Aqueles últimos cinco anos de vida matrimonial haviam sido para Joaquim Praxedes Monteiro uma tortura contínua. Certo, nada lhe demonstrava de modo seguro, positivo, irrecusável, o procedimento incorreto da esposa; uma voz interior dizia-lhe, porém, a todo instante, que ele estava sendo traído, enganado, ludibriado e, por onde andava - na rua, no cinema, na repartição, - parecia ver em cada rosto, em cada olhar, em cada cumprimento, um sorriso de mofa um sorriso de mofa pelo conhecimento da sua desgraça. Com o surto dessa suspeita morrera a sua alegria. Tinha vontade, ímpeto desejo de sacudir a mulher pelo braço e perguntar-lhe a verdade, mas temia ser injusto, e calava-se. Até que um dia, diante de seu leito mortuário, vendo-a desenganada pelos médicos, resolveu explodir e tranquilizar de uma vez o seu pobre coração despedaçado.
— Laura! - pediu, segurando-lhe as mãos pálidas, e cobrindo-as de lágrimas - Laura, dize-me, pelo amor de Deus: tu nunca me enganaste?
O peito opresso, a testa coberta por um suor frio, prenúncio seguro da morte, a moça olhou-o nos olhos:
— Não, Praxedes, nunca!
E para tranquilizá-lo:
— Eu quero que meu corpo fique dando voltas no espaço se eu alguma vez te enganei!
E, soltando um suspiro fundo, morreu.
Passou-se o tempo. Oito anos viveu ainda Joaquim Praxedes na terra, com a alma a oscilar, aflita, entre um arrependimento e uma saudade. Até que, por sua vez, após um acesso do coração, abandonou o seu invólucro terreno e foi bater às portas de ouro do Paraíso.
Ao penetrar na mansão dos bem-aventurados, olhou em torno e foi logo perguntando a São Pedro:
— Meu santo, diga-me uma coisa: a Laura anda por aqui?
— Laura? - fez o santo, semicerrando os olhinhos espertos, como para lembrar-se melhor. - Que Laura? Nós, aqui, temos milhares de Lauras.
— Essa a que me refiro é minha mulher... Laura Praxedes Monteiro...
O chaveiro pensou um instante, como quem procura recordar-se. E como se não lembrasse, chamou um anjo, que passava, as asas muito grandes e muito cândidas.
— Gisael!
O anjo acorreu.
— Existe aqui alguma Laura Praxedes Monteiro?
— Sim, mestre, existe.
E como quem estranha aquele desconhecimento de pessoa tão conhecida:
— Não é aquela que está servindo de ventilador?
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
HUMBERTO DE CAMPOS VERAS nasceu em Miritiba/MA (hoje Humberto de Campos) em 1886 e faleceu no Rio de Janeiro, em 1934. Jornalista, político e escritor brasileiro. Aos dezessete anos muda-se para o Pará, onde começa a exercer atividade jornalística na Folha do Norte e n'A Província do Pará. Em 1910, publica seu primeiro livro de versos, intitulado "Poeira" (1.ª série), que lhe dá razoável reconhecimento. Dois anos depois, muda-se para o Rio de Janeiro, onde prossegue sua carreira jornalística e passa a ganhar destaque no meio literário da Capital Federal, angariando a amizade de escritores como Coelho Neto, Emílio de Menezes e Olavo Bilac. Trabalhou no jornal "O Imparcial", ao lado de Rui Barbosa, José Veríssimo, Vicente de Carvalho e João Ribeiro. Torna-se cada vez mais conhecido em âmbito nacional por suas crônicas, publicadas em diversos jornais do Rio de Janeiro, São Paulo e outras capitais brasileiras, inclusive sob o pseudônimo "Conselheiro XX". Em 1919 ingressa na Academia Brasileira de Letras. Em 1933, com a saúde já debilitada, Humberto de Campos publicou suas Memórias (1886-1900), na qual descreve suas lembranças dos tempos da infância e juventude. Após vários anos de enfermidade, que lhe provocou a perda quase total da visão e graves problemas no sistema urinário, Humberto de Campos faleceu no Rio de Janeiro, em 1934, aos 48 anos, por uma síncope ocorrida durante uma cirurgia. Além do Conselheiro XX, Campos usou os pseudônimos de Almirante Justino Ribas, Luís Phoca, João Caetano, Giovani Morelli, Batu-Allah, Micromegas e Hélios. Algumas publicações são Da seara de Booz, crônicas (1918); Tonel de Diógenes, contos (1920); A serpente de bronze, contos (1921); A bacia de Pilatos, contos (1924); Pombos de Maomé, contos (1925); Antologia dos humoristas galantes (1926); O Brasil anedótico, anedotas (1927); O monstro e outros contos (1932); Poesias completas (1933); À sombra das tamareiras, contos (1934) etc.
Fontes:
Humberto de Campos. Grãos de Mostarda. Publicado originalmente em 1926. Disponível em Domínio Público.
Imagem criada por Jfeldman com Meta IA
Nenhum comentário:
Postar um comentário