domingo, 1 de novembro de 2020

Livro D’Ouro da Poesia Portuguesa – 3

 

Agostinho da Cruz
 
(Ponte da Barca, 1540 – 1619, Setúbal)

À COROA DE ESPINHOS


A que vindes, Senhor do Céu à terra,
Terra que sendo vossa vos enjeita,
E que tanto vos honra e vos respeita,
Que em não vos receber insiste e emperra?

Ah! Quanta ingratidão nela s’encerra!
Quão mal de vossa vinda se aproveita!
Pois se põe a tomar-vos conta estreita,
Mais brada contra vós, quanto mais erra.

E vós de vosso amor puro forçado
Os malditos espinhos lhe pisais,
Dos quais ainda sendo coroado,

A maldição antiga lhe trocais
Na bênção, que lhe dais crucificado,
Quando morto d’amor, d’amor matais.
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Padre Baltasar Estaço
 
(Évora, 1570 - 16??)

A CRISTO NA CRUZ


O bem que a tantos bens me convidava,
O qual desmereci, vós merecestes
Que a vida que por meu amor perdestes,
A vida me alcançou que eu desejava.

O mal que a tantos males me obrigava,
O qual não satisfiz, satisfizestes,
Que a morte que por meu amor sofrestes,
Da morte me livrou, que eu receava.

A vós Deus amoroso, a vós só amo,
De vós pratico, só, de vós escrevo,
Por vós a vida dou, e a morte quero,

Em vós fogo de amor, em vós me inflamo,
Pois que pago por vós o mal que devo,
E mereço por vós, o bem que espero
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D. Francisco Manoel de Melo
 
(Lisboa, 1608 – 1666)

SONETO

Eu que faço? Que sei? Que vou buscando?
Conto, lugar, ou tempo, a esta fraqueza?
Tenho eu mais que acusar, por mais firmeza,
Toda a vida, sem mais como, nem quando.

Se cuidando, Senhor, falando, obrando
Te ofenda minha ingrata natureza,
Nascer, viver, morrer, tudo é torpeza
Donde vou, donde venho, donde ando?

Tudo é culpa, ó bom Deus, não uma e uma
Descubro ante os teus olhos. Toda a vida
Se conte por delito, e por ofensa.

Mas que fora de nós, se esta, se alguma
Fora mais que uma gota a ser medida
Co’ largo mar de tua Graça imensa?
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Jerónimo Baía
 
(Coimbra, 1620/30-1688, Neiva)

FALANDO COM DEUS


Só vos conhece, amor, quem se conhece;
Só vos entende bem quem bem se entende;
Só quem se ofende a si, não vos ofende,
E só vos pode amar quem se aborrece.

Só quem se mortifica em vós floresce;
Só é senhor de si quem se vos rende;
Só sabe pretender quem vos pretende,
E só sobe por vós quem por vós desce.

Quem tudo por vós perde, tudo ganha,
Pois tudo quanto há, tudo em vós cabe.
Ditoso quem no vosso amor se inflama,

Pois faz troca tão alta e tão estranha.
Mas só vos pode amar o que vos sabe,
Só vos pode saber o que vos ama.
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Frei António das Chagas
 
(Vidigueira, 1631-1682, Torres Vedras)

SONETO

Deus pede hoje estrita conta do meu tempo
E eu vou, do meu tempo, dar-lhe conta.
Mas como dar, sem tempo, tanta conta
Eu que gastei sem conta tanto tempo?

Para ter minha conta feita a tempo,
O tempo me foi dado e não fiz conta.
Não quis, tendo tempo, fazer conta.
Hoje quero fazer conta e não há tempo.

Oh! Vós, que tendes tempo sem ter conta,
Não gasteis vosso tempo em passatempo.
Cuidai, enquanto é tempo em fazer conta.

Pois aqueles que sem conta gastam tempo,
Quando o tempo chegar de prestar conta,
Chorarão, como eu, se não der tempo.

Fonte:
Sammis Reachers (org.). Antologia de poesia cristã em língua portuguesa. e-book.

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