quarta-feira, 19 de maio de 2021

Aparecido Raimundo de Souza (Coriscando) 18: Coice de mula

O GAROTO CHEGA NA SALA, se vira para o pai que está com os olhos grudados na televisão assistindo a decisão do campeonato de seu time preferido. Sem se importar com a impaciência do torcedor inveterado — que parece à beira de um ataque de nervos — o inocente manda a pergunta:

— Pai, ô pai, por que o pato não fica molhado quando nada?

Para se livrar do filho pentelho o homem responde ligeiro com a primeira ideia descabida que lhe acode à cabeça:

— Porque usa toalha.

Mas o moleque quer mais. Insiste:

— Iguais as que mamãe põe no banheiro quando o senhor entra para tomar banho?

— Sim. Agora vá brincar lá fora, filho. Cadê seus coleguinhas, o Ricardo e o Amauri?

O pirralho não atenta para esse fato de ir lá fora brincar com os amiguinhos. Na verdade, parece insatisfeito. De fato, está:

— Pai, ô pai, elas são de algodão ou de linho?

— O quê?  Cai fora, imbecil, dá um tempo!...

— Eu só queria saber se elas são de algodão ou de linho para falar para os meus amigos...

— Tá bom, porcaria. São de algodão.

— É por isso, então, que todos os patos são brancos? Por que são de algodão?

— Os patos não são de algodão.

— O senhor acabou de falar...

— Eu me referia às toalhas... não aos bichos em si.

O menino fica um tempo pensativo e logo a seguir volta à carga. Desembucha:

— Pai, ô pai, o pato é um bicho ou uma ave?

— O quê? Quem é bicho?!

— Perguntei se o pato...

— Depois, filho. Vá brincar. Deixa o jogo acabar. Tá quase no final do segundo tempo...

—  Mas eu...

— Tá. É ave.

O moleque sai correndo em direção à porta da rua. O sujeito respira, aliviado. Menos de dois segundos, contudo, retorna. E prossegue, curioso:

— Pai, ô pai...

O pai, entretanto, está pisando em ovos, pê da vida. É até capaz de estrangular alguém. Roe as unhas, em atitude desesperada.

— Vai, Ronaldinho —, grita gesticulando as mãos —, seu...   seu desgraçado, não perde essa... que filho de uma égua, chuta essa bola...

— Pai, ô pai...

Colérico, soltando fogo pelas ventas, o cidadão se volta para o pequeno. Seus olhos se cruzam por um instante apenas.

— Vai brincar... vai brincar.

— Eu estou brincando...

— E então? O que foi agora? Por que diabo não me deixa em paz?

— Eu queria saber se...

— Depois, depois. Agora não... Vai ver se estou na esquina...

— Mas, ô pai...

— Tá. Fala rápido, infeliz: o que é desta vez?

— Peixe bebe água?

Ronaldinho chuta para gol. O goleiro, atento, pula no ar. Por instantes voa, voa como se tivesse asas. Se a bola entrar, o time ganha, do contrário, vai para as cucuias. Além de perder o campeonato ainda por cima será rebaixado.

— Entra, entra, entra...

Por azar, a bola é agarrada na hora agá. O goleiro se abraça a ela, e, ao fazê-lo cai para o chão e se estrebucha no gramado em piruetas grotescas como se ensaiasse uma dança esquisita.

— Pai, ô pai...

A fúria do perdedor é tanta, mas tanta, que até esquece que é o pai. Desesperado e suando em bicas, pior que moringa nova, gira, então, sobre o próprio corpo e, envia um tabefe tão grande e forte que pega, em cheio, no rosto do filho. O coitadinho, igualmente ao goleiro, é atirado de cara contra os ladrilhos da sala. O sangue jorra de sua boca, com abundância, diante da força vigorosa, como se tivesse sido atropelado por um caminhão desgovernado em alta velocidade.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

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