sexta-feira, 9 de junho de 2023

Fernando Pessoa (Caravelas da Poesia) LVI


SOSSEGA, CORAÇÃO! NÃO DESESPERES!
 
 Sossega, coração! Não desesperes!
 Talvez um dia, para além dos dias,
 Encontres o que queres porque o queres.
 Então, livre de falsas nostalgias,
 Atingirás a perfeição de seres.
 
Mas pobre sonho o que só quer não tê-lo!
Pobre esperança a de existir somente!
Como quem passa a mão pelo cabelo
E em si mesmo se sente diferente,
Como faz mal ao sonho o concebê-lo!

Sossega, coração, contudo! Dorme!
O sossego não quer razão nem causa.
Quer só a noite plácida e enorme,
A grande, universal, solene pausa
Antes que tudo em tudo se transforme.
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SOU O ESPÍRITO DA TREVA
 
Sou o Espírito da treva,
A Noite me traz e leva;

Moro à beira irreal da Vida,
Sua onda indefinida

Refresca-me a alma de espuma...
Pra além do mar há a bruma...

E pra aquém? Há Coisa ou Fim?
Nunca olhei para trás de mim...
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SOU UM EVADIDO
 
Sou um evadido.
Logo que nasci
Fecharam-me em mim,
Ah, mas eu fugi.

Se a gente se cansa
Do mesmo lugar,
Do mesmo ser
Por que não se cansar?

Minha alma procura-me
Mas eu ando a monte
Oxalá que ela
Nunca me encontre.

Ser um é cadeia,
Ser eu é não ser.
Viverei fugindo
Mas vivo a valer.
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TALVEZ QUE SEJA A BRISA
 
Talvez que seja a brisa
Que ronda o fim da estrada,
Talvez seja o silêncio,
Talvez não seja nada...

Que coisa é que na tarde
Me entristece sem ser?
Sinto como se houvesse
Um mal que acontecer.

Mas sinto o mal que vem
Como se já passasse...
Que coisa é que faz isto
Sentir-se e recordar-se?
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TÃO VAGO É O VENTO QUE PARECE
 
Tão vago é o vento que parece
Que as folhas fremem só por vida.
Dorme um calar em que se esquece.
Em que é que o campo nos convida?

Não sei. Anônimo de mim,
Não posso erguer uma intenção
Do saco em que me sinto assim,
Caído nesse verde chão.

Com a alma feita em animal,
A quem o sol é um lombo quente,
Aceito como a brisa real
A sensação de ser quem sente.

E os olhos que me pesam baixo
Olham pela alma o campo e a estrada.
No chão um fósforo é o que acho.
Nas sensações não acho nada.
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TENHO ESCRITO MUITOS VERSOS

Tenho escrito muitos versos,
muitas coisas a rimar,
dadas em ritmos diversos
ao mundo e ao se olvidar.
            
Nada sou, ou fui de tudo.
Quanto escrevi ou pensei
é como o filho de um mudo
– "amanhã eu te direi".
            
E isto só por gesto e esgar,
feito de nadas em dedos
como uma luz ao passar
por onde havia arvoredos.
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TENHO PENA ATÉ... NEM SEI. . .
 
Tenho pena até... nem sei. . .
Do próprio mal que passei
Pois passei quando passou.
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TENHO SONO EM PLENO DIA.
 
Tenho sono em pleno dia.
Não sei de que, tenho pena.
Sou como uma maresia.
Dormi mal e a alma é pequena.

Nos tanques da quinta de outrem
É que gorgoleja bem.
Quanto as saudades encontrem,
Tanto minha alma não tem.
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TODAS AS COISAS QUE HÁ NESTE MUNDO
 
Todas as coisas que há neste mundo
Têm uma história,
Exceto estas rãs que coaxam no fundo
Da minha memória.

Qualquer lugar neste mundo tem
Um onde estar,
Salvo este charco de onde me vem
Esse coaxar.

Ergue-se em mim uma lua falsa
Sobre juncais,
E o charco emerge, que o luar realça
Menos e mais.

Onde, em que vida, de que maneira
Fui o que lembro
Por este coaxar das rãs na esteira
Do que deslembro?

Nada. Um silêncio entre juncos dorme.
Coaxam ao fim
De uma alma antiga que tenho enorme
As rãs sem mim.

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