse vestir-lhes roupas diferentes, de modo a conseguir distingui-los, eles arranjavam sempre forma de a confundir. Quando nasci, eles tinham apenas um ano, e já eram as crianças mais irrequietas que se tinham visto naquela pequena aldeia.

Visitaram-me há pouco tempo. Incrivelmente, mesmo na velhice, continuam iguais um ao outro. Mais que isso, conseguiram manter aquele sorriso matreiro que sempre os caracterizou. Fui sempre a sua protegida, mesmo agora, cada vez que os vejo, o meu coração sossega e acabo sempre por sorrir na sua companhia.

Capítulo 2

As dores nas minhas costas, assim como a curvatura que já as caracteriza há uns anos são marcas de todos aqueles anos que passei a ajudar o meu pai, com uma enxada na mão, dobrada, a apanhar todos os alimentos que saiam da terra. Desde muito cedo fui habituada a trabalhar com os meus irmãos nas hortas que tínhamos em volta da casa e nas margens do rio, onde as terras eram mais férteis. O meu pai cultivava tudo o que conseguia e ia todos os Domingos, ainda o sol não tinha nascido, para Vila de Rei, para vender os seus produtos no mercado.

Adorava tudo acerca do mercado: os cheiros, as pessoas, as cores, tudo. No entanto, era cada vez mais difícil vender e as terras, apesar de férteis, quantos mais anos passavam, menos frutos pareciam dar. A minha mãe, ajudava todos os Sábados a limpar as frutas e legumes, e a escolher aqueles que se iriam levar para o mercado. Os que tinham pior aspecto, ficavam sempre connosco e a minha mãe esforçava-se para fazer o que conseguia com o que sobrava. Nos piores dias, comíamos apenas uma batata cada um. Com sorte, os meus irmãos tinham pescado qualquer coisa, ou o meu pai tinha ganho o suficiente para comprar um pedaço de carne para alimentar toda a família.

Hoje relembro esses dias com nostalgia. Eram dias duros, em que se trabalhava estivesse sol, chuva, frio ou calor. Mas toda a família estava reunida, todos tínhamos um propósito e trabalhávamos para um fim. Ao final do dia, toda a família se banhava no rio, e todos sorríamos, satisfeitos com aquilo que tínhamos alcançado naquele dia.

Os gémeos costumavam fazer um jogo, em que ambos mergulhavam mas apenas um vinha à superfície, e nós tínhamos que adivinhar qual dos dois é que aparecia. Quando eram mais velhos e fazia bom tempo, costumavam percorrer o rio e ficar a pescar durante horas. No início a minha mãe ficou muito nervosa, com receio que algo de mal lhes acontecesse, mas rapidamente se convenceu com as iguarias que traziam para a nossa mesa.

Eu e a minha irmã Maria, acompanhávamos a minha mãe em tudo o que ela fazia. Rapidamente aprendemos a cozinhar, limpar e cozer, tudo o que uma boa senhora deveria saber. A minha irmã era, no entanto, muito mais habilidosa do que eu, e muito mais dedicada também. Eu tinha o hábito de desaparecer para explorar os terrenos em volta da casa. Gostava de descobrir os sítios mais recônditos e marcá-los com o meu nome, numa árvore da minha preferência. O meu nome era a única coisa que conseguia escrever, até ter começado a acompanhar o meu pai ao mercado. Rapidamente aprendi a matemática necessária, e as contas pareciam-me bastante óbvias. A escrita, nem tanto, mas todos os Domingos, a professora Amélia, da escola de Vila de Rei, ensinava-me, com a sua paciência, aquilo que conseguia. Seguia, de manhã, com o meu pai e ajudavam nas contas e em tudo o que fosse necessário. Ia ter com a professora Amélia às 2 da tarde, onde limpava a sua casa o mais depressa e o melhor que podia, para que depois ela me desse a lição. Praticava sozinha durante a semana e apresentava os resultados no fim-de-semana seguinte.

Tinha 8 anos quando recebi o meu primeiro livro, mas lê-lo não foi tarefa fácil. Era um catecismo, já com alguma idade e páginas amarelecidas. As letras eram pequenas e as palavras inúmeras, mas passado algumas semanas já sabia cada palavra de cor. Ainda o tenho guardado numa caixa debaixo da minha cama aqui no Lar. É das poucas coisas que guardo do meu pai, que quase chorou por lamentar não conseguir dar-me mais do que aquilo. Fui eu que tratei de ensinar tudo o que aprendia aos meus irmãos, o que não era tarefa fácil, mesmo sendo eles mais velhos que eu. A única escola que havia era longe e nós não tínhamos forma de nos deslocar até lá e os meus pais precisavam de nós.

Apesar de todas as dificuldades, recordo com carinho o pôr-do-sol no rio, as águas frescas, todos aqueles recantos com “Anita” escrito nas árvores… Deveria ter regressado antes que as cataratas me tivessem impedido de ver com clareza.

Capítulo 3

Em cima da minha mesa-de-cabeceira tenho uma fotografia antiga da minha família. Foi tirada antes que o meu irmão Mário tivesse nascido e antes do dia em que a minha família se começou a dividir.

Deveria ter 8 anos quando o meu tio Alberto nos veio visitar. Chegou num carro amarelo berrante, que foi a novidade do dia na aldeia. Vinha vestido com um fato bege e com uma bela gravata. Estava na Alemanha há muitos anos, e ao que parecia tinha vingado no mundo dos negócios. Foi uma noite animada, com muito vinho à mistura. Acho que nunca tinha visto o meu pai ficar com o nariz tão vermelho, mas a verdade é que já fazia dez anos que não via o irmão. Já era bastante tarde quando fomos para os nossos quartos. Os gémeos tinham bebido vinho e estavam a ressonar muito alto no quarto ao lado, apesar disso eu parecia ser a única que não conseguia dormir.

Dirigi-me para a cozinha, queria beber um copo de leite com mel, que mesmo na velhice sempre me ajudou a adormecer. Quando descia as escadas ouvi vozes no andar de baixo. Lembro-me da conversa como se fosse hoje:

“- A vida está cada vez mais difícil por aqui… A minha mulher acha que está grávida outra vez e eu não sei como vou conseguir alimentar mais uma boca. – dizia o meu pai.

- Então, deixa-me levar um dos teus filhos comigo. A vida corre-me bem, mas a Madalena não consegue gerar um filho para nós. Moramos numa zona simpática e temos uma boa vida, mas ninguém para a partilhar. Talvez a tua mais nova… - nesta altura o meu coração deu um salto. Aquilo que menos queria era ir para longe da minha família.

- Não, a Anita é óptima com as contas e já não me imagino no mercado sem ela. E não posso separar os gémeos, acho que nenhum deles sobreviveria.

- A Maria então. Prometo que a deixo bem casada e bem na vida!

- Tenho de falar com a mulher primeiro… Confio que cuides bem dela, mas é difícil deixar ir assim um filho meu. Amanhã falamos melhor sobre o assunto, preciso de pensar.”

Voltei a correr para a cama, a tremer e com suores frios, só de pensar que poderia ter de ir, de partir para tão longe, separar-me da realidade que conheço e adoro. Não há nada como o cheiro da manhã, o som dos pinheiros quando passa aquela brisa suave, a frescura da água, tão próxima, tão fresca.

Dois dias depois o meu pai anunciava que a Maria ia partir com o tio Alberto para Munique, na Alemanha. A minha mãe chorava silenciosamente e todos nós olhávamos a Maria com pesar. Tinha escolhido não lhe dizer nada, não adiantava assustá-la se nada fosse realmente acontecer. Mas agora era tudo real, ela ia partir e eu não conseguia abandonar a sensação que nunca mais a iria ver, o que acabou por acontecer.

A última imagem que tenho dela, é aquele carro amarelo a partir, com o cabelo avermelhado que caracteriza a nossa família, a brilhar ao sol, enquanto nos acena através da janela do carro, tentando esconder as lágrimas e o medo de partir com para um país novo, com um tio que mal conhecia. Foi o início do fim.

Capítulo 4

Uma das meninas que trabalha aqui no Lar da Fundada, costuma ler para mim. Acho que ela nem percebe como isso me faz feliz e infeliz ao mesmo tempo. O meu sorriso, que aparece ligeiro nos momentos felizes da história, mal transparece na minha face enrugada e sem expressão.

Durante muito tempo, a leitura foi a minha paixão, e cada livro um pequeno tesouro. Passei a minha vida a tentar ler tudo o que conseguia arranjar e adorava. Cada vez que a minha irmã nos enviava uma carta, eu lia-a e relia-a vezes sem conta. Era a única forma de me sentir mais próxima dela. Entretanto, o meu irmão Mário nasceu. Era uma criança calma e recatada, que admirava os irmãos mais velhos como se fossem deuses. Costumava vê-los a desaparecer rio abaixo, com as suas canas de pesca e desejava secretamente segui-los. Uma vez ainda o apanhei a tentar e consegui impedilo. Infelizmente, não o vi naquela tarde.

Estava um dia fantástico, solarengo e com aquela brisa que caracteriza os dias de Verão na zona do Pinhal. Os meus irmãos tinham ido à Vila com os meus pais e eu tinha ficado sozinha com o Mário. Depois de fazer as tarefas que a minha mãe me tinha deixado, peguei num livro que uma senhora da escola do Abrunheiro me tinha dado quando a visitei, e estava distraída a lê-lo à beira do rio. Hoje já não me lembro do que tratava, mas lembro-me do pânico que se apoderou de mim quando olhei à minha volta e não vi o meu irmão em lado nenhum. De repente, ouço uma rapariga a gritar, junto ao leito do rio e a pedir ajuda! Foi aí que vi que qualquer coisa contrastava com a água à sua volta, muito perto de onde se encontrava a rapariga que ainda não tinha parado de gritar. Não sei quanto tempo demorei a perceber o que se passava, mas para mim aqueles segundos pareceram horas. Atirei-me à água e lutei com as pedras do fundo para chegar o mais depressa possível onde estava o corpo do meu irmão pequenino a boiar nas águas claras do Zêzere. Trouxe-o o mais depressa que pude para a margem, mas nesse momento, fiquei sem saber o que fazer. Não conseguia gritar, nem chorar, só olhava para aquele corpo branco, sem vida… Como era possível que aquilo tivesse acontecido? Foram segundos, simples segundos de uma vida que mudaram tudo. Ainda hoje me pergunto como é que tudo se passou. Lembro-me de ver os meus pais a surgir ao longe, na sua carroça e aí começo a chorar. Não me lembro do que aconteceu depois, quase como se tivessem apagado da minha memória qualquer memória do que se passou. Nunca consegui ultrapassar aquele dia, chorei durante semanas e nesse tempo decidi que não iria ter filhos, não poderia deixar que o mesmo acontecesse outra vez, não suportaria a dor.

Uns meses depois, a minha mãe ficou gravemente doente, com febres e dores que ninguém conseguia explicar. Mas eu sabia! Era dor, a dor tão profunda de saber que o filho tinha morrido antes da mãe, não era natural. Pouco depois de a minha mãe ter caído neste estado sem razão ou cura, recebemos uma carta da Maria, a sua última carta, trazida à mão por um rapaz que transportava madeira através da fronteira, e tinha percorrido muito até nos encontrar.

Segundo o que a Maria explicava, o meu tio tinha vingado na vida, quando se juntou aos judeus influentes, ricos e poderosos do país. Com a ascensão de Hitler ao poder, todos eles estavam a ser perseguidos e tiveram de fugir. Não sabia quando poderia voltar a escrever ou se o voltaria a fazer. Mandou-nos o seu amor e a sua saudade, com a sua doce assinatura no final da carta, esborratada provavelmente pelas lágrimas. Quando li ao meu pai o conteúdo da carta, conseguia ver o carregar do seu olhar a cada palavra, e as lágrimas no seu olhar quando terminei. Aquele olhar acompanhou-me ao longo de toda a minha vida. Decidimos não contar à minha mãe, mas, a verdade é que não precisávamos porque as mães têm o poder de sentir a dor dos filhos. A cada dia, a sua condição piorava até ao dia em que o seu frágil corpo não aguentou mais e simplesmente adormeceu para um sono eterno.

Capítulo 5

Tento observar as pessoas à minha volta, as senhoras que me fazem a cama, que me trazem a comida, todas as pessoas que partilhavam a mesa comigo. Muitos comiam devagar, como se fosse um desafio enorme levar a colher com a sopa do prato até à boca. Outros, como eu, não conseguiam comer sozinhos. Eu observava mas não via, nada era nítido, apenas vultos e cores. Não conseguia distinguir caras, mesmo que estivessem muito perto dos meus olhos. Assim, a minha vida tornou-se um jogo de sombras. No entanto, era menos sombrio do que a altura da minha vida em que passei casada com o Marco.

Tinha 19 anos quando me apaixonei perdidamente e saí de casa. Entretanto os meus irmãos tinham partido juntos para Lisboa, e eu tinha ficado sozinha com o meu pai, que pareceu ter envelhecido 40 anos depois de a minha mãe ter partido.

Conheci o Marco quando passeava pelos meus recantos privados e ele estava num deles. Tinha montado uma espécie de acampamento com dois amigos, para se dedicarem à caça. Estava encostado a uma das árvores com a minha marca, e observavaa com curiosidade. Eu não estava à espera que alguém estivesse ali, pelo que não foi difícil que ele reparasse rapidamente em mim. Trocámos algumas palavras e rapidamente me senti levada por aquele rapaz grande e forte, mas com uma voz doce e olhos cor de mel. Ele seguiu o meu olhar que se dirigia para o nome que estava escrito na árvore e apenas disse: “Anita?” Eu acenei com a cabeça.“Não sabia que mais alguém conhecia estes lados. Sou o Marco. Prazer em conhecê-la, exploradora Anita.” E foi assim que ele me arrancou o meu primeiro sorriso.

Depois desse encontro, encontrávamo-nos quase todos os dias, sempre à beira do Zêzere. Levou-me a conhecer Vila de Rei, as cascatas de Penedo Furado, os Poios, as igrejas, as aldeias mais lindas. Eu mostrei-lhe todos os meus segredos, todos os espaços e todos os locais que considerava como meus santuários. Costumávamos ir a todas as festas que havia nas aldeias ao lado, e dançávamos, muitas vezes até de madrugada. Passado alguns meses, pediu-me em casamento e mudámo-nos para o Vale da Urra.

Inicialmente tudo correu bem e o amor continuou a dominar as nossas vidas. No entanto, a mesma discussão parecia surgir quando menos se esperava: ele queria filhos e eu não. Com o passar do tempo, a discussão passou a ser cada vez mais frequente e violenta. Num dia, como outro qualquer, a discussão surgiu naturalmente como nos outros dias, mas o final foi bastante diferente. Começou com uma estalada nesse dia, seguida de um grande pedido de desculpas e lágrimas. No entanto, cada semana piorava, e eu ficava cada vez mais magoada. Cheguei a um ponto que deixei de falar, não valia a pena dizer uma palavra. Eu sentia-me envergonhada, toda eu estava vermelha tal como os meus cabelos.

Apesar de tudo, continuámos a passear, e a manter a ilusão que estava tudo bem. Relembro quando apanhámos o meu pai e fomos ver a inauguração da barragem do Castelo do Bode. Não foi uma altura muito feliz para o meu pai. Com a construção da barragem ele tinha perdido todos os terrenos onde tinha as suas plantações nas Fernandaires. Quando perdeu o trabalho da sua vida, pareceu perder o seu sentido. Enquanto via o Salazar no topo da barragem, a celebrar o sucesso da sua construção, ouvia-o a rogar-lhe todas as pragas que se lembrou. Pouco tempo depois, faleceu, sentado à entrada de casa, a olhar para o rio e para aquilo que antes tinha sido o seu trabalho e a sua vida.

Após toda a minha família ter desaparecido da zona, as coisas com o Marco pioraram. Foi um amigo da minha família, o tio Elias, que me salvou daquele que poderia ter sido o meu último dia. Costumava passar no Vale da Urra para entregar o pão, tal como fazia nas Fernandaires, onde o meu pai acabava sempre por dar um cesto com fruta e vegetais para a sua família. Acabaram por ficar amigos, e várias vezes iam para as adegas um do outro. Segundo o que ele me disse depois, o meu pai tinha-o feito prometer que tomaria conta de mim quando ele já não estivesse por este mundo para me ajudar. Como tal, cada vez que passava com a sua carrinha abrandava e certificava-se que estava tudo bem. Naquele dia, percebeu que qualquer coisa não estava certa. Quando viu o Marco subir as escadas e entrar, percebeu que ele não estava no seu estado normal. Ouviu o som seco quando caí no chão após um murro no estômago. Depois, aconteceu tudo muito rapidamente: ele entrou, atacou-o, pegou no meu corpo inconsciente, meteu-me na carrinha e levou-me para casa dele, enquanto o Marco ainda estava demasiado confuso para perceber o que tinha acontecido.

Acabei por ficar em casa do Elias, na Fundada, onde encontrei naquele corpo franzino de olhos verdes, mais que um amigo mas um segundo pai. Nunca mais pensei em voltar para o Marco, apesar de ele ainda ter feito algumas tentativas. Demorei alguns meses a voltar a falar, e quando o fiz, a minha garganta estava seca e roufenha da falta de uso. A primeira coisa que disse foi: “Obrigada”.

Ele tratou-me como a filha que nunca teve e não poderia ter pois a esposa dele tinha falecido há alguns anos. Passámos muitos e bons anos juntos, em que ele me ensinou tudo o que havia para saber acerca da padaria e acabou por me deixar o negócio. No entanto, a idade acabou por levá-lo de mim com um sorriso nos lábios. Nas suas últimas palavras ele disse-me: “Graças a ti, vivi os melhores aos da minha vida. Obrigada.”

Pouco depois disso, recebi uma carta dos meus irmãos, a contar-me como estavam felizes. O Luís já tinha arranjado uma namorada e o Pedro estava noivo. Junto com a carta vinha um convite para o casamento deles, que seria dai a dois meses. Durante muito tempo não recebi notícias dos meus irmãos. Estavam ambos envolvidos em movimentos anti-fascitas, e o facto de serem gémeos permitiu que se livrassem de várias situações de perigo, pois conseguiam arranjar um alibi infalível. Apenas tiveram a sua liberdade após o 25 de Abril, no qual se destacaram sendo chamados para altos postos
na polícia.

Finalmente, tudo começava a encaixar e tinha voltado a sorrir.

Capitulo 6

Hoje o meu sobrinho João veio visitar-me. Disse-me que ainda se lembrava do cheiro do pão e dos bolos que costumava fazer na padaria com o tio Elias, e que tinha saudades das minhas aventuras culinárias que nem sempre corriam bem.

Ao contrário de mim, os meus irmãos vigoravam da terna saúde da idade, e viviam com os filhos e netos mimando-os e contando as suas histórias. Os filhos de ambos os meus irmãos, costumavam vir passar os Verões comigo. Costumava levar os meus sobrinhos a passear no rio, e a conhecer todos os recantos que eram importantes para mim. Fazia jogos e desenhava mapas para ver quem os achava mais depressa. Esses foram os melhores tempos da minha vida.

Quando da sua visita, o João contou-me que tinha remodelado a casa dos avós nas Fernandaires, e que tinha ficado absolutamente fantástica. Agora, os seus filhos poderiam ir para lá brincar no Verão e crescer com memórias do rio, que tanto marcou também a sua infância.

Naquele dia, o meu sobrinho trouxe o filho, um bebé com um ano. E apesar de não lhe conseguir distinguir bem as formas, disse-lhe que era lindo. Só poderia ser. Sempre considerei um acto de coragem ser mãe, e ver aquela criança fez o meu coração saltar. Mas ver a felicidade dos meus irmãos ao longo dos anos, dos seus filhos e agora dos seus netos fez-me sentir mais realizada que nunca.

Amava-os a todos com todas as minhas forças, mas isso já não era suficiente para me manter aqui, à espera que chegue a hora em que a misericórdia chegue e me leve em paz deste mundo, muitas vezes cruel. Em retrospectiva, apesar de todas as dificuldades que passei, nunca escolheria viver longe da minha terra, longe das águas do Zêzere.

Diz-se que na velhice se encontra a sabedoria, o que não deixa de ser verdade, mas na realidade é que a experiência e as memórias são tudo o que se tem quando a vitalidade nos começa a abandonar.

Às vezes a luta torna-se cruel, e nessa noite, não quis lutar mais. A minha vida foi completa, cheia de momentos de dor mas também vivi momentos intensos de pura felicidade. As marcas do meu rosto mostram cada desafio, cada prova que passei. O meu olhar, cada vez mais claro como o sol da manhã, impede-me de ver o que há no mundo lá fora. Talvez já tenha visto aquilo que tinha para ver nesta vida e o meu corpo não tenha mais espaço para memórias.

A menina que costuma ler para mim, passou pelo meu quarto depois de jantar.

- Quer que comece a ler outro livro para adormecer?

- Amanhã, quem sabe, amanhã…

Fonte:
Município Vila de Rei

Nenhum comentário: