sábado, 25 de maio de 2024

José Gomes Ferreira (A Festa ficou-me barata)

Por mais que puxe pela cabeça, ainda não consegui compreender como coube tanto tempo em poucos segundos.

Com efeito, no intervalo que vai desde esta pergunta lacônica “Lápis?” à prontidão da resposta afirmativa, tive a acuidade surpreendente de descobrir que o meu interlocutor, dono da capelista (loja de quinquilharias), se chamava Jerônimo, ostentava aquela carranca de altivez solene e morrera-lhe há pouco um filho tuberculoso, pelo qual andava de luto na vestimenta e nos olhos.

Há momentos assim: em que o tempo se dilata e, bruscamente, não sei por qual misterioso toque de atmosfera, os atos mais banais da vida se tornam extraordinários. Comprar lápis, por exemplo. É extraordinário estar em cima de uma bola que anda à roda do sol, e comprar lápis ao sr. Jerônimo, ali, de pé, atrás do balcão — alto, vasto e fastiento.

— Que marca prefere V. Exa.?

Respondi qualquer coisa dúbia de propósito para me esconder no silêncio de não haver resposta.
Na lojinha entrara outra freguesa: uma senhora de meia idade, amargurada de profissão, boca sempre em molde de suspiro e olhos tíbios, onde até a inveja de viver soçobrara já.

Lacrimejava:

— A minha sobrinha está muito ruinzinha... E com 19 anos, calcule! Tão nova e já tuberculosa como o seu filho...

O sr. Jerônimo, a alinhar as caixas dos lápis, abanou a cabeça agastado da comparação que lhe ofendia não sei que estranho sentimento aristocrático de orgulho paterno:

— Como a de meu filho, não, minha senhora. Há tuberculoses e tuberculoses... E a do meu filho era galopante. E que galopante! O médico, pelo menos, disse-me que nunca tinha visto outra assim. Que galopante!

E a sua voz resmungava no tumulto cavo de quem nos queria sugerir o tropear aflito de um bicho sangrento de escamas negras a devorar espaço, a devorar vida, a devorar alma, a apagar olhos com as patas...

— Que galopante!

Depois, desenhou com as mãos o gesto redondo do voo dos corvos sobre um campo de matança:

— Tive tão pouca sorte com os filhos que nem calcula! Nasceram todos fraquinhos do peito e por mais bifes que lhes desse nunca conseguiriam arribar. Desde miúdos, bifes e mais bifes. E de lombo! Cada bifada de meter respeito. “Ó homem — dizia a minha mulher (coitadinha! uma autêntica mártir dos filhos!) — ó homem: olha que a gente se arruina com tanta carne! Já viste a conta do açougueiro?” “Deixá-lo! Paga e não bufes. Chega-lhes bifes! Não poupes na bifada!” Mas, qual! Todos uns fracotes, uns magricelas.

E numa conclusão em que a melancolia da voz acentuava mais de força vaidosa o volume do corpanzil espesso: – Nenhum saiu a mim!

Seguiu-se um, curto silêncio, perturbado apenas por aquele raio de sol que vinha da vitrine e atravessava a loja vestido de poeira.

A senhora de meia-idade gozou, então, a tristeza de exclamar:

— Coitadinho! Não faz ideia do desgosto que senti quando soube da morte do seu filho. Infelizmente não pude assistir ao enterro. Até lhe queria pedir desculpas...

Como ela se delícia a fingir ternura! Não lhe deve restar outro prazer no mundo senão este de sorver as desgraças alheias com a cara pintada de alma, aos beijinhos no pó-de-arroz lívido das senhoras viúvas pé ante pé nas veladas dos mortos, a cochichar nas visitas de pêsames em todos os serões lúgubres, onde pode ser ridícula à vontade sem que ninguém lhe estranhe a velhice, porque as rugas até ajudam a exprimir melhor a dor, sobretudo a que ninguém sente, mas todos gostam de ver estampada nas faces dos outros. E o lápis? Esperem! Eu estou a comprar lápis! Preciso de formular uma opinião qualquer a respeito dos lápis:

— Não tem outros mais moles?

O sr. Jerônimo, sem se dignar reparar em mim, tirou da prateleira uma nova caixa azul que pousou no balcão.

E, sempre voltado para a freguesa, a pôr uma impossibilidade física entre aquela pobre mulher insignificante e o seu orgulho em que resvalavam todas as desculpas:

- Não assistiu, nem podia ter assistido, minha senhora, porque o enterro não se realizou em Lisboa, mas nas Caldas, na terra dos avós do pequeno. Coitados! Faziam tanto gosto em que o neto se enterrasse ao pé deles! Não sei bem para quê... Para lhe cuidarem da cova, suponho eu. E regarem-lhe as flores... Mania de velhos!

A sua voz tornou-se de súbito singular: mistura sombria de indiferença e petulância com um toquezinho sinistro de alegria comercial de quem atira dinheiro imaginário à cara de dois imbecis:

— E ainda bem, porque dessa maneira poupei muito dinheiro! Se o sepultasse no Alto de S. João, sabe por quanto me sairia a brincadeira? Aí por uf! 5 a 9 contos!... Quanto a trasladação nem falar nisso é bom... Era coisa para 16 contos bem puxados... Assim a festa ficou-me barata!

— Como? — balbuciou a senhora de meia-idade, sem entender, perdida naquele labirinto de contos e de festas, de confusão com o cadáver de um filho.

— Oh! foi tudo muito bem calculado! — explicou o sr. Jerônimo com voz brilhante de comércio inútil. — Foi tudo muito bem calculado!...

Sim, estes lápis ainda me parecem duros. Quero outros, ouviste? Mostra-me outros. Mas, nada de pressas, hein? Tira devagar as caixas da prateleira. Mais devagar, ainda. Dá-me tempo de ouvir a história até o fim.

— Quando vi o meu filho muito mal, chamei o médico à parte e perguntei-lhe: “Então, doutor? Diga-me, de homem para homem: ainda tem esperanças de o salvar?” O doutor olhou-me contristado e confessou-me: “Está por pouco. Dura no máximo três dias.” Três dias? Meu Deus! Só três dias? Fiquei aflito como pode imaginar. Mas, depois de refletir maduramente no caso, tomei uma resolução. O melhor era pegar no pequeno e levá-lo o mais depressa possível para as Caldas enquanto estivesse vivo, para depois evitar a trasladação. E assim fiz. A mãe ainda choramingou. Que era uma barbaridade, que era isto, que era aquilo... Mas que percebem as mulheres de negócios?

“Psiu! Claudina! Quem manda cá em casa sou eu!” Metia-a na ordem com dois berros e lá partimos para as Caldas. Coitadinho! Mal podia sustentar-se nas pernas. Tão definhado! Só tinha pele e osso. Conseguimos vesti-lo à custa de injeções de cânfora, para aguentar o coração, e mesmo assim com mil cuidados, parando a cada momento, não fosse o diabo tecê-las... Por fim, de gravata à roda do pescoço e a dançar numa vestimenta larguíssima, lá o instalamos numa carruagem de primeira — coitadinho! — com uma barba tão grande, tão grande, que até metia medo!... Quando chegamos às Caldas, ia branco como um lençol e quase que não respirava. O avô, assim que o viu, teve um baque, fez-se muito pálido e perguntou-me em voz baixinha: “está morto?”

E o sr. Jerônimo repetia, numa voz ciciante, como filtrada através da fluidez dos cristais do sonho: “está morto?”

— E estava? interrogou, ansiosa, a senhora de meia-idade.

— Não, não estava. Mandei logo chamar um médico para me livrar de responsabilidades... Não estava... Só faleceu no dia seguinte, coitadinho!

Calou-se.

Entrementes tinham entrado na lojinha várias pessoas em compras de fitas de linho, fósforos, carrinhos de linhas, mais isto, mais aquilo, e todos pareciam ouvir aquela história com a naturalidade normal de haver vida todos os dias. Só eu continuava a achar tudo extraordinário.

— Quanto é?

— Tanto.

Enquanto procurava no bolso o dinheiro para pagar os lápis, passou-me repentinamente pela cabeça esta ideia estapafúrdia: e se eu desse um salto, a pés juntos, sobre o balcão, deitasse as mãos ao pescoço do sr. Jerônimo, e o censurasse numa voz fria de boca de cadáver: “quem julgas tu que eu sou, seu Malandro? Um freguês como os outros, não? Um palerma qualquer que quer lápis moles, bem? Pois enganas-te! Sou um espião, ouviste? Um espião disfarçado. E vou espalhar com a tua história relés nos jornais, com nomes e tudo, sob este título: Sensacional: um malandro macabro que trasladou o cadáver do filho em vida! Percebeste?”

Mas, em vez disto, sorri-lhe. E para completar a desorientação, quanto o ar, Jerônimo me entregou os lápis embrulhados (a festa ficou-me barata!) pareceu-me ver-lhe nos olhos uma ternura qualquer de lágrimas... uma névoa funda de dor.., um brilho de comoção secreta.., ou seria tudo ilusão dentro de mim?

Paguei e saí da capelista.

Cá fora, as ruas de sempre, o sol de sempre, as pedras de sempre, as casas de sempre, os homens de sempre, o espanto de sempre. Tudo normal, tudo sonolentamente normal.

Apenas na esquina do costume, uma velha, feia de miséria, carranca de cera com pelos, pedia esmola para o filho idiota, de olhos enormemente parados, aos guinchos dentro dum carro de madeira:

— Ó meu rico senhor: dê-me uma esmolinha para o meu filhinho que é toda a paixão da minha vida! Dê-me...

Fixei-a com o olhar cúmplice de quem sabe perfeitamente o que valem essas grandes paixões da vida. E dei-lhe dois tostões, (A festa ficou-me barata!)

Tudo normal, tudo absurdamente normal. Só o pobre monstro, no carrinho, continuava a soltar sons inarticulados, e a mirar e a remirar as mãos, no espanto de haver mãos.

Fonte: Diaulas Riedel. Maravilhas do Conto Português. Publicado em 1958.

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