Ninguém notou quando ele chegou com a mesma roupa surrada e seu saco de aniagem inseparável que lhe servia de travesseiro, sofá e armário.
Esgueirou-se por baixo da mesma marquise, recolheu-se num canto, colocou a muleta ao longo da soleira da loja, ajeitou o que lhe sobrara da perna direita e da garrafa pet de sempre e sorveu o último gole da branquinha.
Noite de Natal. Num frenesi eufórico, que beirava à histeria, pessoas vestidas em papel de presentes circulavam como se estivessem atrasadas, Inexplicável para um mês de dezembro fazer o frio que fazia, mesmo sendo São Paulo, e ainda não eram vinte e uma horas, como acusava o relógio da praça. Vez por outra uma lufada de vento mais forte renovava as folhas e os papéis espalhados de maneira disforme pelas ruas,
Num dos andares do prédio em frente, o pisca-pisca colorido, que parecia marcar o som alto, adornava simetricamente o pinheiro imperial num canto da sala. A todo esse minueto, Chico assistia com olhos de filmadora em câmera lenta, pneumonia mal curada, cíclica, coração débil, que a mendicância itinerante o tornava a cada dia mais fraco, com uma sensação esquisita de impotência. Tinha perdido a guerra contra a cidade grande.
Tateou os bolsos rotos de sua farda diuturna, procurando uma guimba, sem encontrar. Com o frio aumentando, esgueirou-se melhor em si mesmo.
Invejou três rapazes, um pouco mais à direita, que fumavam um cigarro até aos dedos, de forma e cheiro estranho e de maneira sutil, parcimoniosa, apartando-se depois em meio à escuridão, companheira de suas noites.
Fechou os olhos e transportou-se até São José de Mipibu, viu Maria Rosa ao seu lado, curtindo as cores matizadas da aurora às margens do Rio Itaporanga, seu cachorro Fumaça e mais ninguém.
A tosse de sempre e uma forte fisgada nas costas cancelaram a sua viagem, fizeram-no se encolher ainda mais e ficar inerte. O silêncio tinha preenchido os seus pensamentos.
O Bar da esquina tinha acabado de fechar para os clientes e Francisco de Assis Ferreira dos Santos, 61 anos, para a vida: Aurora-14 de setembro de 1958 - Ocaso- 24 de Dezembro de 2019.
(Este conto obteve o 2. lugar no Concurso de Contos, adulto nacional, do III Concurso Literário “Foed Castro Chamma”, 2020 – Tema: Aurora)
Fonte: Luiza Fillus/ Bruno Pedro Bitencourt/ Flávio José Dalazona (org.). III Concurso Literário “Foed Castro Chamma 2020”. Ponta Grossa/PR: Texto e Contexto, 2021. Livro enviado por Luiza Fillus.
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