domingo, 11 de fevereiro de 2024

Cassiano Ricardo (Poemas Escolhidos) = 2


A DOR DA TERRA

Esta montanha sofre um íntimo tormento.
Arremessada para o azul do firmamento,
parece que o seu mal é o viver, invocando,
no seu pétreo mutismo, o ouro vivo dos astros,
sobre a desolação deste mundo execrando,
como o perdão da altura aos que vivem de rastros. . .

Toda a tinta da aurora escorre-lhe no dorso,
sobre a hedionda nudez do seu vulto retorço.
Dá-me a vaga impressão de que a montanha verte
luz e sangue, no seu torpor de cataclismo,
monstro azul que dormiu, acorrentado e inerte,
grito que emudeceu na garganta do abismo!

Onda que foi rolar, criniverde e bravia,
e parou! vagalhão absorto, penedia
descondensada, dor da Terra, hirta montanha!
O homem pensa, e pergunta ao sofrimento absurdo,
como, sendo o teu mal de grandeza tamanha,
pode um deus existir tão bárbaro e tão surdo!

Esse filões de luar, que te rolam dos flancos,
são, no horror da velhice, os teus cabelos brancos;
pois, desde o alvorecer deste mundo maldito,
nessa imobilidade em que o teu sonho medra,
nessa imortalidade obscura, sem um grito,
vives acorrentada ao teu ideal de pedra.

Do teu negro silêncio, a água viva que nasce,
(fria transudação pelas rugas da face)
que nas pedras ressuma e escorre a umedecê-las,
é o teu suor de montanha! ajoelhada no fundo
da Terra, agrilhoada ao cárcere do mundo,
como um gesto de dor ao clarão das estrelas!
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A GRAÇA TRISTE

Só me resta agora
Esta graça triste
De te haver esperado
Adormecer primeiro.
Ouço agora o rumor
Das raízes da noite,
Também o das formigas
Imensas, numerosas,
Que estão, todas, corroendo
As rosas e as espigas.

Sou um ramo seco
Onde duas palavras
Gorjeiam. Mais nada.
E sei que já não ouves
Estas vãs palavras.
Um universo espesso
Dói em mim com raízes
De tristeza e alegria.
Mas só lhe vejo a face
Da noite e a do dia.

Não te dei o desgosto
De ter partido antes.
Não te gelei o lábio
Com o frio do meu rosto.
O destino foi sábio:
Entre a dor de quem parte
E a maior — de quem fica —
Deu-me a que, por mais longa,
Eu não quisera dar-te.
É a sua noiva que vem vindo. . .
É o cafezal que, no barranco,
e sob o céu ainda estrelado
lembra um vestido de noivado
de tanta flor e de tão branco.
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A LANTERNA MÁGICA

E foi
tão grande o seu desespero
na encruzilhada
e a noite era tão escura
na floresta e nos campos,
que o próprio Currupira
ficou com pena
e lhe arranjou uma lanterna
de pirilampos.

“Pouco importa
que a noite seja escura,
porque foi apanhar água
no ribeirão
e quebrou seu pote branco
numa pedra do barranco
fazendo esta escuridão.

Vá por aqui, direitinho,
com esta lanterna
na mão, alumiando o caminho...
e você encontrará o que procura!”

E ele saiu pelo sertão,
procurando o Sol da Terra
com uma lanterna de pirilampos
na mão.
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AMOR ORBITAL

Não preciso
fugir para a Lua
numa viagem
nupcial
na noite sideral.
Ela brilha como
um fruto branco
ao alcance de minha
mão.
O amor move o sol
e “l'atre stelle”
em torno
de nós dois.
Pra que um voo
orbital?
já os teus olhos
são dois satélites
azuis

em órbita.
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A ROSA LOUCA

É a rosa louca, uma rosa vermelha,
mais um grito de cor do que flor.

A que nasceu no galho arrancado a roseira
e jogado no chão, sem nenhum endereço.

Rosa agressiva, pela cor tão viva.
Que faz pensar num homicídio, pelo sangue;
e no céu, pelo aroma.

E que, no entanto – inexplicavelmente –
floriu no galho já depois de morto.
Única rosa que ainda te ofereço.

É esta, a rosa louca, em mim nascida.
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A SINTAXE DO ADEUS

O frio que a morte traz
quem o sente não é o morto.
O morto apenas esfria.
É o frio do calafrio...

E são os vivos que o sentem.
Também os vivos têm medo
de olhar nos olhos do morto.
Ah, o terrível segredo.

E alguém, com dedos de rosa
vem e automaticamente
pra que o morto não nos veja,

lhe fecha as pálpebras como
a duas pétalas e adeus.
A-deus quer dizer sem Deus.

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