quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Fernando Sabino (Mais invenções)


OUTRO DIA falei nos meus dotes geniais de inventor. Esgotei o assunto? De forma alguma. Meus inventos se multiplicam, e ainda esta semana ouvi em mim o borbulhar do gênio: num rasgo de espetacular inventiva, entupigaitei* com meu engenho o mecânico que aqui esteve para consertar o aparelho de ar condicionado.

Para começo de conversa, o aparelho de ar condicionado ainda está para ser inventado. Muitos outros inventos de nosso tempo, aliás, não passam de contrafações grosseiras daquilo que minha imaginação já criou com todos os requisitos de perfeição: uma televisão que fosse mesmo verdadeiro cinema em miniatura, por exemplo, sem risquinhos nem distorções; um helicóptero que fosse mágico como um tapete voador, sem aquelas assustadoras pás que têm de girar o tempo todo, sob pena de despingolar-se* do ar a caranguejola* e esborrachar-se no chão.

Voltando ao ar condicionado: não posso crer que aquele cubo de aço gigantesco, cheio de hélices e gradinhas, seja a última palavra da ciência para diminuir o calor dos ambientes interiores. Não passa de um ventilador disfarçado, girando dentro de uma geladeira sem porta e sem lugar para guardar os alimentos. Na era dos motores a jato, já podiam ter inventado coisa mais jeitosa. Pois o dito mecânico, a certa altura, para justificar o mau funcionamento do meu aparelho de refrigeração, alegou que eu o fazia funcionar na velocidade máxima, tirando dele menor proveito:

— Em alta velocidade, o exaustor puxa com mais força aqui por baixo o ar frio que vai entrando aqui por cima.

E como que para provar o que dizia, largou junto ao que chamava de exaustor um papelzinho, que ficou pregado na grade protetora:

— Por aqui vai-se embora o ar quente, mas parte do ar frio também — arrematou.

Um tijolo de burrice me baixou na cabeça, diante de semelhante raciocínio. Acabei concluindo que quanto mais aparelhos houvesse na sala, mais exaustores haveria, jogando para fora o ar frio produzido, e a temperatura continuaria na mesma.

O cara concordou, todo sabidão. Então é que me ocorreu a solução, aventada pela sapiência do tal mecânico, antes que ele me provasse que a melhor maneira de refrigerar a sala era manter o aparelho desligado: por que não separá-lo em dois aparelhos, distantes um do outro, como os alto-falantes de som estereofônico? De um lado o que jogava ar frio para dentro, do outro o que jogava ar quente para fora — sugestão que ofereço aqui, gratuitamente, ao Admiral, ao General Electric, e outras altas patentes da indústria eletrodoméstica.

Poderia oferecer aos industriais desta praça outras invenções de minha lavra, mais modestas mas não menos sinceras: tampa de mola para os dentifrícios, como aquela dos lança-perfumes, evitando que ela caia no ralo da pia, e tenha de ser retirada, com prodígios de paciência, mediante uma pinça ou mesmo aquele grampo enferrujado que pode ser sempre encontrado debaixo da saboneteira; rede protetora para aparar os objetos que fatalmente tombam do armário do banheiro, quando se abre a portinha de espelho; fechaduras à altura dos olhos, para evitar a ridícula postura assumida por quem olha pelo buraco; papel higiênico com pensamentos de folhinha, conselhos úteis, fases da Lua, máximas do Barão de Paranapiacaba e do Marquês de Maricá; sabonete com orifício para se enfiar o dedo e não escapar da mão; e outras, mil outras invenções geniais nascidas da minha cachimônia*. E olhem que hoje praticamente não saí do banheiro.

Rubem Braga tem a veleidade de reclamar primazia da invenção de uma torneira externa nas geladeiras, para água gelada — ideia que já me havia ocorrido muito antes e que até hoje, ao que me conste, não foi ainda aproveitada. Um americano patenteou, antes de mim, o disco silencioso — invento que se destina não somente a fazer alguns minutos de silêncio para quem detesta a música das vitrolas automáticas dos bares, mas também a ensinar aos papagaios e às mulheres a não falar. Um italiano, ao que me consta, resolveu industrializar, como se fosse dele, a minha invenção do cigarro já fumado: uma ampola de plástico, como aquela de fluido para isqueiros, contendo a fumaça comprimida de vinte cigarros, e que se atarracha numa piteira, para uma fumadinha de vez em quando; dispensa fósforos e isqueiros, não oferece perigo de incêndio, não larga cinza no tapete e (consta) não provoca o câncer. Só que o tal italiano confessou, meio encabulado, que depois de umas tragadas no seu (nosso) invento, não resiste e acaba acendendo um cigarrinho.

Certa ocasião, resolvi inventar uma proteção efetiva contra a chuva: uma espécie de saco de plástico transparente, sob o qual andaríamos pela rua sem perigo de nos molharmos. Tive, porém, de abrir orifícios para os braços e, a fim de que estes também não se molhassem, protegê-los com mangas. Emprestando maior facilidade ao uso da nova indumentária, acabei abrindo-a na frente, de alto a baixo, e guarnecendo-a com botões. Abri também a proteção sobre a face, de resto dispensável, para facilitar a respiração. Restou a da cabeça, como um capuz. Eu havia inventado a capa de chuva.

Então, desapontado, rendi um preito* de homenagem ao guarda-chuva — essa invenção extraordinária que jamais teria me ocorrido, imutável através dos séculos, objeto surrealista cuja origem se perde na noite dos tempos, obra de arte cuja perfeição é o testemunho do gênio criativo do homem.
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* Notas:
Cachimônia = mente .
Caranguejola = armação ou máquina pouco firme.
Despingolar-se = desandar, descambar.
Entupigaitei = causei embaraço.
Preito = manifestação de respeito.

Fonte:
Fernando Sabino. Deixa o Alfredo falar. Publicado em 1976.

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