Primeiros dias de férias, Cristina ajeitou a boneca na mochila, deixando para fora a cabeça loira – encaracolada. Deu a mão ao avô, que a deixaria na casa da coleguinha. Levava consigo a vontade de partilhar com a amiga a intensa alegria das primeiras horas de folga.
— Cuidado com a boneca. Aí onde está é fácil perdê-la.
— Pode deixar, vô. Está bem presa. Não vou perdê-la, não.
Cristina e o avô davam-se às maravilhas. Conversavam como dois adultos, brincavam como duas crianças.
Os dois quarteirões, que os separavam da residência procurada, não exigiam condução mais rápida que um par de sapatos cômodos e pés dispostos a caminhar.
Mãos dadas, a tagarelar, avô e neta não tinham pressa de chegar. Um vulto suspeito, seguia-os de perto.
Magro, barba crescida, mãos nervosas, o homem não deixava oculto o interesse pela cabecinha loira-encaracolada, que ultrapassava a boca da mochila presa, aos ombros da menina.
Por várias vezes, estendera a mão trêmula, num gesto fortuito de intenção não consumada. O sinal vermelho favoreceu-lhe o intento, aglomerando os pedestres à beira da calçada. Na alma do homem, brilhou luz verde. Num átimo, tinha nas mãos a bonequinha loira que, pressionada, gritou fanhosa: Mamã!
Nada mais foi preciso para que a "mamã", alertada, se debulhasse em lágrimas: — Roubaram a minha boneca!!!
Nem o peso da idade e nem mesmo os excessos de peso acusados pela balança implacável, impediram aquele avô de atirar-se, impulsivamente, ao encalço do larápio, tão logo captou o desespero da neta. Mas, foi a dor aguda da angina que lhe tolheu a arremetida, logo aos primeiros passos.
Parou, levando a mão ao peito. A ira prosseguia crescente, na perseguição ao fugitivo, pouco adiante, seguro por mãos justiceiras.
A ternura do avô afagou a cabecinha da neta que soluçava sem parar, desprezando os esforços consoladores.
Sabia bem o quanto aquela boneca representava para a neta! Fora difícil a procura e mais ainda a escolha da menina. Visitas, sucessivas, a várias lojas de brinquedos, sem que nada satisfizesse a pequena. Era como se a cada dia fossem a novo berçário para escolher, a dedo, o bebê que se integraria aos sonhos da família.
O aniversário de Cristina avizinhava-se, quando, afinal, acontecera o milagre. Os olhos da menina cresceram, iluminados, ao vislumbrarem, na vitrina, aquela boneca! Um verdadeiro encontro de almas, se alma tivesse aquela coisinha fofa, loira-encaracolada.
Satisfeito com a decisão, o avô, cheio de júbilo, nem regateara o preço. Costumava dizer: ~ Pedido de neta é lei!
Pagou alto, pagou com gosto!
Pacote nos braços, haviam saído da loja duas crianças radiantes, sem que fosse possível constatar qual das duas a mais feliz!
Um mês depois, tudo mudava. Os fatos ali estavam; — Dois homens, e seus íntimos conflitos, defrontavam-se. Um, subjugado por mãos hostis, cabisbaixo, derrotado. Outro, tinindo de raiva, sopitando a custo o impulso de distribuir tabefes,
A pontada no peito não impediu o avô de inquirir furioso: — Seu cretino! Vagabundo! Não tem vergonha de arrancar uma boneca dos braços de uma criança?! É o cúmulo! O fim do mundo!
Para abastecer a raiva, estirou o olhar furibundo até a neta que, enternurada, abraçava a boneca, devolvida por alguém que testemunhara a cena.
O olhar do larápio acompanhou o seu.
— E então? — inquiriu ainda agressivo — o que tem a dizer?
Vencendo a emoção, o homem subjugado conseguiu protestar: — Não sou vagabundo, não senhor. Estou desempregado... Não consigo trabalho... não sei mais o que fazer!
– E isso lhe dá direito de causar tanto mal a uma criança?
Pausa constrangedora antes que o homem, submisso, cabeça baixa, gaguejasse, buscando dentro de si uma atenuante:
— É que o Natal está chegando… e eu também sou avô!…
A bordoada das palavras entrecortadas de emoção, abateu-se sobre a fúria do avô de Cristina. Num instante, a raiva desceu a zero!
Constrangido silêncio e logo a capitulação:
— Tudo bem… tudo bem... Podem soltá-lo. Não vou dar queixa, não.
Vasculhou os bolsos, estendendo um cartão ao homem que o fitava agradecido:
— Procure-me neste endereço. Talvez lhe arranje trabalho.
Mais alguns dias e chegava o Natal. Festivo e bimbalhante de amor! Com ele, uma linda boneca, irmã gêmea daquela que encantara Cristina, foi bater à porta de uma casa modesta, onde a luz da esperança começava a renascer. Lar singelo, onde um outro avô e uma outra neta aprendiam a rir e a brincar juntos, como duas crianças felizes!
A brisa, a insinuar-se pelo arvoredo, soprava flautas invisíveis e a música suave parecia repetir em surdina: "Paz na terra aos homens de boa vontade.”
Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.
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