segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Aparecido Raimundo de Souza (Parte Três) Morcego Cego


O TELEFONE TOCOU e Glorinha, a empregada, atarefada passando o café, gritou lá da cozinha para  que o Chico, motorista de seu patrão, o magnata das saborosas sardinhas Tuti, sentado  na sala,  fizesse a gentileza de ver quem era. Obediente, e  prestativo, o Chico foi:  

—  Alô, bom dia!

— Bom dia.

— Com quem falo?

— Quer falar com quem?

— Com o Tuti.

— O senhor Tuti não está.

— Sabe a que horas posso encontrá-lo?

— Glorinha me passou a informação que só depois das oito da noite.

— Quem é a Glorinha?

— A Glorinha é a empregada dele.

— E o  senhor, quem é?

— Não sou o senhor Tuti.

— Ok. Qual seu nome, por obséquio?

— Prefiro não me identificar. Não vejo necessidade.

— Estou propensa a acreditar que o senhor é o Tuti e está tentando me enganar. Acertei?

— Asseguro-lhe que não. Conhece o senhor Tuti?

— Não tive ainda o prazer.

— Acaso falou com ele alguma vez?

— Na verdade nunca tivemos nenhum contato. Esta é a primeira vez que ligo para a sua casa.

— Minha não,  a casa é dele. Se nunca falou com o senhor Tuti, como ousa afirmar que eu sou ele, se jamais conversou comigo?

— Tá vendo só? Na mosca. O senhor é o Tuti.

— Não, não sou.

—  Claro que é.

— Prove que sou o senhor Tuti.

— Repetirei o que o senhor acabou de dizer: “Como ousa afirmar que sou ele se nunca conversou comigo?”.

— E daí...?

— Se o senhor não fosse o Tuti  diria: “Como ousa afirmar que sou ele, se nunca conversou com o cara, ou com o sujeito?”. Ao contrário, o senhor foi categórico. O senhor disse com todas as letras: “Como ousa afirmar que sou ele se nunca conversou comigo?”.

— Basta. Não precisa repetir.

— E para completar ficou nervoso. Aliás, está nervoso. Uma prova insofismável de que é o próprio.

— Que próprio?

— O Tuti em carne e osso.

— Senhora, o senhor Tuti realmente saiu. Só depois das oito da noite...

— A que horas ele saiu?

— Não sei ao certo.

— Sabe dizer onde foi?

— A Glorinha  não me disse. Afinal de contas, a senhora é de onde? Deixe o nome e o número do telefone que farei o favor de anotar e repassar para a moça que trabalha aqui na residência dele.

— Vamos esclarecer uma coisinha?

—  Que coisinha?

— Não sou casada.

— E o que eu tenho a ver com o fato  da senhora não ser casada?

— Às pessoas casadas o senhor se dirige usando a tal da senhora. Às solteiras...

— Por acaso tenho bola de cristal?  

— Senhor...

— Também não sou senhor.  

— O tratamento diferenciado faz parte da educação, cavalheiro.  

— Não quero saber.  

— Seu Tuti, preste atenção. Eu...

— Senhora, quero dizer... Moça, não sou o senhor Tuti, por gentileza, não insista. Está começando a me tirar do sério.

— Sabia que é feio mentir?

— Quem está mentindo aqui?

— Só vejo uma pessoa berrando no meu ouvido.

— Berrando? Quem está berrando?

— O Tuti. Só pode ser o senhor. Pois bem, seu Tuti. Vamos ao que realmente nos interessa, ou seja, ao real motivo que ensejou o presente telefonema para a sua residência. O Senhor é o Tuti. Tuti de quê?

— Dona, não sou Tuti de nada.

— O senhor não tem sobrenome?

— Não vou responder. Aliás, não quero mais prolongar esta lenga-lenga. Passe bem.

— Pretende continuar insistindo na brincadeira? Fale sério!

— Por que não desliga e vai  até a esquina fumar um cigarro ou tomar um refrigerante bem geladinho no canudinho?

— Não fumo mais. Parei  faz  exatamente dois anos.  Refrigerante dá estrias. E o canudinho... Bem o canudinho...

— Esquece o canudinho. Tenha um bom dia.

— Calma, seu Tuti. Só confirme para mim o seu nome completo e seu endereço.

— Simpática, não sou o senhor Tuti. Ele saiu...

— Vamos supor que realmente o seu Tuti esteja ausente . O senhor, quem é?

— Um colega e um amigo.

— E esse colega e amigo não tem nome?

— Senhora, eu...

— Senhorita. Lembre-se: não sou casada.

— Que seja. Atendi ao telefone para fazer uma gentileza à Glorinha que está passando o café. Tenho mais o que fazer. Pela última e derradeira, tenha um bom dia.  

— Calma, calma. Percebo, por sua voz, que o senhor está muito nervoso.

— E não é para estar com você torrando meu saco?

— São quase dez horas da manhã. Estamos no horário comercial. Apenas tento fazer meu trabalho.

— Vamos colocar um ponto final nesta parlenda. Não sou o senhor Tuti. Ligue depois das oito da noite e se entenda com ele diretamente. Ou deixe seu nome e número. Ele lhe retornará a ligação.

— Insisto: quem é o senhor?

— Um colega e amigo do senhor Tuti.

— Colega e amigo do senhor Tuti em sua casa, assim tão cedo?

— Vim resolver um problema. Passei para pegar os documentos do carro dele. Coincidentemente, como a Glorinha está preparando um café, estou esperando pela bebida. Meu Deus, o que estou fazendo? Não tenho que lhe dar satisfações.

— Ora, seu Tuti, fique à vontade.

— Tuti é a sua mãe.

— Não me ofenda. Minha mãe se chama Umbelina. Umbelina sem o agá. E não tem Tuti.

— Vá para o inferno.

— Irei. Antes de me pôr a caminho, me diga seu nome todo. Tuti de quê?

— Querida, vá para o raio que a parta.

— Cavalheiro, colabore. Quero seu nome para constar aqui na minha ficha de atendimento ao cliente. Tenho que anotar o nome da pessoa com quem falei neste número.

—  Se lhe der meu nome me deixará em paz?

— Juro por tudo quanto é mais sagrado.

— Pois bem. Sou o Chico. Chico Média. Satisfeita?

Risos:

— O que foi agora? Qual a graça?

As hilaridades continuaram:

— Vou desligar...

— Então o senhor é o famoso Chico Média?

— Sou. Contudo, não tenho nada de famoso. Por que continua  gargalhando? Tenho cara de palhaço?

— Me lembrei de um fato curioso. Mamãe fala todo mês no senhor...

— Sua mãe? Ela não me conhece! Que patranha é essa agora?

— Se minha mãe não lhe conhecesse, não teria motivos para ficar uma arara. Uma arara. Principalmente quando o senhor chega...

— Deve haver algum engano neste falatório todo. Sua mãe nunca me viu nem mais gordo, nem mais magro. E eu... Eu nunca cheguei...

— Agora que declinou seu nome, tenho cá minhas dúvidas...

— Que dúvidas? Como sua mãe poderia me conhecer?

— Vou provar que o senhor a conhece. E a incomoda, literalmente, todos os meses.

— Eu a incomodo? Como? De que forma? Não sei quem é você, moça, que dirá a sua mãe, esta tal de dona Umbelina.

— Lembrando, para que não esqueça: sem o agá.

— Que diferença isto faz, com ou sem o agá?

— Seu Tuti —, quero dizer —, seu Chico, o senhor me faria um imenso favor?

— Favor, que favor?!

— Saia de uma vez por todas da vida da minha mãe. Quero dizer, desgarre da minha querida genitora. Todo mês o senhor a incomoda. Mamãe fica uma fera com a sua presença. Que droga, que coisa feia, seu Média... Digo, seu Chico...

Chico Média ia retrucar mas a engraçadinha se abriu novamente numa estrondosa chalaceação desligando o aparelho na cara dele.

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. Comédias da vida na privada. RJ: Editora AMC-GUEDES, 2020.

Nenhum comentário: