segunda-feira, 13 de maio de 2024

Cassiano Ricardo (Poemas Escolhidos) = 6


DEPOIS DE TUDO

Mas tudo passou tão depressa.
Não consigo dormir agora.

Nunca o silêncio gritou tanto
nas ruas da minha memória.

Como agarrar líquido o tempo
que pelos vãos dos dedos flui?

Meu coração é hoje um pássaro
pousado na árvore que eu fui.
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DESEJO

As coisas que não conseguem morrer
Só por isso são chamadas eternas.
As estrelas, dolorosas lanternas
Que não sabem o que é deixar de ser.

Ó força incognoscível que governas
O meu querer, como o meu não-querer.
Quisera estar entre as simples luzernas
Que morrem no primeiro entardecer.

Ser deus — e não as coisas mais ditosas
Quanto mais breves, como são as rosas
É não sonhar, é nada mais obter.

Ó alegria dourada de o não ser
Entre as coisas que são, e as nebulosas,
Que não conseguiu dormir nem morrer.
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DISTRAÇÃO

Cansado de buscar na terra o que procuro,
em meio do caminho encontrei o homem puro:
"Não viste, ó lenhador feliz que estás cantando
no teu rancho de palha, à luz da tarde morta,
não viste se passou, nem sabes quando,
uma princesa pela tua porta?"

"Eu estava cortando a lenha, lá no mato,
e devido ao rumor das árvores no vento,
e ao barulho sem fim das águas no regato,
não ouvi passo algum, nem canto, nem lamento
que me ferisse o ouvido e me pusesse atento,
a não ser. . . o rumor das águas no regato
e o barulho sem fim das árvores no vento. . .
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DITIRAMBO DA PAZ

quero paz
não
de pás
de cal
nem de pas-
maceira

quero paz
de pás
ao ombro
paz viva
paz
que mantém
o homem
em pé
na pers-
pectiva
do advir.

paz
de sempre
viva
muito viva
que cada um
de nós
cultiva
no peito
homem da
rua
ou na faina
do eito
lutando por
uma
madrugada
definitiva
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“É TARDE, É MUITO TARDE”

I
Todas as horas se
resumem num minuto.
Os pés me ficam juntos,
conciliados.
Todos os meus caminhos
se encontram em um só.
E eu fico nu de tempo,
nu de espaço.

Fico sendo eu, só eu.

Então aceito a hora,
a única entre todas
no mundo coletivo
que só seria minha.
Terrivelmente minha.
Mais que a de haver nascido.
Mais que a do amor.

Atravesso o horizonte
dos meus pés com a terra.
A minha própria noite.
O meu auto-retrato.

Fico sendo eu, só eu.
Vejam bem que sou eu.

Mas agora já é tarde.

II

Gastei o meu futuro
em coisas que não fiz.

A tarde é quase humana
quando em mim pousa. A tarde
atrozmente enfeitada
de cores, ainda arde;
porém, já não me engana.
É tarde. É muito tarde.

Só haveria um remédio.
Era o de ter prestado
mais atenção à vida.
Era eu ter consultado
mais vezes o relógio
Era o eu ter querido
mais a ti do que quis.

Mas gastei meu futuro
em coisas que não fiz.

É tarde. É muito tarde.
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ELEGIA RÚSTICA

Nasci para viver no mato: o chão da selva
todo se enrelva de um tapete luxuriante!
A folhagem, que baila em cima, a cada instante,
é uma pelúcia toda verde que descobre
os ombros senhoriais da floresta arrogante.

Acordo. Pelos vãos da choça, a alva derrama
como em fitas de cor, seus cabelos de chama.
Rodopiando no vento o arvoredo frufrulha
vendo-se, pelos vãos, a montanha cerúlea
onde o sol escorreu, em laivos de ouro e cobre.

Na manhã tropical, borrifada de orvalho
e manchada de terra, ou nestes coloridos
caminhos que percorro a pé, sem agasalho,
parece que inauguro os meus cinco sentidos!
Há uma flor que me diz bom-dia em cada galho.

Ah! devo descender de algum Anacreonte
anônimo, de pés no chão, sapatos rotos,
que se nutriu de mel lírico e gafanhotos,
frutos tintos de sol, água pura de fonte,
satisfeito com o seu pequenino horizonte.
Não sei o que mais ame: água, frutos ou pássaros.

E então digo, ao meu eco: Ó Deus, ó estrela, ó vento,
eu vim buscar, aqui, um pouco de silêncio
para ver se ainda curo as feridas enormes
que a angústia de pensar me abriu no pensamento.

Não sei o que mais ame: água, frutos ou pássaros.
Só sei que sinto em mim o agreste encanto
de aqui viver, bebendo orvalho e ouvindo as coisas
as lindas coisas que me diz a alma confusa
toda enredada de cipós, do próprio mato:
o choro tagarela de um regato,
uma cigarra que cem vezes recomeça
sua clara canção intermitente
até ficar chorando escandalosamente. . .

E quando a noite vem, numerosa, selvagem,
a minha alma descansa em seus beijos eólios;
e pelos vãos da choça, através da folhagem,
são as estrelas a inocência dos meus olhos.

Fonte> Cassiano Ricardo. Vida e Obra. Disponível em https://www.fccr.sp.gov.br/portalcassianoricardo/#

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