quarta-feira, 20 de maio de 2020

Humberto de Campos (As Perdizes)


Chegado do interior de Minas, onde nasceu, vive, e não sabe se morrerá, o capitão Venâncio Pimentel, coletor em Poço Fundo, ficou deslumbrado com o Rio de janeiro. Com uma dezena de contos no bolso, provenientes da arrecadação semestral da coletoria, tomou o simpático sertanejo a deliberação de conhecer a cidade, guiando-se por si mesmo, dispensando, em tudo, o auxilio de estranhos. Teatros, cinemas, restaurantes, subúrbios, estabelecimentos públicos, tudo isso recebeu, de passagem, a visita da sua curiosidade.

Nada, porém, lhe causou tanta admiração, como a quantidade de mulheres desacompanhadas que encontrava na rua, principalmente nas proximidades do ponto dos bondes da Jardim Botânico, depois das nove horas da noite. Adivinhando-lhe a procedência, e farejando-lhe o dinheiro, essas criaturas infelizes acercavam-se do forasteiro, olhando-o de esguelha, sorrindo-lhe com brejeirice, num desafio maneiroso e calculado. Ele fixava então, a leviana, que tomava o bonde, e acompanhava-a até a Lapa, até o Catete, ou até a Glória, de onde voltava ao ponto de partida, para experimentar, de novo, quatro, cinco, seis, oito vezes, as mesmas sensações da conquista.

Uma destas noites, ia eu tomar o carro, às onze horas, em companhia do Sr. deputado Antônio Carlos, quando este descobriu, no ponto de costume, o capitão Venâncio, a quem me apresentou, contando-me, ao mesmo tempo, a fraqueza do seu velho correligionário e concidadão.

- Que gosto acha o senhor nessa extravagância, Sr. Pimentel? - perguntei eu, escandalizado, ao mineiro, acentuando as palavras com a tonalidade proposital da minha censura.

- Gosto? - atalhou o sertanejo. - Gosto, eu não acho nenhum. Eu acho é engraçado.

- Engraçado? - estranhei.

- Sim, senhor. Eu faço isso para me lembrar de Minas, das minhas caçadas no Poço Fundo. Cada mulherzinha dessas é mesmo que perdiz.

- Perdiz? - interveio o Dr. Antônio Carlos, admirado.

- Sim, senhor. Vossa Senhoria nunca andou caçando perdiz?

E explicou, ajudando a palavra com a mímica:

- A gente vai, às vezes, pelo mato, pisando aqui, pisando ali, cauteloso. com a espingarda calada, quando ouve, de repente, um barulho no chão, entre as folhas. Olha, e vê: é a perdiz que está no folhedo, imóvel, quieta, olhando pra gente. Sentindo-se descoberta, solta um voo baixo, rasteiro, junto do solo. A gente não atira: vai andando, vai seguindo, vai acompanhando a bicha, até que ela, afinal, chega no ninho.

- E quando a perdiz chega no ninho, que é que faz? - indaguei, curioso.

E o capitão, rindo:

- Que é que faz? Deita-se!

E saltou para o estribo de um bonde, espantando uma revoada…

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicada em 1921.

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