quinta-feira, 6 de junho de 2024

Estante de Livros (“Bom crioulo”, de Adolfo Caminha)

A narrativa concisa, além da elaboração da linguagem, são elementos que conferem a Bom-Crioulo um lugar de destaque em nossa literatura. No entanto, seu maior mérito é conseguir alargar nosso campo de visão, primeiro por mostrar que o Naturalismo não está só nas mãos de Aluísio Azevedo. Em segundo lugar, por possibilitar uma discussão interessante no que se refere ao Determinismo e como o homem age em relação ao seu destino.

À primeira vista, esse debate poderia ser inspirado pelo que mais chama a atenção em sua história: o homossexualismo. No entanto, o autor não resvala por dois dos aspectos mais comuns desse assunto. Não há a questão de se levantar ou se esconder a bandeira da condição sexual. Além disso, não há a crise de identidade tão comum em tantas obras de mesma temática. Muito pelo contrário – a descoberta da preferência sexual deu ao protagonista mais força de viver.

Cabe aqui uma observação. Constantemente se diz que o homossexualismo é tratado nessa obra de forma crua e imparcial. De fato, o primeiro adjetivo pode estar correto, pois o sexo, na obra, faz-se de forma carnal, não havendo sublimação, o que é típico do Naturalismo, escola que apresenta o homem como animalizado, prisioneiro dos próprios instintos. No entanto, imparcialidade é um conceito questionável, pois a maneira como o narrador se refere aos atos íntimos de suas personagens – “atentado contra a natureza” – por si constitui um juízo negativo de valor.

No entanto, o homossexualismo não é a pedra de toque do romance, mas uma ponte para que se reflita sobre algo maior: até que ponto somos livres para decidir sobre nossa vida? Praticamente tudo na narrativa inspira essa questão.

De início, deve-se lembrar que Amaro, personagem principal, é escravo fugido. Quer ser dono de seu próprio destino. Até que num golpe de sorte (nem lhe perguntam sua procedência) é aceito como marinheiro, o que ampliará os horizontes. A possibilidade de viajar, conhecer mundo, faz com que alcance sua bem-aventurança, tanto que recebe o apelido de “Bom-Crioulo”, graças à sua benevolência que contrasta com seu porte físico – sempre descrito, é importante notar, como algo olímpico, superior ao físico dos brancos.

No entanto, a disciplina a que está submetido é outra prisão, que só vai ser percebida quando o protagonista conhece Aleixo, adolescente que trabalha como grumete na mesma corveta em que está Amaro.

Interessante é ter em mente que o protagonista ganha identidade graças ao outro. Entende por que suas duas experiências com mulheres foram fracassadas. Entende o que é ao descobrir do que gosta, o que o faz desencantar-se do meio em que está. Deixa de ser o marinheiro submisso. Tanto que o livro inicia-se com o relato das chibatadas que Amaro recebeu, justo por ter arranjado briga em defesa do menino. Detalhe: com essa técnica de sedução, o que Amaro consegue é mais gratidão do que amor.

Com a necessidade de reforma da corveta em que trabalham, os dois marinheiros são autorizados a descer no Rio de Janeiro. Amaro arranja um quarto na pensão de D. Carolina, antiga prostituta e que também colhe pelo protagonista uma enorme gratidão – ele a havia salvado de uma tentativa de assalto. Revela-se, mais uma vez, o espírito bondoso do Bom-Crioulo.

Aqui cabe mais uma observação. Não há reprovação nenhuma por parte da mulher quanto ao relacionamento que vê diante de si, ainda mais por Amaro ter mais de 30 e Aleixo pouco mais de 15. Ela entra no mesmo esquema do livro: não faz julgamentos nítidos. Tudo se passa meio torto, pela observação tangencial, indireta, do narrador sobre o que outras personagens falam. As questões morais não estão no cerne da obra. Esse mesmo toque tangente é visto no que se refere a sexo. Tem-se a coragem – pelo menos para os padrões da época – de se citar o que está ocorrendo, mas na hora de relatar, descrever, narrar o que de fato acontece, corre-se uma cortina de reticências.

Enfim, é criada uma estabilidade matrimonial efêmera. É digno de nota o que acontece entre os dois, quando se fecham no sujo quartinho de pensão. Amaro mais se delicia em admira o corpo do seu amado do que com o prazer sexual. Parece que o menino, além de dar ao protagonista identidade, dá também um sublime senso estético, ou algo próximo disso. É uma evolução, de certa forma.

Como já se disse, o equilíbrio da união é temporário. Em primeiro lugar, já se notam indícios de que não há amor, ou mesmo atração, mas gratidão de Aleixo por Amaro. Talvez isso justifique a impaciência do menino com a rotina do Bom-Crioulo admirar seu corpinho branco. Além disso, Amaro é transferido de navio, cujo capitão, extremamente rígido, só lhe dá folga uma vez por semana, ocasionando horários desencontrados entre os amantes – não se vêem mais, pois. E, para piorar, D. Carolina determina, como último capricho de senhora, seduzir o rapazinho, no que é vitoriosa. Estabelece-se, dessa forma, o mais estranho triângulo amoroso de nossa literatura, pois o elemento desestabilizador é uma mulher, que rompe justo a união de dois homens.

Insatisfeito, Amaro chega a beber, o que altera sua personalidade – é o único ingrediente que o faz radicalmente deixar de ser o Bom-Crioulo. Desequilibrado, arranja confusão e por causa disso recebe uma quantidade inominável de chibatadas. Baixa, portanto, a um hospital-prisão, em que mergulha no tédio da recuperação e do abandono. Chega a mandar um bilhete, pedindo a visita de seu amado, mas Dona Carolina inutiliza-o.

Solitário e frustrado, Amaro começa a ficar inquieto quando sabe, por meio de um companheiro que passa pelo hospital, que Aleixo estava de caso novo. Realiza, pois, mais uma fuga – sempre o tema da busca da liberdade – em direção da pensão. No caminho, a verdade é completada, o que o deixa mais furibundo, aspecto que se agrava pelo fato de já estar bebendo.

Então, o desfecho. De forma extremamente rápida, em meio à multidão, Amaro encontra Aleixo, mata-o e acaba sendo levado preso. O interessante é observar, neste momento, a movimentação da coletividade, acompanhando com curiosidade sórdida a cena para depois cair na apatia. Uma tragédia que mergulhava na anestesia do esquecimento.

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