quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Manuel Du Bocage (Sonetos) IV


Os suaves eflúvios, que respira
A flor de Vênus, a melhor das flores,
Exalas de teus lábios tentadores,
Oh doce, oh bela, oh desejada Elmira;

A que nasceu das ondas, se te vira,
A seu pesar cantara os teus louvores;
Ditoso quem por ti morre de amores!
Ditoso quem por ti , meu bem, suspira!

E mil vezes ditoso o que merece
Um teu furtivo olhar, um teu sorriso,
Por quem da mãe formosa Amor se esquece!

O sacrílego ateu, sem lei, sem siso,
Contemple-te uma vez, que então conhece
Que é força haver um Deus, e um paraíso.
* * * * * * * * * * * * * *

Meu frágil coração, para que adoras
Para que adoras, se não tens ventura?
Se uns olhos, de quem ardes na luz pura,
Folgando estão das lágrimas que choras?

Os dias vês fugir, voar as horas
Sem achar neles visos de ternura;
E inda a louca esp'rança te figura
O prêmio dos martírios, que devoras!

Desfaz as trevas de um funesto engano,
Que não hás de vencer a inimizade
De um gênio contra ti sempre tirano:

A justa, a sacrossanta divindade
Não força, não violenta o peito humano,
E queres constranger-lhe a liberdade?
* * * * * * * * * * * * * *

Os garços olhos, em que o Amor brincava,
Os rubros lábios, em que o Amor se ria,
As longas tranças, de que o Amor pendia,
As lindas faces, onde Amor brilhava:

As melindrosas mãos, que Amor beijava,
Os níveos braços, onde Amor dormia,
Foram dados, Armândia, à terra fria,
Pelo fatal poder que a tudo agrava;

Seguiu-te Amor ao tácito jazigo,
Entre as irmãs cobertas de amargura;
E eu que faço (ai de mim!) como não sigo!

Que há no mundo que ver, se a formosura,
Se Amor, se as Graças, se o prazer contigo
Jazem no eterno horror da sepultura?
* * * * * * * * * * * * * *

Urselina gentil, benigna e pura,
Eis nas asas sutis de um ai cansado
A ti meu coração voa alagado
Em torrentes de sangue, e de ternura;

Põe-lhe os olhos, meu bem, vê com brandura
Seu miserável, doloroso estado,
Que nas garras da morte já cravado
A fé, que te jurava, inda te jura:

Põe-lhe os olhos, meu bem, suavemente,
Põe-lhe os mimosos dedos na ferida,
Palpa de Amor a vítima inocente:

E por milagre deles, oh querida,
Verás cerrar-se o golpe, e de repente
Em ondas de prazer tornar-lhe a vida .
* * * * * * * * * * * * * *

Em veneno letífero nadando
No roto peito o coração me arqueja;
E ante meus olhos hórridos negreja
De morais aflições espesso bando;

Por ti, Marília, ardendo, e delirando
Entre as garras aspérrimas da Inveja,
Amaldiçoo Amor, que ri, e adeja
Pelos ares, co’s Zéfiros brincando;

Recreia-se o traidor com meus clamores -
E meu cioso pranto... oh Jove, oh Nume
Que vibras os coriscos vingadores!

Abafa as ondas do tartáreo lume,
Que para os que provocam teus furores
Tens inferno pior, tens o ciúme.
* * * * * * * * * * * * * *

Oh retrato da morte, oh Noite amiga
Por cuja escuridão suspiro há tanto!
Calada testemunha de meu pranto,
De meus desgostos secretária antiga!

Pois manda Amor, que a ti somente os diga,
Dá-lhes pio agasalho no teu manto;
Ouve-os, como costumas,ouve, enquanto
Dorme a cruel, que a delirar me obriga:

E vós, oh cortesãos da obscuridade,
Fantasmas vagos, mochos piadores,
Inimigos como eu, da claridade!

Em bandos acudi aos meus clamores;
Quero a vossa medonha sociedade,
Quero fartar meu coração de horrores.
* * * * * * * * * * * * * *

Vinde, Prazeres, que por entre as flores,
Nos jardins de Citera andais brincando,
E vós, despidas, Graças, que dançando
Trinais alegres sons encantadores:

Deusa dos gostos, deusa dos amores,
Ah ! dos filhinhos teus ajunta o bando,
E vem nas asas de Favônio brando
Dar força, dar beleza a meus louvores.

Da linda Anarda minha voz aspira
A cantar o natal; tu, por clemência,
O teu fiel cantor, deidade, inspira;

Do trácio vate empresta-me a cadência,
E faze que mereça a minha lira
Os cândidos sorrisos da inocência.

Fonte:
BOCAGE, Manuel Maria Barbosa Du. Sonetos e outros poemas.

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