quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

Contos das Mil e Uma Noites (Convite à paz universal)

Conta-se que um xeque venerável possuía uma bela criação de aves domésticas que produziam ovos e frangos grandes e apetitosos. Ora, naquela capoeira havia um grande e maravilhoso galo, de voz ressonante e plumagem vistosa que, além dos seus distintivos físicos, era dotado de sabedoria e sagacidade e conhecia as zonas sombrias do coração. Sabia também ser justo e atencioso para com suas esposas e evitar provocar nelas ciúmes e ressentimentos. Era citado como modelo em tudo, e seu dono chamava-o Voz-da-Aurora. 

Certo dia, Voz-da-Aurora saiu a descobrir as terras que se estendiam para além da capoeira. Encantado com o que via, foi picando os grãos de trigo ou cevada ou milho que encontrava pelo caminho até que, levado mais longe do que planejara, achou-se num sítio selvagem que nunca visitara e onde tudo lhe parecia estranho e hostil. 

Começou a preocupar-se e soltou alguns gritos ansiosos. Enquanto procurava o caminho da volta, viu uma raposa correndo na sua direção. Temendo por sua vida, voltou as costas e voou com toda a força de suas asas até o alto de um muro em ruínas onde a raposa não era capaz de atingi-lo. 

A raposa chegou ao pé do muro e, vendo que lhe era impossível subir até o galo, levantou a cabeça para ele e disse-lhe: “A paz esteja contigo, ó figura de bom augúrio, ó meu irmão, ó companheiro encantador.” 

Mas Voz-da-Aurora não respondeu à saudação nem olhou na direção da raposa. A raposa não desanimou e disse-lhe: “Ó meu prezado e bonito amigo, por que não olhas para mim nem me saúdas quando te trago notícias maravilhosas?” 

O galo permaneceu calado e inamistoso. 

A raposa tornou: “Ó meu irmão, se soubesses de que boa notícia encarregaram-me de te trazer, descerias imediatamente para me abraçar e beijar-me na boca.” 

Mas o galo permaneceu indiferente, e fixava ao longe seus olhos redondos. 

- Fica sabendo, meu irmão, disse de novo a raposa, que nosso senhor leão, sultão dos animais, e nossa senhora águia, sultana das aves, acabam de reunir uma assembleia no meio de um prado cheio de flores e de córregos, com a participação de todos os animais da Criação, tigres, hienas, leopardos, linces, panteras, chacais, antílopes, lobos, carneiros, rolas, codornizes e demais aves e animais. Nessa assembleia, decretaram que, de hoje em diante, a segurança, a fraternidade e a paz reinarão em toda a extensão da terra habitada; que laços de afeto mútuo e de simpatia ligarão todas as aves e todos os animais domésticos e selvagens, sepultando-se para sempre os antagonismos e ódios raciais. Também proclamaram que fosse quem fosse que não aplicasse essas novas normas seria levado diante deles para ser sumariamente julgado e condenado. Ademais, designaram-me seu único representante para divulgar essas decisões em toda parte e para levar até eles quem estiver desobedecendo às citadas determinações. É por isso, deleitável irmão, que me vês aqui a oferecer-te minha amizade e as relações mais fraternas.” 

Mas o galo parecia nem ouvir nem se interessar.

A raposa, sentindo já a carne tenra da ave sob os dentes, insistiu: 

“Meu irmão, não te dignas nem lançar um olhar sobre a representante de nossos senhores o leão e a águia? Devo lembrar-te que, se permaneceres nesse mutismo, terei que comunicar tua conduta ao conselho da assembleia. E receio que sejas então condenado à morte, pois nossos amos estão determinados a concretizar a paz universal, mesmo que tenham que destruir, a serviço desse nobre ideal, a metade das aves e dos animais.” 

O galo, que se tinha mantido numa altiva indiferença, esticou o pescoço e virou-o um pouco para que ele e a raposa pudessem ver-se diretamente e disse: “Ao contrário, minha irmã, ouvi tuas palavras com toda a atenção, e inclino-me diante de tua qualidade de mensageira e comissária de nossa ama a águia. Meu silêncio não era rebelião, mas a necessidade de fixar a atenção numa coisa que vejo por além desta planície e que me preocupa.” 

- E o que vês ao longe? exclamou a raposa. Espero que não seja nada calamitoso. 

O galo esticou o pescoço um pouco mais e disse: “Minha irmã, como não percebes o que vejo, quando Alá te concedeu a graça desses olhos penetrantes?” 

- Mas enfim, dize o que vês. Tua posição nesse muro te permite ver o que não vejo daqui. 

O galo Voz-da-Aurora respondeu: “Em verdade, vejo um bando de falcões correndo para cá. E vejo qualquer coisa que anda com quatro patas, de pernas altas, de feitio longo e delgado, de cabeça fina e pontiaguda e de orelhas longas. 

- Será um cão lebréu? perguntou a raposa, tremendo dos pés à cabeça. 

- Não sei se é um cão lebréu, mas é certamente um cão audacioso. 

Ao ouvir estas palavras, a raposa exclamou: “Vejo-me na obrigação de despedir-me de ti, ó meu irmão.” 

E voltou as costas e desatou a correr. 

- Espera, espera, minha irmã, espera por mim, gritou o galo. Eu desço. 

- É que tu não sabes, mas eu tenho uma grande antipatia pelo cão lebréu que não é meu amigo nem pessoa de minhas relações

- Mas não me disseste que vinhas proclamar o decreto da paz e da amizade entre todos os animais domésticos e selvagens? 

- Sim, é verdade, mas esse cão faltou ao nosso congresso e receio que não tenha sido informado das decisões tomadas e prossiga na sua inimizade contra mim. Que Alá te proteja até minha volta. 

Tendo assim falado, a raposa desapareceu ao longe. E o galo, que escapou da morte graças a sua finura e sagacidade, voltou feliz para sua capoeira e contou às aves sua aventura. As galinhas se regozijaram, e os galos celebraram sua vitória com um canto sonoro.
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As Mil e Uma Noites é uma coleção de histórias e contos populares originárias do Médio Oriente e do sul da Ásia e compiladas em língua árabe a partir do século IX. As histórias que compõem as Mil e uma noites têm várias origens, incluindo o folclore indiano, persa e árabe. Não existe versão definitiva da obra, uma vez que os antigos manuscritos árabes diferem no número e no conjunto de contos. O Imperador brasileiro Dom Pedro II foi o primeiro a traduzir diretamente do árabe para o português partes da obra mais conhecida da literatura árabe, e o fez com um rigor raro para a época. Já em idade avançada, aos 62 anos, ele começou o processo, o último registro de texto traduzido é de novembro de 1891, um mês antes de sua morte.

O que é invariável nas distintas versões é que os contos estão organizados como série de histórias em cadeia narrados por Xerazade, esposa do rei Xariar. Este rei, louco por haver sido traído por sua primeira esposa, desposa uma noiva diferente todas as noites, mandando matá-las na manhã seguinte. Xerazade consegue escapar a esse destino contando histórias maravilhosas sobre diversos temas que captam a curiosidade do rei. Ao amanhecer, Xerazade interrompe cada conto para continuá-lo na noite seguinte, o que a mantém viva ao longo de várias noites - as mil e uma do título - ao fim das quais o rei já se arrependeu de seu comportamento e desistiu de executá-la.

Fontes:
As Mil e uma noites. (tradução de Mansour Chalita). Publicadas originalmente desde o século IX. Disponível em Domínio Público
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

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