Ele se pôs na fila, ao lado da minha. Calçava apenas um sapato. No outro pé, uma atadura suja e, na hora do hino, não cantou, mexeu a boca sem voz, enganando a professora que vigiava de régua nas mãos acompanhando as partituras.
– Meu guarda-pó tinha quatro botões do lado. Fora de meu irmão que trabalhava em farmácia e, como crescera. Fui seu herdeiro de roupas velhas por muito tempo.
Ele vendia remédios e aplicava injeções. Atendia um mundaréu de gente que procurava, porque tinha mãos leves que faziam das doloridas injeções uma picadinha de nada. E o fazia até nas prostitutas durante o dia, porque à noite, como era menor, não podia. Mas ele ia depois das seis, às escondidas, e ficava lá, nós quartos delas, depois das injeções, tomando guaraná! E só voltava para casa bem tarde, quando já estávamos dormindo. As vezes me trazia doce, às vezes só contava o que acontecera. Até das nádegas delas, tudo tintim por tintim, da cor das calcinhas, era legal. Animava-me nos sonhos de puberdade.
O menino do pé com pano sentou-se comigo na carteira dupla. Dividiríamos o tinteiro de tinta azul, e ali fizemos amizade. Perguntei-lhe sobre a atadura.
- Cortei numa lata — ele disse
- E dói?
- Não.
- Se não dói, por que não calça o outro sapato?
Ele não respondeu. Levantou-se com a bolsa nas mãos e foi se sentar sozinho no fundo da sala, emburrado. Baixou a cabeça, debruçou-se nela e ficou.
Não compreendi, mas pensei: "Que se..." (para não repetir nome feio que falava aos montes). Aí lembrei do meu irmão farmacêutico e fui ter com o novo colega. A raiva dele havia passado e ele sorriu quando me viu chegar, me dando beira no assento da sua carteira.
Bem baixinho lhe contei do meu irmão dizendo que se o corte no pé estivesse doendo ele poderia colocar remédio. Até daria um desconto, por ele ser meu amigo.
Meio acanhando, ele me puxou pelo braço, pôs a boca no meu ouvido e me fez jurar que não contaria o que eu iria escutar. Nem se eu precisasse morrer pelo silêncio. Arregalei os olhos e, preocupado, fiz sim com a cabeça.
O coração bombeou rápido seus tucs-tucs, me fazendo compreender que um segredo, quando segregado, acelera o coração. Tem dentro de si uma coisa que batuca, fazendo a cara corar. E escorrer suor também. Sem falar no frio das mãos.
Então ele confidenciou: não tinha machucado algum no pé... só disfarçava...
- Por que então usa esse curativo?
A resposta foi a nunca imaginada: seu irmão gêmeo estudava em outra escola, no mesmo horário. E nenhuma aceitava aluno sem sapato.
Mas, com ao menos um, sim.
Fonte: Renato Benvindo Frata. Fragmentos. SP: Scortecci, 2022.
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