sexta-feira, 10 de junho de 2022

Francisco José Pessoa (A Flor de Plástico)

Com as estrelas ainda acordadas, ele partira rumo ao trabalho. Benzera-se e saíra pé ante pé para não acordar a mãe que aguardava no leito a cura de uma pneumonia. Naquele dia, as bênçãos maternas não foram dadas. Quebra de rotina comum na vida de qualquer filho. Caminhava sempre cabisbaixo, não por abatimento, mas à procura de algum objeto que melhorasse a sua parca renda de cada dia. Catava e vendia papelão, plástico, garrafa, alumínio, tudo o que era sem utilidade e esquecido nas sarjetas. Tal garimpo sorvia-lhe as forças. A esperança de voltar para casa com algo para comer, reanimava-as.

Dez horas, o jejum é quebrado com um copo de café e um pedaço generoso de bolo de carimã*. O vendedor ambulante toma nota do gasto na caderneta e parte para atender outro cliente. Os valores dessa vida são tão relativos quanto a própria vida. Para o catador, o cascalho vale ouro. Tudo o que é inútil tem em sua essência alguma utilidade,

No Morro do Cruzeiro, um alvoroço toma conta da ruela onde uma senhora de idade avançada suplica por ajuda com dificuldade para respirar. A vizinhança solidária trata de socorrê-la, conduzindo-a para o posto de saúde da comunidade. O amor ao próximo parece ser mais próximo entre os menos providos de bens materiais. Outro vizinho, taxista, oferece seu carro para levá-la. Após o primeiro atendimento com o santo oxigênio, a decisão médica. Internação. Cuidados intensivos. Sem prognóstico no momento. Os vizinhos tomam o caminho de casa.

Num bairro distante, do outro lado da cidade, Julião remexia um monturo promissor. Uma moradora caridosa que observava seu trabalho oferece-lhe duas bananas e um copo com água. Um sorriso e um "Deus lhe pague" de agradecimento estampa a felicidade do catador. "Nesse mundo, não tem só gente ruim", conversava consigo. Guardou uma das bananas no bornal que carregava, pensando na mãe adoentada. Nunca pedira nada a Deus, não sabia rezar. Fazia o sinal da cruz porque vira sua mãe se benzendo sempre que acordava. Não fora alfabetizado nem frequentara catecismo.

Outra coisa não sabia fazer além de explorar lixo. No meio do entulho, encontra uma flor de plástico. Assopra-a, bate-a suavemente de encontro à perna e guarda-a com um tanto cuidado no bornal surrado. Lembra-se da mãe acamada. Olha a posição do sol para prever a hora. Pelo volume do saco que conduzia às costas, a janta estava garantida. Por aquele dia bastava. Toma o caminho do depósito para a seleção do material catado, a pesagem e a prestação de contas. De posse do apurado, toma o rumo do Morro do Cruzeiro, cabisbaixo, posição viciosa adquirida depois de tantos anos no mesmo trabalho.

No pé do morro, de volta, faz sua parada de todos os dias para comprar mantimentos. O dono da quitanda não lhe franqueia caderneta por não ter ganho fixo. Aprendera a comprar somente o necessário para o próximo dia. Era o mesmo de sempre que, ordenadamente, colocava no bornal.

Enlaça-o no pescoço e inicia a subida um tanto ingrata que lhe fazia chegar à casa. Seu pensamento vai na frente e alcança o barraco de um só cômodo onde ficara sua mãe, enferma. Como estaria ela? Dessa vez, trouxe mais uma caixa de leite para que ela se alimentasse melhor. Não se esqueceu da meia barra de sabão de coco para tirar o cheiro de lixo que lhe impregnava o corpo suado. Ansiava por chegar logo, pedir a benção à mãe, preparar a janta, esquentar o ouvido com o radinho de pilha e descansar o corpo um tanto dolorido na rede encardida até pegar no sono.

A dez degraus do barraco, sua vizinha Clotilde apressa-se para lhe dar a notícia do internamento de Dona Nenzinha. Julião dá meia-volta e segue estonteado para o posto de saúde como num pé-de-vento. "Parece que esticaram mais esse caminho", resmunga ansioso. Avista o prédio na cabeça do alto. Alcança o portão de entrada e desacelera o passo. Reabastece-se de ar. Dirige-se à portaria em busca de informações sobre o estado de saúde da genitora. Ultima notícia que não desejava ouvir. Pede para vê-la. Adentra o necrotério do mini-hospital. Um só leito havia naquela sala, onde o silêncio reverenciava a morte. Levanta o lençol branco que cobria o corpo de Nenzinha e chora baixinho só para os dois.

Abriu o bornal e retirou docemente a flor que colhera na sarjeta. Acomodou-a sobre o peito da mãe e benzeu-se. Não rezava porque não sabia.
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* Bolo de carimã =também conhecido como bolo de mandioca puba é um tipo de bolo típico da culinária brasileira, especialmente no Nordeste do Brasil, no qual o principal ingrediente é a mandioca fermentada e amolecida. (wikipedia)

Fonte:
Francisco José Pessoa de Andrade Reis. Isso é coisa do Pessoa: em prosa e verso. Fortaleza/CE: Íris, 2013.
Livro enviado pelo autor.

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