domingo, 21 de fevereiro de 2021

Santos Dumont (Raciocínios Infantis)


DOIS MENINOS BRASILEIROS, dois ingênuos meninos do interior, que nada mais conheciam a não ser o movimento das lavouras primitivas, desprovidas de qualquer dessas invenções feitas para aliviar o esforço do trabalho humano, passeavam pelo campo, conversando.

Tal era a sua ignorância a respeito de máquinas que jamais sequer haviam visto uma carroça ou um carrinho de mão. Cavalos e bois é que carregavam as coisas necessárias à vida da propriedade, que os tardos lavradores indígenas valorizavam com a enxada e a pá.

Eram garotos refletidos, mas os assuntos que discutiam no momento excediam, em muito, tudo quanto eles tinham podido ver ou ouvir.

– Por que não se arranja um meio de transporte melhor que o lombo dos animais? – dizia Luís. – No verão passado atrelei cavalos a uma velha porta e sobre esta carreguei sacos de milho; assim, transportei de uma só vez mais do que dez cavalos poderiam transportar. É verdade que foram precisos sete cavalos para arrastar a carga, além de dois homens ao lado, para impedi-la de escorregar.

– Que quer você? – ponderou Pedro. – Tudo se compensa na natureza. Não se pode tirar alguma coisa do nada, nem muito pouco.

– Coloque rolos debaixo desse trenó e uma pequena força de tração chegará.

– Ora!... Os rolos se deslocarão; será indispensável pô-los sempre nos lugares, e perderemos neste trabalho o que houvermos ganho em força.

– Mas – observou Luís –, fazendo um furo no centro dos rolos, você poderá fixá-los ao trenó em pontos fixos. Ou então, por que não adaptar peças circulares de madeira aos quatro cantos do trenó? Olhe, Pedro, o que vem lá em baixo, na estrada. Exatamente o que eu imaginava, de maneira ainda mais perfeita. Basta um cavalo para puxá-la folgadamente!

Uma carreta aproximava-se. Era a primeira que aparecia na região. O condutor parou e pôs-se a conversar com os meninos. As perguntas surgiam umas atrás das outras.

– A essas coisas redondas – explicou o homem – chamamos rodas.

– O processo deve esconder qualquer defeito – insistiu Pedro. – Olhe em torno. A natureza emprega esse instrumento que você chama roda? Observe o mecanismo do corpo humano; repare a estrutura do cavalo. Observe...

– Observe que o cavalo, o homem e a carreta com as suas rodas estão nos deixando aqui – interrompeu Luís, rindo. – Você não se rende à evidência do fato consumado, e me enfastia com seus apelos à natureza. Será que o homem realizou algum dia verdadeiro progresso que não fosse uma vitória sobre ela? Por acaso não é lhe fazer violência o derrubar uma árvore? Nesta questão, atrevo-me a ir mais longe: suponha um gerador de energia mais poderoso do que este cavalo...

– Muito bem; atrele dois cavalos à carreta.

– É de uma máquina que estou falando – retificou Luís.

– De um cavalo mecânico, de pernas muito poderosas?...

– Não. Antes, de um carro-motor. Se descobrisse uma força artificial, eu a faria atuar sobre um determinado ponto em cada roda. A carreta levaria por si mesma o seu propulsor.

– Ora, isto seria o mesmo que alguém tentar elevar-se do solo pelos cordões dos sapatos – comentou Pedro, em ar de troça. – Escute, Luís: o homem está na dependência de certas leis físicas. O cavalo, é verdade, carrega mais que o seu peso, mas a própria natureza o fez com pernas apropriadas a este trabalho. Tivesse você a força artificial de que fala, e do mesmo modo seria obrigado, na sua aplicação, a se conformar com as leis físicas. E aí fico! Você a faria exercer-se sobre longas hastes, que empurrariam a carreta por detrás.

– É sobre as rodas que penso levar a força.

– Pela natureza das coisas, haveria uma perda de energia. É mais difícil movimentar uma roda aplicando a força motriz no interior da circunferência que dirigindo-a sobre o exterior, como, por exemplo, impelindo ou arrastando uma carreta.

– Para diminuir o atrito, eu faria correr o meu veículo motor sobre trilhos de ferro muito lisos. A perda de energia seria assim compensada por um ganho de velocidade.

– Trilhos de ferro bem lisos! – exclamou Pedro, com uma gargalhada. – As rodas patinariam. Só se houvesse rebordos nos aros e ranhuras correspondentes nos trilhos. Outra coisa: como impediria você que o veículo saísse dos trilhos?

Distraidamente, os meninos tinham andado muito. Um silvo agudo os fez estremecer. Diante dos olhos surgia-lhes a linha de um caminho de ferro em construção. Por entre as colinas avançava um trem de lastro com uma velocidade que lhes parecia enorme.

– Uma avalanche!... – exclamou Pedro.

– A realização do meu sonho – corrigiu Luís.

O trem estacou. Uma turma de trabalhadores desceu e foi empenhar-se na faina de assentamento dos trilhos, enquanto o maquinista explicava aos dois curiosos garotos o funcionamento da sua máquina.

De volta a casa, Luís e Pedro discutiam sobre a maravilha de que acabavam de ter a revelação.

– Se o homem aplicasse o mesmo uso aos rios – lembrou o primeiro –, tornar-se-ia senhor da água como já é da terra. Bastaria inventar rodas que pudessem agir na água, fixas a um grande pranchão, análogo ao corpo de uma carreta, e a máquina a vapor as faria andar nos meios fluviais.

– Não diga tolices! – protestou Pedro. – Os peixes flutuam? Na água devemos viajar com eles, não à superfície, mas em baixo. O seu pranchão, cheio de ar leve, emborcaria ao primeiro movimento, e as rodas, pensa você que teriam meios de girar num corpo líquido?

– Qual é sua ideia?

– Que o seu veículo aquático fosse construído com uma meia dúzia de peças articuladas, de forma a poder serpear na água qual um peixe. Um peixe navega. É navegar o que você quer. Pois estude o peixe. Há peixes que se servem de barbatanas propulsoras e de nadadeiras. Você poderá imaginar um sistema de longas palhetas, que batam na água como fazem os nossos pés e as nossas mãos quando nadamos. Mas não me fale em rodas de carretas na água!

Os dois brasileirinhos achavam-se agora à margem de um grande rio. O primeiro navio que singrava suas águas aparecia ao longe. Mas, para os nossos jovens amigos era apenas, ainda, uma forma indistinta.

– Olhe ali! – apontou Pedro, com o braço estendido. – Um enorme vulto escuro com metade do corpo boiando! Uma baleia. Qual é o peixe cuja metade do corpo emerge quando nada? A baleia; veja como ela esguicha água.

– Não é água, é vapor ou fumaça.

– Nesse caso – continuou o outro – é uma baleia morta. O vapor é da sua decomposição. Por isso é que ela flutua tão alto!

– Não é baleia nem nada parecido – resmungou Luís, sempre perseverante no seu ponto de vista. – É decididamente uma carruagem aquática a vapor.

– Soltando fumaça como uma locomotiva?

– Justamente.

– Com certeza seu bojo é, igualmente, de ferro como o da locomotiva.

– Não vê que o fogo a queimaria?...

– Ferro vai ao fundo. Atire um machado ao rio, se quiser ver.

O navio atracou. Dirigindo-se para ele, os meninos experimentaram a alegria de encontrar no tombadilho um velho amigo da família, plantador das vizinhanças, que os saudou, convidando:

– Subam, meninos! Venham conhecer o navio!

Os dois garotos não se fizeram de rogados. Instantes depois estavam a bordo examinando demoradamente a máquina. Por fim, foram sentar-se à proa, com seu obsequioso guia.

– Pedro – segredou o companheirinho –, será que os homens não poderão inventar um navio para navegar no céu?

O fazendeiro olhou com ar apreensivo para o autor da pergunta, que baixou os olhos, enrubescendo.

– Anda construindo castelos no ar? – perguntou-lhe.

– Não faça caso – tranquilizou Pedro. – Ele sempre fala assim, de coisas aéreas. É mania.

O velho sorriu, e sentenciou convicto:

– O que sonha é impossível. O homem não pilotará nunca um navio no espaço.

– Mas – insistiu Luís – no São João, quando se acendem as fogueiras, costumamos soltar balões de papel cheios de ar quente. Se encontrar um meio de construir um balão muito grande para levantar consigo um homem, uma viatura leve e um motor, não poderia ele ser dirigido no espaço do mesmo modo que um navio nas águas?

– Meu caro amiguinho, não diga disparate – replicou o velho com vivacidade, ao perceber, ainda que tardiamente, que o capitão do navio se aproximava.

Este ouvira, porém, a observação, e longe de considerá-la disparatada justificou-a:

– O grande balão que você idealiza existe já desde 1783. Infelizmente porém, posto que capaz de levantar um ou mais homens, não pode ser dirigido. Está à mercê do mais leve sopro da brisa. Em 1852, um engenheiro francês chamado Giffard experimentou uma derrota gloriosa com a sua tentativa de balão dirigível munido de um motor e de um propulsor, tal como sonhou Luís. O mais claro resultado das suas experiências foi evidenciar a impossibilidade de dirigir um balão nos ares.

– Nessas condições, não haveria senão uma coisa a fazer: construir uma máquina inspirada no modelo de um pássaro – sugeriu Pedro, categórico.

– Pedro é um menino de bom senso – observou o velho fazendeiro. – Pena que Luís não se pareça com ele e se deixe dominar por visões. Mas, diga-me, Pedro, por que motivos você prefere o pássaro ao balão?

– Motivo muito simples. E de uma lógica elementar. O homem voa? Não. O pássaro voa? Voa. Por conseguinte, se o homem quiser voar, tem que imitir o pássaro. A natureza fez o pássaro e ela não se engana. Se o pássaro fosse apenas um saco cheio de ar, possivelmente eu ficaria com o projeto de um balão.

– Bem pensado – confirmaram ao mesmo tempo os dois homens.

Luís, porém, não se deu por convencido. Do seu canto, murmurou, com a incredulidade de um Galileu:

– Ele será dirigível!

Fonte:
Alberto Santos-Dumont, Os meus balões; tradução do original francês por A. de Miranda Santos. – 2. ed. – Brasília : Senado Federal, Conselho Editorial, 2016. Primeira publicação em 1904, com o título “dans l’ air”.

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