quarta-feira, 17 de novembro de 2021

Carlos Drummond de Andrade (Trem de Contos) 42 e 43


VOLTA À CASA PATERNA

Voltar à casa paterna depois de vinte anos de ausência é coisa comovedora, e Fábio tinha vontade de experimentar esta sensação. Infelizmente não chegaria a senti-la, pois seu destino era voltar à casa da família todos os dias, após o trabalho, e já tinha horror a essa obrigação.

Tirar férias de trinta dias para esquecer um pouco o ambiente doméstico e redescobri-lo como novidade não adiantava. Fábio encontrava de volta as mesmas paredes, o mesmo bule, o mesmo periquito. E não notava a sutil, incessante mudança das coisas, que se opera em todo organismo ou habitação.

Nesta rotina decorreram os vinte anos que ele imaginava serem o prazo ideal para a perfeita volta à casa paterna. Tudo continuava aparentemente na mesma, a seus olhos que não sabiam ver o invisível, pois tudo era profundamente dessemelhante do que fora, só que Fábio não reparava. O próprio periquito morrera, estava embalsamado.

Mudara o papel de parede, a louça fora substituída, o pai de Fábio também morrera, e a viúva casara outra vez. Voltando todos os dias à casa, ele não sentira a transformação. Foi preciso que o padrasto o convidasse a mudar de domicílio, para ele experimentar uma sensação profunda. A sensação de não voltar à casa paterna.
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UM LIVRO E SUA LIÇÃO

Poucos livros são como este livro. Aparentemente, igual a muitos. Mas se o abrires em qualquer página, encontrarás de cada vez um texto diferente.

Ouvi que na Ásia há um livro com a mesma propriedade, e que nos Estados Unidos existiu outro, comprado a um dervixe, mas que, pelo manuseio constante, não apresenta a singularidade: ficou um livro como os demais, unívoco.

O exemplar que possuo, não deixo que ninguém o consulte. Zelo por sua integridade, e só de longe em longe me animo a folheá-lo. E é sempre um assombro.

Não o comprei. Achei-o no porão de uma casa onde só havia trastes abandonados e teias de aranha. Ao descobrir sua inacreditável raridade, fiquei trêmulo e guardei o segredo até dos mais íntimos.

Este livro extraordinário me explicou o sentido do mundo, que varia sempre e não se subordina a qualquer filosofia. Explicação que não explica, pois sendo infinitas as variações, qualquer delas só dura o tempo de leitura de uma página, ou meia.

Não posso continuar guardando o volume, e não sei o que fazer dele. Tenho medo de abri-lo; medo de rasgá-lo; medo de que o furtem; medo de ler nele uma sentença aniquiladora, a última sentença, depois da qual o mundo deixaria de ser vário e, portanto, de existir.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.

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