Ilustração: Robson Vilalba
A SÍLABA
O mundo inteiro cabe numa sílaba
e nela me refugio
para esperar a aurora.
Aprendi que Isto é Aquilo.
Não preciso aprender mais nada.
Já sei o essencial.
A noite guardou as chuvas de verão
e agora amanhece.
O dia é um voo de pássaro.
O DIA DOS HOMENS
Viver é preciso.
Não existe Inferno
nem Paraíso.
Apenas o chão.
E uma persistente
chuva de verão.
PRESSA JUSTIFICADA
Os mortos vão depressa
e a explicação é simples:
todos os cemitérios
devem fechar às cinco.
A MORTE DE UM ESTILISTA
Sua prosa era lapidar
e a morte o surpreendeu quando
estava castigando o estilo.
Na missa de corpo presente,
no recinto acadêmico
foi comparado a Camilo.
E seus pares derramaram
lágrimas de crocodilo.
OS DOIS TEOLÓGOS
“Se tudo é permitido,
não há liberdade”,
ponderava o poeta
na mesa do abade.
O ALCOÓLATRA
“Bebo porque Deus não existe”,
dizia o alcoólatra, mirando
o mundo com seus olhos tristes.
PARADA DE ÔNIBUS
Nas filas dos ônibus, quando anoitece, e o nada
[recolhe ao seu arquivo mais um dia jogado fora,
um cigarro entre os dedos é tudo o que resta
da iracunda piedade que o homem tem por si
[mesmo.
LAMENTAÇÕES DE CAMÕES
Fui amor, fui paixão e celebrei
o mundo, o vento e as ilhas infinitas.
Mas hoje, neste quarto centenário,
me assombra o meu destino.
Linguistas e filósofos fizeram
de mim uma apostila.
QUEIXA DO EDITOR DE POESIA
“Poesia não se vende,
ninguém a entende!”
− suspira o editor.
Poesia! Poesia!
Ninguém te entende.
És como a morte e o amor.
A TRAVESSIA
Quem ia na balsa
que, naquela noite,
atravessou o rio?
Vestida de preto,
era a própria Morte
morta de frio.
TEMPORAL NOTURNO
A chuva desta noite
pousa no meu sonho.
Pássaro molhado.
OHIO
O céu de Ohio é azul e branco.
A neve de Ohio é azul e branca.
O sol apaga as estrelas caídas sobre
[ os dormentes da ferrovia
por onde passam trens cheios de leite e milho.
Pousado no castanheiro, um pássaro azul
não segrega o seu canto.
ESTAÇÃO DE TRATAMENTO
A gaivota
sobrevoa
o semáforo.
Nenhum rumor da água.
Nenhum frêmito de alga.
Apenas os esgotos
lançam no leve oceano
o sigilo da vida.
O LAGO HABITADO
Na água trêmula
freme a pálida
anêmona.
NOITE DE DOMINGO
Acabou-se a festa.
Resta, no silêncio,
o rumor da floresta.
A INSPIRAÇÃO
Não creio na inspiração,
essa bruxa radiosa
que sopra a canção
e te faz alegre ou triste.
Mas que ela existe, existe!
Fonte:
Lêdo Ivo. Poesia Breve. Brasília/DF: Poexílio, 2012.
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