Largado no banco do jardim, meio escondido na sombra da palmeirinha, Boito percebe o ruído que vem de pertinho.
A luz que sai da sala caminha no terraço, insinua-se pelo gradil, vai projetar-se, mansa, no canteiro bem desenhado. E morre de supetão. Morre onde começa o rastilho do luar. Do luar que está cobrindo a cidade. Raras vozes na sala. O mudinho limpando as mesas. Um som de talheres crescendo na velha cozinha.
Sai o tenente, mais a mulher. O tenente gasta uma pose. Pose de marechal.
Boito se assusta.
— Será ela?
Curva-se um pouco.
— É mesmo.
Dulce nem olha pros lados.
— Psiu!
— Ah! Você? Não tinha visto...
— Eu sou o homem invisível.
(E a inflexão de Boito é forçada, cheia de intenções).
— Lembra-se da fita? A cabeça enrolada, o nariz escondido assim... as orelhas, o queixo, tudo igual.
— Deixe de histórias, viu?
— Não são histórias, filha. São fatos.
— Que nada! Tirando os panos, vai ficar como era antes.
— O que era antes? Pobre de mim...
(Ela corta o assunto).
— Bem. Chega de tristezas.
(Muda o tom de voz).
— Como vão as meninas?
— Parece que estão vivas.
— Então vamos entrar? Aqui você se resfria.
— Não tem importância.
(Há uma pausa difícil).
— Por que não veio a Dorita?
— Por nada. A coitadinha está muito aborrecida. Ficou chorando no quarto. Ela quer ir à festa na casa do Crespo.
— E não vai?
— Falta de companhia.
— E você?
— Eu?
— Sim. Por minha causa não se prenda. Nem somos noivos ainda. Faça o que quiser. Divirta-se.
— Não fica bem.
— Fica bem, sim senhora. Pra desgraças chegam as minhas.
— Que exagero, Boito!
— É isso mesmo. Vá. Divirta-se. O que é que tem?
— Prefiro não ir.
— Bobagem. Por minha causa não se prenda. Afinal de contas, que culpa tem a Dorita de minhas loucuras? Nenhuma. Vão à festa do Crespo. E divirtam-se. Até o fim.
Dulce não sabe o que dizer. Para falar a verdade, é bem grande o desejo de ir.
— E... Se eu for, você não zanga?
— Claro que não.
— Prometo me comportar.
— Não precisa prometer.
— E sair bem cedo. Só pra contentar a Dorita, que gosta tanto dessas coisas, você sabe.
Desaparece a moça na esquina e Boito sobe ao quarto. Fica ali na janela um tempão.
Quando vê, o relógio da Prefeitura está batendo onze vezes.
Deserta a rua. Chegam de longe, vez ou outra, sons perdidos, indistintos. São bailes principiando. Grandes farras que começam. E a noite fria, fria, insinuando aconchegos misteriosos.
Damião passeia no quarto do lado. Tosse duas vezes a tossezinha desconsolada de todas as horas.
A mocinha triste de seu Valério está sozinha na sala. E não para de olhar a lua. Busca o violino. E se põe a tocar uma velha melodia. Velha, mansa, triste. Um noturno. O mesmo que a Carmita toca de vez em quando. Mas a mana Carmita não atinge nunca a surdina da mocinha de defronte. Porque a mocinha de defronte é que sabe escutar as fundas vozes ansiadas.
Lá embaixo, na calçada, passa um garoto de casaco esfarrapado. Segura a cestinha. E grita pra rua deserta:
— Mendoim torradinho... Quentinho, quentiiiinho...
O violino não descansa. A música fica mais angustiada. É um soluço feito harmonia.
Já vai distante o garoto do casaco esfarrapado. Oferece outra vez a sua mercadoria. E, no esforço medonho de encontrar freguês, o pregão morre, na noite quieta, longe, longe.
— Mendoim torradinho... Quentinho, quentiiiinho…
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NEWTON SAMPAIO, natural de Tomazina/PR, 1913 e falecido na Lapa, em 1938, foi um médico, ensaísta, escritor e jornalista brasileiro. Newton é considerado um dos mais importantes contistas paranaenses sendo o precursor do conto urbano moderno. Em 1925, saindo da pequena Tomazina foi estudar no Ginásio Paranaense, em Curitiba, e precocemente, passou a lecionar nesta instituição, além de colaborar para alguns jornais da capital paranaense, principalmente o "O Dia". Ao ser admitido na Faculdade Fluminense de Medicina, transferiu-se para a cidade de Niterói. Após formado em Medicina, permanece na capital do país, porém, com a saúde bastante abalada, retornou a Curitiba e em seguida internou-se em um sanatório na cidade da Lapa onde faleceu no dia 12 de julho de 1938. Duas semanas após o seu falecimento, recebeu o Prêmio Contos e Fantasias concedido pela Academia Brasileira de Letras, pelo livro Irmandade. Newton Sampaio pertenceu ao Círculo de Estudos Bandeirantes de Curitiba e como homenagem ao jovem modernista, um dos principais prêmios de contos do Brasil leva o seu nome: Concurso Nacional de Contos Newton Sampaio. Algumas obras: Romance “Trapo”: trechos publicados em jornais e revistas; Novela “Remorso”, 1935; “Cria de alugado”, 1935; Contos: “Irmandade”, 1938, “Contos do Sertão Paranaense”, 1939; “Reportagem de Ideias”: contos incompletos, etc.
Fontes:
Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014. Conto publicado originalmente em O Dia. Curitiba, 21/10/1936. Disponível em Domínio Público.
Biografia: https://pt.wikipedia.org/wiki/Newton_Sampaio
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing
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