sábado, 19 de fevereiro de 2011

Sérgio Ferreira da Silva (Caderno de Trovas)


A brisa traz, de antemão,
seu perfume pela rua...
e eu chego a ter a impressão,
de que é você que flutua!

A inocência, em teu semblante
num contraste, se desfaz,
por ser a prova flagrante
de que me roubaste... a paz!

A mesma brisa que à noite,
sugere encanto e poesia
pode ser, também, o açoite
dos que não têm moradia.

Amigo é aquele artesão
que, sem receios, lapida -–
com o cinzel do perdão
as pedras brutas... da vida!

A sogra entrega o genrinho
ao faminto canibal:
“Cuida dele com carinho...
mas... vê se tá bom de sal!”

À solidão condenada,
na Praça da Eternidade,
minha súplica é chamada
de Monumento... à Saudade!

Choveu... e agora, a enxurrada
leva as coisas, feito alguém
que, ao partir, numa alvorada,
levou minha alma... também!

Confusão na madrugada,
que o bebum transforma em drama:
atira... na namorada
e leva a sogra pra cama !

Desejo é o jovem arrais
que, em vez das embarcações,
suplica encontrar um cais
para ancorar ilusões!

Em sua breve existência,
não pode a brisa supor
que, trazendo a tua essência
me traz a essência do Amor...

É pescador de primeira...
mas, antes que alguém se queixe,
leva no bolso a carteira
e o fone do disque-peixe!

Essa lágrima que corta
teu semblante, sem favor,
é uma gota, mas comporta
um Oceano... de dor!

Essa ternura que exalas,
e os meus receios acalma,
faz um vôo sem escalas
da tua pele... à minh’alma!

Este teu querer incerto,
imprevisível demais,
fez de minh’alma um deserto,
com chuvas... ocasionais.

É tanta fome que eu sinto
(parece coisa de louco!),
que eu só vou ficar faminto
depois de comer um pouco!

Eu suplico, a todo instante,
por tua volta... é verdade.
Mas, a súplica constante
não é súplica... é Saudade!

Faminto, não vi, querida,
talvez, por eu ser tão moço,
que eras fruta proibida
e a tua mãe... o caroço!

Meu destino não se escreve
à força de um vento forte:
teu olhar é a brisa leve
que determina meu norte!

Não vem me chamar de omisso,
porque a culpa não foi minha:
levei o anzol... o caniço
e só me esqueci... da linha!

No compasso das batidas,
o meu coração suplica,
pelo bem de nossas vidas:
Fica...ca! Fi...ca! Fi...ca! Fi...ca!

No curso de nossas vidas,
por diferentes estradas,
nossas almas, distraídas,
continuam de mãos dadas!

Nos sonhos, minha alma alcança
o infinito... e, se estou só,
volto aos tempos de criança
e aos braços... de minha avó!

No velório, a confusão
quando o genro, num rompante,
chegou com pinga, limão,
cerveja e refrigerante.

Numa foto digital,
teu semblante, em luz e cor,
é saudade virtual,
no microcomputador...

O chão batido,... a porteira...
o teu semblante... e o destino...
são os marcos da fronteira
entre a saudade... e um menino!

Para pescar tubarão,
qual foi a isca que usaste?”
“Um pouco de diversão:
minha sogra... num guindaste!”

Quando o pranto fez morada
no teu semblante grisalho,
trouxe a imagem da geada,
cobrindo as gotas de orvalho.

Receio o destino incerto
de perder-me em teus encantos
e tornar-me um livro aberto,
esquecido.. pelos cantos.

Receio que a solidão,
esta falsa liberdade,
faça do meu coração
um escravo... da saudade.

São de brisa os teus carinhos...
teus beijos são vendavais...
e eu me perco em teus caminhos,
aguardando... os temporais!

Teu receio, que dispensa
meu querer e meu carinho,
é trilha fechada e densa...
mas eu encontro o caminho!

Tô faminto... e não tem bóia!
Eu num guento esse jejum!!!
Fome Zero??? Uma pinóia:
minha fome... é MENOS UM!

Tua alma desperta em mim
tanta calma e tanto ardor,
que, se o amor não for assim,
eu mudo o nome do amor!

Um pescador esquisito,
num gesto desesperado,
se revela, ao dar um grito:
“HOJE EU PESCO... UM NAMORADO!!!”

Lima Barreto (O Único Assassinato de Cazuza)


HILDEGARDO BRANDÂO, conhecido familiarmente por Cazuza, tinha chegado aos seus cinqüenta anos e poucos, desesperançado; mas não desesperado. Depois de violentas crises de desespero, rancor e despeito, diante das injustiças, que tinha sofrido em todas as coisas nobres que tentara na vida, viera-lhe uma beatitude de santo e uma calma grave de quem se prepara para a morte.

Tudo tentara e em tudo mais ou menos falhara. Tentara formar-se, foi reprovado; tentara o funcionalismo, foi sempre preterido por colegas inferiores em tudo a ele, mesmo no burocracismo; fizera literatura e se, de todo, não falhou, foi devido à audácia de que se revestiu, audácia de quem “queimou os seus navios”. Assim mesmo, todas as picuinhas lhe eram feitas. Às vezes, julgavam-no inferior a certo outro, porque não tinha pasta de marroquim; outras vezes tinham-no por inferior e determinado “antologista”, porque semelhante autor havia, quando “encostado” ao consulado do Brasil, em Paris, recebido como presente do rei do Sião, uma bengala de legítimo junco da índia. Por essas e outras, ele se aborreceu e resolveu retirar-se da liça. Com alguma renda, tendo uma pequena casa, num subúrbio afastado, afundou-se nela, aos quarenta e cinco anos, para nunca mais ver o mundo, como o herói de Jules Verne, no seu “Náutilus”.

Comprou os seus últimos livros e nunca mais apareceu na Rua do Ouvidor. Não se arrependeu nunca de sua independência e da sua honestidade intelectual. Ao cinqüenta e três anos, não tinha mais um parente próximo junto de si. Vivia, por assim dizer, só, tendo somente a seu lado um casal de pretos velhos, aos quais ele sustentava e dava, ainda por cima, algum dinheiro mensalmente.

A sua vida, nos dias de semana, decorria assim: pela manhã, tomava café e ia até a venda, que supria a sua casa, ler os jornais, sem deixar de servir-se, com moderação, de alguns cálices de parati, de que infelizmente abusara na mocidade. Voltava para a casa, almoçava e lia os seus livros, porque acumulara uma pequena biblioteca de mais de mil volumes. Quando se cansava, dormia. Jantava e, se fazia bom tempo, passeava a esmo pelos arredores, tão alheio e soturno que não perturbava nem um namoro que viesse a topar.

Aos domingos, porém, esse seu viver se quebrava. Ele fazia uma visita, uma única e sempre a mesma. Era também a um desalentado amigo seu. Médico, de real capacidade, nunca o quiseram reconhecer porque ele escrevia “propositalmente” e não – “propositadamente”, “de súbito” e não – “às súbitas”, etc., etc. Tinham sido colegas de preparatórios e, muito íntimos, dispensavam-se de usar confidências mútuas. Um entendia o outro, somente pelo olhar.

Pelos domingos, como já foi dito, era costume de Hildegardo ir, logo pela manhã, após o café, à casa do amigo, que ficava próximo, ler lá os jornais e tomar parte no “ajantarado”, da família. Naquele domingo, o Cazuza, para os íntimos, foi fazer a visita habitual a seu amigo doutor Ponciano. Este comprava certos jornais; e Hildegardo, outros. O médico sentava-se a uma cadeira de balanço; e o seu amigo numa dessas a que chamam de bordo ou de lona. De permeio, ficava-lhes a secretária. A sala era vasta e clara e toda ela adornada de quadros anatômicos. Liam e depois conversavam. Assim fizeram, naquele domingo. Hildegardo disse, ao fim da leitura dos quotidianos:

– Não sei como se pode viver no interior do Brasil!

– Porque?

– Mata-se à toa por dá cá aquela palha. As paixões, mesquinhas paixões políticas, exaltam os ânimos de tal modo, que uma facção não teme eliminar o adversário e por meio do assassinato, às vezes o revestindo da forma mais cruel. O predomínio, a chefia da política local é o único fim visado nesses homicídios, quando não são a questões de família, de herança, de terras e, às vezes, causas menores. Não leio os jornais que não me apavore com tais notícias. Não é aqui, nem ali; é em todo o Brasil, mesmo às portas do Rio de Janeiro. É um horror! Além desses assassinatos, praticados por capangas – que nome horrível! – há os praticados pelos policiais e semelhantes nas pessoas dos adversários dos governos locais, adversários ou tidos como adversários. Basta um boquejo, para chegar uma escolta, varejar fazendas, talar plantações, arrebanhar gado, encarcerar ou surrar gente que, pelo seu trabalho, devia merecer mais respeito. Penso, de mim para mim, ao ler tais notícias, que a fortuna dessa gente que está na câmara, no senado, nos ministérios, até na presidência da república se alicerça no crime, no assassinato. Que acha você?

– Aqui, a diferença não é tão grande para o interior nesse ponto. Já houve quem dissesse que, quem não mandou um mortal deste para o outro mundo, não faz carreira na política do Rio de Janeiro.

– É verdade; mas, aqui, ao menos, as naturezas delicadas se podem abster de política; mas, no interior, não. Vêm as relações, os pedidos e você se alista. A estreiteza do meio impõe isso, esse obséquio a um camarada, favor que parece insignificante. As coisas vão bem; mas, num belo dia, esse camarada, por isso ou por aquilo, rompe com o seu antigo chefe. Você, por lealdade, o segue; e eis você arriscado a levar uma estocada em uma das virilhas ou a ser assassinado a pauladas como um cão danado. E eu quis ir viver no interior! De que me livrei, santo Deus!

– Eu já tinha dito a você que esse negócio de paz na vida da roça é história. Quando cliniquei, no interior, já havia observado esse prurido, essa ostentação de valentia de que os caipiras gostam de fazer e que, as mais das vezes, é causa de assassinatos estúpidos. Poderia contar a você muitos casos dessa ostentação de assassinato, que parte da gente da roça, mas não vale a pena. É coisa sem valia e só pode interessar a especialistas em estudos de criminologia.

– Penso – observou Hildegardo – que esse êxodo da população dos campos para as cidades, pode ser em parte atribuído à falta de segurança que existe na roça. Um qualquer cabo de destacamento é um César naquelas paragens – que fará então um delegado ou subdelegado? É um horror!

Os dois calaram-se e, silenciosos, se puseram a fumar. Ambos pensavam numa mesma coisa: em encontrar remédio para um tão deplorável estado de coisas. Mal acabavam de fumar, Ponciano disse desalentado:

– E não há remédio.

Hildegardo secundou-o.
– Não acho nenhum.

Continuaram calados alguns instantes, Hildegardo leu ainda um jornal e, dirigindo-se ao amigo, disse:
– Deus não me castigue, mas eu temo mais matar do que morrer. Não posso compreender como esses políticos, que andam por ai, vivam satisfeitos, quando a estrada de sua ascensão é marcada por cruzes. Se por ventura matasse creia que eu, a que não tem deixado passar pela cabeça sonhos de Raskólnikoff, sentiria como ele: as minhas relações com a humanidade seriam de todo outras, daí em diante. Não haveria castigo que me tirasse semelhante remorso da consciência, fosse de que modo fosse, perpetrado o assassinato. Que acha você?

– Eu também; mas você sabe o que dizem esses políticos que sobem às alturas com dezenas de assassinatos nas costas?

– Não.

– Que todos nos matamos.

Hildegardo sorriu e fez para o amigo com toda a serenidade:
– Estou de acordo. Já matei também.

O médico espantou-se e exclamou:
– Você, Cazuza!

– Sim, eu! – confirmou Cazuza.

– Como? Se você ainda agora mesmo...

– Eu conto a coisa a você. Tinha eu sete anos e minha mãe ainda vivia. Você sabe que, a bem dizer, não conheci minha mãe!

– Sei.

– Só me lembro dela no caixão quando meu pai, chorando, me carregou para aspergir água benta sobre o seu cadáver. Durante toda a minha vida, fez muita falta. Talvez fosse menos rebelde, menos sombrio e desconfiado, mais contente com a vida, se ela vivesse. Deixando-me ainda na primeira infância, bem cedo firmou-se o meu caráter; mas, em contrapeso, bem cedo, me vieram o desgosto de viver, o retraimento, por desconfiar de todos, a capacidade de ruminar mágoas sem comunicá-las a ninguém – o que é um alívio sempre; enfim, muito antes do que era natural, chegaram-me o tédio, o cansaço da vida e uma certa misantropia.

Notando o amigo que Cazuza dizia essas palavras com emoção muito forte e os olhos úmidos, cortou-lhe a confissão dolorosa com um apelo alegre:
– Vamos, Carleto; conta o assassinato que você perpetrou.

Hildegardo ou Cazuza conteve-se e começou a narrar:
– Eu tinha sete anos e minha mãe ainda vivia. Morávamos em Paula Matos... Nunca mais subi a esse morro, depois da morte de minha mãe...

– Conte a história, homem! – fez impaciente o doutor Ponciano.

– A casa, na frente, não se erguia, em nada, da rua; mas, para o fundo, devido à diferença de nível, elevava-se um pouco, de modo que, para se ir ao quintal, a gente tinha que descer uma escada de madeira de quase duas dezenas de degraus. Um dia, descendo a escada, distraído, no momento em que punha o pé no chão do quintal, o meu pé descalço apanhou um pinto e eu o esmaguei. Subi espavorido a escada, chorando, soluçando e gritando: “Mamãe, mamãe! Matei, matei.. .“ Os soluços me tomavam a fala e eu não podia acabar a frase. Minha mãe acudiu, perguntando: “O que é, meu filho! Quem é que você matou?” Afinal, pude dizer: “Matei um pinto, com o pé”. E contei como o caso se havia passado. Minha mãe riu-se, deu-me um pouco de água de flor e mandou-me sentar a um canto: “Cazuza, senta-te ali, à espera da polícia.” E eu fiquei muito sossegado a um canto, estremecendo ao menor ruído que vinha da rua,
pois esperava de fato a polícia. Foi esse o único assassinato que cometi. Penso que não é da natureza daqueles que nos erguem às altas posições políticas, porque, até hoje, eu...

Dª Margarida, mulher do doutor Ponciano, veio interromper-lhes a conversa, avisando-os que o “ajantarado” estava na mesa.

Fonte:
Revista Sousa Cruz, Rio, fevereiro, 1922.

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n.131)


Uma Trova Nacional

Ganha tão pouco o Ademar
na profissão de engraxate,
que a mulher, para ajudar,
anda fazendo biscate...
(ANA MARIA MOTA/RJ)
(Nota: A Trova acima deixou o Ademar "encafifado" )
.
Uma Trova Potiguar

Dia do jegue é lazer
por decreto criado a esmo:
quem não tem o que fazer
homenageia a si mesmo.
(CELSO DA SILVEIRA/RN)

Uma Trova Premiada

2008 > Bandeirantes/PR
Tema > TRABALHO > Menção Especial

O trabalho é punição,
uma herança do passado...
Deus quis castigar Adão,
e sobrou pro nosso lado!...
(RENATO ALVES/RJ)

Simplesmente Poesia

Ialmar Pio Schneider (RS)
VENTO DO MAR

Vento que sopras furibundo
e vens meus sonhos despertar,
as tristezas de todo o mundo
parece que trazes do mar...

Ouvindo o lamento profundo
sempre constante a marulhar,
quedo-me triste, me confundo
co’a voz misteriosa do mar...

Altas horas, cada segundo
teimas o meu corpo abraçar,
quando em reflexões me aprofundo
para obter segredos do mar...

Uma Trova de Ademar

Matuto “fraga a muié”
na cama com o Ricardão,
e, pra manter a honra em pé
toca fogo no colchão.
(ADEMAR MACEDO/RN)

...E Suas Trovas Ficaram

Todo livro, quando aberto,
é pólen, é flor, é fruto…
fechado: é sombra, é deserto,
é silêncio, é campa, é luto.
(CYRO ARMANDO CATTA PRETA/SP

1922-2010)

Estrofe do Dia

Nem sei os anos que tem
o meu velho avô de aço,
talvez já passe de cem
janeiros no espinhaço;
quando chega de um passeio,
fica naquele aperreio
se passa uma noite só;
tira um quadro da parede
faz amor dentro da rede
no retrato de vovó!
(OTACÍLIO BATISTA/PE)

Soneto do Dia

– Luiz Leitão/PE –
NA LOJA.

Seguida da vovó, meiga e bonita,
ela entrou numa loja, no armarinho...
– Tem fita de cetim azul-marinho?
Qual o preço? – perguntou ela, catita.

Um beijo cada metro, senhorita!
Respondeu-lhe o caixeiro com carinho.
– É muito caro, mas, enfim, mocinho,
corte-me doze metros desta fita!

Já se sabe: o caixeiro como um raio,
cortava a fita quase num desmaio
sem ter sequer da tesourinha dó.

– Pronto, formosa! O pagamento agora...
E a moça lhe responde sem demora:
– Adeus! Quem paga as compras é a vovó...

Fonte:
Ademar Macedo

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Mariinha Mota (Caderno de Trovas)


Mesmo que a mágoa te açoite,
não te entregues ao sofrer,
pois o fim de cada noite
traz sempre um amanhecer.

Vede: o rio de ondas de ouro,
vindo de plagas amenas,
foi no próprio nascedouro
um fiozinho de água apenas...

Nunca tente amaldiçoar
todo o vozerio alheio.
De gente má a gritar
o nosso mundo está cheio.

Se guardaste com esperança
muitas riquezas humanas,
reparte tua abastança
aos que gelam nas choupanas.

Aproxima-te do bem,
procura-o com decisão,
e verás fulgir, além,
a suprema perfeição

Reparte, com amizade,
a prece, a comida, as vestes.
São juros da eternidade.
São dividendos celestes.

Os laços indestrutíveis,
que reúnem corações,
são, geralmente, invisíveis:
nascem só das emoções!

A bondade é flor que encerra,
no mundo, o maior troféu,
daqueles que, aqui na Terra,
vivem voltados pro Céu.

Nasceu na Terra a Bondade,
por ordem do Criador.
Tem por mãe a Caridade
e tem como pai o Amor.

Eu procuro, com freqüência,
desparzir o bem, a luz.
Sei que o fruto dá notícia
da árvore que o produz.

Quando vejo um passarinho
voltando para o seu ninho,
sinto uma dor muito aguda:
saudade do meu filhinho.

Vi, agora, um beija-flor
beijando uma linda rosa!
Lembrei-me, com grande dor,
do meu filhinho, tão prosa!

A diferença do olhar,
do homem que ama de verdade,
é como a brisa do mar
logo após a tempestade...

Recebe de alma serena
todo o golpe que te doa.
Opõe à voz que condena
tua paz serena e boa.

Como é bom sentir o vento,
ver árvores generosas,
ver astros no firmamento,
ouvir canções, ver as rosas.

Sempre, em tudo, o morticínio,
vê o homem bruto, em ânsia;
tendência para o extermínio
é suprema ignorância.

Há tanta gente vibrando
para que a vida me vença
que às vezes, fico pensando:
Ah! Se não fosse esta crença...

Se neste mundo mesquinho
nos tratarem com motejo,
tornar-nos-emos arminho
aproveitando este ensejo.

Toda esperança é qual lume
cheio de luz e calor,
é o mais dulcido perfume
que minora a nossa dor

Guarda no teu coração
a fé viva e a esperança
é da resignação
que nasce toda confiança.

Sempre que o véu da tristeza
ensombrar teu coração,
repara, quanta beleza
está ao alcance da mão!

Os laços indestrutíveis
que reúnem corações,
são, geralmente, invisíveis
nascem só das emoções!

És, Brasil, meu ar, meu pão,
o meu templo, a minha escola,
és Pátria do coração
que Deus me deu por esmola.

Ó minha alma insatisfeira,
na escuridão que te alcança,
ante a noite contrafeita,
ergue a tocha da esperança!

Fontes:
Jose Ouverney http://www.falandodetrova.com.br
http://mariinhamotapoeta.blogspot.com/

Mariinha Mota (Livro de Poesias)


ESTE NOSSO AMOR

Então, fiz desse amor que me inspiraste um dia,
a escada que Jacó, em sonhos, viu surgir;
e que não tinha fim, ligando a Terra fria,
aos céus de luz e paz, de sonhos a luzir.

Sinto que desse afeto imenso e tão sublime,
só compreendemos nós a única razão...
É um verdadeiro amor, ternura que redime.
Estejas longe ou perto és minha adoração.

Pensando só em ti componho os meus poemas,
que traduzem pureza e confiança supremas,
e partem de minha alma como um longo grito.

Sou feliz por te amar. Todo o meu pensamento
quer fruir desse amor, que é paz e que é tormento,
e buscar para nós as luzes do infinito.

ESSE TEU OLHAR

Esse teu olhar tão terno que eu reclamo,
desejando que seja todo meu,
é uma jóia tão rara! Eu o proclamo
ser presente do Céu que Deus me deu.

Ao império desse olhar, enlanguecida,
encontro mil belezas de mil mundos,
pois ele transformou a minha vida
com um amor dos mais nobres e profundos.

Esses olhos bondosos que eu venero,
que admiro com alma e tanto quero,
só me ensejam momentos de venturas.

Teu pulcro olhar, que tanta luz encerra,
são dois faróis guiando-me na Terra,
envolvendo-me em ondas de ternuras!

SOMENTE EU

Esta ansiedade enorme, este fascínio louco
que eu desperto em teu ser - e disto estou consciente -
não nasceu nesta vida. Um milênio é bem pouco
para consolidar esta atração fremente.

Não é só, pois, biológico, este ardor supremo
quando nós pressentimos um do outro a presença.
Nosso amor transcendeu o encantamento extremo
e ele é para nós a luz de toda a crença.

Neste mundo, ninguém, por mais força que faça
desunirá nossa alma no tempo que passa
já que este nosso amor é feito de arrebol.

Só eu posso estancar a tua sede de afeto.
Só eu posso acalmar teu coração inquieto.
Sei que sou, somente eu, o teu dia de sol.

VATE GLORIOSO

Viveu na Terra um sonho eterno de beleza
que palpitava, sempre, em todo o seu espírito,
nas sínteses de amor da humana natureza,
anelava buscar as luzes do infinito.

Um saltério divino, cérebro fecundo,
ornou a "Flor do Lácio" com acordes supremos,
deixando-nos, também, um conceito profundo:
"Amar ainda mais a terra em que nascemos."

Príncipe dos Poetas, nobre brasileiro,
há cem anos fulgiu na Pátria do Cruzeiro,
alcançando, entre nós, merecido destaque.

Esse que tanto amou a língua portuguesa,
cantando-a em seus versos de nímia beleza,
é Olavo Braz Martins dos Guimarães Bilac!

ASCESE

Vim, através do todo de elementos,
dos eternos princípios embrionários,
saltando das matérias cósmicas...
Produto telúrico do mundo,
gérmen fui em expedições grandevas,
até ganhar na solidão da Terra
o princípio de impulsos e instintos
com a face de gorila.
Pensei, senti, chorei. Mas, ai!
A dor terrível lavrando esta minha alma,
laboriosa operária iluminando a evolução dos evos,
no emaranhado das lutas cognitivas.
Doridas algemas torturam a mente,
penumbra terrena nas grades do horror.
Surgiu o remorso!
Simbiose do mal, de dor e tristeza.
Hoje, sinto o Além dentro do meu ser.
Sou um vulcão de emoções!
Quanta melodia na mente!
Quero ser perfume.
Quero ser essência rara no Espaço infinito.

PIQUETE

Piquete, tua natureza
é poema de singeleza,
ornamentada de flores,
embalsamada de olores,
que tais encantos resume,
cheios de luz e perfume!

Piquete, sempre eu quisera,
em perene primavera,
unir-te toda à poesia
e à linda polifonia.
És do Brasil um florão
que merece saudação

Fonte:
http://mariinhamotapoeta.blogspot.com/

Mariinha Mota (1930 – 2011)


Maria Augusta Beraldo Leite Mota nasceu em Piquete no dia 18 de fevereiro de 1930, filha de Horácio Pereira Leite e Maria de Lourdes Beraldo Leite. Faleceu em 26 de janeiro de 2011.

Professora, poetisa, trovadora, cronista, romancista, historiadora, jornalista, biógrafa.

Nasceu Maria - Maria Augusta Beraldo Leite. Maria Augusta tornou-se Mariinha e assim ficou sendo por toda a sua vida: Mariinha do Horácio; depois, Mariinha do Geraldo; mais adiante, professora e poetisa Mariinha Mota.

Saída das faldas da Mantiqueira, Mariinha Mota cresceu através de seus versos e de sua arte, impulsionada apenas pela força de sua inteligência e sensibilidade. Voou Brasil afora nas asas de suas rimas.

Filha de Horácio Pereira Leite, fazendeiro e chefe político do Vale do Paraíba, em São Paulo, membro de tradicional família de cafeicultores da região e de sua segunda esposa, Maria de Lourdes Alves Beraldo, Mariinha nasceu de um amor temporão e como tal foi adorada e mimada pelo pai.

Horácio Pereira Leite nasceu em Bananal, SP, casando-se em primeiras núpcias, com Corina Jardim, também de tradicional família do norte fluminense. O casal teve seis filhos, todos Pereira Leite: Maria, José, Paulo, Irtes, Haroldo e Moema.

O declínio da cafeicultura no Vale do Paraíba fez com que Horácio diversificasse seus negócios e se dedicasse à pecuária.

Além de fazendeiro, Horácio possuiu fábrica de refrescos, açougue, restaurante, olaria e foi proprietário do primeiro jornal da cidade de Piquete: o quinzenário "Sentinella", que iniciou sua circulação em 18/09/1927, tendo como redator o Prof. José Ribeiro da Silva. Juiz de Paz, delegado, dono de terras e gado, Horácio foi o doador dos terrenos do cemitério de Piquete e ajudou a construir ruas e casas da cidade que então se formava.

Dois de seus descendentes herdaram-lhe a veia política, tornando-se prefeitos de Piquete: seu neto José Armando de Castro Ferreira e seu filho Luiz Carlos Beraldo Leite. Enviuvando, Horácio casou-se com a jovem Maria de Lourdes Alves Beraldo; tão jovem era a noiva, que possuía a mesma idade de Maria, sua filha mais velha. Com ela, Horácio viveu um grande amor, tornando-a a pessoa mais importante de sua vida. O mundo era pequeno para que ele o pusesse aos pés de sua adorada e de seus filhos, dos quais Mariinha era a primogênita.

Maria de Lourdes descendia, através de seu pai José Alves Beraldo, do clã Beraldo, do Sul de Minas. Sua mãe, Maria Augusta Alves Beraldo, era natural de Guaratinguetá, SP e falecera quando Lourdes contava apenas nove anos de idade, deixando oito filhos: Ovídio, Ormindo, Carlos, José, Lourdes, Álvaro, Messias e Josepha, todos Alves Beraldo. Maria de Lourdes educou-se no Colégio do Carmo, em Guaratinguetá, onde sua mãe também estudara e pertencera às primeiras turmas deste estabelecimento de ensino. Saindo do Colégio do Carmo, Lourdes, cujo pai casara-se em segundas núpcias, morou até o seu casamento com o irmão mais velho Ovídio Alves Beraldo e sua esposa Alcina Ribeiro Beraldo. Ovídio dedicara-se à carreira militar, à princípio no Exército e depois na Aeronáutica, tendo servido no teatro de operações da Segunda Guerra Mundial, como oficial da FEB. Passou à reserva em 1962, como Major Brigadeiro, após uma carreira brilhante.

Do segundo casamento de José Alves Beraldo nasceu um nono filho: Osvaldo Alves Beraldo, advogado, professor universitário e um dos fundadores da Universidade de Taubaté, SP. O casal Maria de Lourdes e Horácio teve seis filhos: Maria Augusta, João Roberto, Antônio Carlos, Suzana Maria, Luiz Carlos e José Sílvio, todos Beraldo Leite.

Mariinha estudou em Piquete nos seus primeiros anos de vida. Inteligente e vivaz, despertou a atenção de suas professoras e do padre da cidade, que alertaram o velho fazendeiro sobre o grande potencial de sua filha. Maria Augusta encaminhou-se, então, para Guaratinguetá, o maior centro cultural do Vale do Paraíba, na época.

Sob os cuidados de seu jovem tio Osvaldo, freqüentou o Colégio Nogueira da Gama, por dois anos. Quando Osvaldo seguiu para cursar Direito na Faculdade do Largo de São Francisco, em São Paulo, Mariinha foi matriculada no Colégio do Carmo, comandado por freiras salesianas, fechando o ciclo das três gerações consecutivas, que ali se educaram.

Desde tenra idade, Mariinha desenvolveu o gosto pela poesia, literatura e história. Quando menina, sonhava declamar poemas maravilhosos de sua autoria, dos quais não se recordava ao acordar.

Sensível, apaixonou-se pela vida tranqüila das freiras do Carmo e quis tornar-se uma delas. "Cheguei a usar a capinha de noviça", conta com orgulho. Não conseguiu a aprovação de seu pai que exigiu sua permanência fora do colégio por um ano, antes de seguir sua vocação.

De volta a Piquete, convidada para dar aulas de Educação Física na Escola Industrial da Fábrica Presidente Vargas, Mariinha deparou-se com os olhos azuis de um "expedicionário". Geraldo Silvia Mota, filho de um imigrante italiano com uma mineira de Baependi, pistonista de primeira linha, recém chegado da Segunda Guerra Mundial, povoou seus sonhos de adolescente e a fez esquecer o claustro.

Casaram-se em 30 de setembro de 1947, quando Mariinha contava apenas 17 anos. Sua filha mais velha recebeu o nome da padroeira das freiras do Carmo: Maria Auxiliadora, como uma compensação devida pelo abandono da vocação.

Mariinha abriu uma loja de tecidos finos e rendas, mas a necessidade de desabrochar a sua inteligência era intensa.

Quando foi criada, em Piquete, a Escola Normal Duque de Caxias, Mariinha, então com duas filhas, vendeu sua loja e retornou aos estudos.

Com Mariinha, na Escola Normal, diplomou-se uma plêiade de jovens senhores e senhoras, que brilhariam, posteriormente, no magistério e na vida cultural do Vale do Paraíba.

Concursada e aprovada como professora do Estado de São Paulo, Mariinha trabalhou, por algum tempo, em uma escola rural de Cunha, SP, para onde levou seus filhos pequenos, acrescidos do caçulinha, ainda bebê, Salvador Augusto e de Nancy Maria, filha escolhida pelo seu coração, por ela salva das vicissitudes da vida.

Mais tarde, Mariinha escolheria outra pequena menina - Maria Benedita Inácio, a Lili - para completar o seu lar. Durante alguns anos, posteriormente, Tony, também cresceria ao lado de seus filhos.

Retornando à Piquete, como professora do Grupo Escolar Antônio João, Mariinha dedicou-se aos seus alunos, não limitando-se às aulas cotidianas: montou grupos de teatro e declamação, fanfarras; organizou desfiles grandiosos, com carros alegóricos criativos e movimentados. Participou de campanhas filantrópicas várias, como a Campanha do Agasalho, Natal dos Pobres e Campanha do Quilo Mensal, não descurando a formação moral e intelectual de seus filhos.

Embora com saúde precária, tendo sido submetida a várias e seguidas intervenções cirúrgicas, inclusive uma nefrectomia, continuava em suas lides. Declamadora de escol, não só arrebatou inúmeros prêmios em concursos de declamação, como preparou suas filhas e alunos, que também se destacaram nestas apresentações.

A caravana de declamadores de Piquete, encabeçada pela professora Mariinha Mota, era respeitada pelo Vale do Paraíba e Sul de Minas. Mariinha começou a compor seus poemas, tendo os sonetos como primeira forma de expressão, seguidos por trovas, peças de teatro e poemas infantis, que espalhavam-se pelas páginas literárias dos jornais e revistas da região.

Em 1968, inesperadamente, seu filho caçula, Salvador Augusto, com dez anos de idade, faleceu acometido por um osteossarcoma. Mariinha não esmoreceu. Havia uma família a ser educada que apenas se esboçava; tudo dependia de sua força e equilíbrio.

Em 1973 retornou aos bancos escolares, formando-se em pedagogia e letras: língua portuguesa e inglês. Passou a lecionar para adolescentes, mas preferiu sempre as crianças.

Em memória de seu filhinho tornou-se uma das fundadoras, em Piquete, de um movimento ligado à Rede Feminina de Combate ao Câncer.

Aposentada, dedicou-se totalmente à literatura e, da pequena cidade de Piquete, espalhava-se através de seus versos, por todo o Brasil, chegando a assumir uma cadeira na Academia de Letras do Vale do Paraíba.

Uma doença neurológica incapacitante impediu a continuação de seu brilho, mas não apagou a beleza de sua trajetória, cultuada por seus descendentes, que procuram transmitir aos filhos a história da inteligência e sensibilidade desta menina fazendeira e brincalhona que nasceu Maria.

Detentora de grande número de prêmios em poesia e prosa, nacionais e internacionais, foi eleita pela revista belga "Poemas" para o seu "Tableau D'Honneur - 1982", como uma das seis intelectuais brasileiras de maior renome internacional.

Publicou diversas obras, muitos trabalhos traduzidos para o francês, inglês, espanhol e grego.

São composições de sua lavra:
Ascese (sonetos),
Ascetério (poemas),
Acendalhas (poesias infantis),
Vida Afora (trovas),
Per Viam Vitae (trovas),
Três Artistas Baipendianos (biografias),
Res Non Verba (crônicas),
Filipe II e sua História (romance) e
Bárbara Heliodora e a Inconfidência (estudo histórico).

Seu nome figura em diversas antologias, como Trovadores do Vale, Crônicas de Barra Mansa, Poetas Valeparaibanos, Roteiro Biobibliográfico da Poesia Feminina no Brasil, Anuário de Coletânea de Trovas Brasileiras - 1978 e 1979, Poetas do Brasil - 1977, 1978 e 1979, A Trova no Brasil, Escritores do Brasil - 1978 e 1979, Coletânea de Contos e Poesia e Dicionário Conciso de Autores Brasileiros.

Pertenceu a diversas associações culturais:
Academia de Letras do Vale do Paraíba, cadeira número 27, patronímica de José de Anchieta;
Academia de Letras de Uruguaiana,
Academia Internacional de Letras "Três Fronteiras" (Brasil, Argentina e Uruguai),
Academia de Letras da Fronteira Sudoeste do Rio Grande do Sul,
Academia de Trovadores da Fronteira Sudoeste do Rio Grande do Sul,
Associação Uruguaianense de Escritores e Editores,
Academia Internacional de Heráldica e Genealogia,
Academia Internacional de Ciências Humanísticas e
Instituto Histórico e Geográfico de Uruguaiana.

Obteve onze medalhas de ouro e prata e inúmeros diplomas conquistados em concursos de declamação no Vale do Paraíba e Sul de Minas,
diploma de Honra ao Mérito do Instituto Histórico e Geográfico de Uruguaiana,
diploma e medalha "Mérito Cultural - 1978" da Federação de Academias do Sul do País,
diploma e medalha "Mérito Cultural - 1979", da Academia de Trovadores da Fronteira Sudoeste do Rio Grande do Sul e
Troféu Evangelina Cavalcanti - Recife, Pernambuco.

Fontes:
http://depressaoepoesia.ning.com/profiles/blogs/minha-mamae-mariinha-mota-e
http://mariinhamotapoeta.blogspot.com/

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n.130)


Uma Trova Nacional

A mais dorida verdade,
e a que me cala mais fundo,
é a notória brevidade
das ilusões deste mundo.
(PEREIRA DE ALBUQUERQUE/CE)

Uma Trova Potiguar

Ontem quando a lua veio,
tão cheia, por trás do monte,
parecia um lindo seio
no decote do horizonte.
(JOSUÉ TABIRA/RN)

Uma Trova Premiada

2008 > Bandeirantes/PR
Tema > AUDÁCIA > Menção Especial

Luto por meus ideais,
com audácia entre os abalos,
que não abalam jamais
a esperança de alcançá-los!
(WANDA DE PAULA MOURTHÉ/MG)

Simplesmente Poesia

– Dalinha Catunda/CE –
EU E ELE.

Vem que o dia é nosso,
aquece meu corpo que gosto.
Faz-me inteirinha suar.

Deixa-me de rosto corado,
brinquemos de namorados,
antes que chegue o luar.

Vem me fazer mais morena,
garanto que vale a pena,
em minha pele tocar.

A nossa química é perfeita.
Desce seus raios, aproveita!
Sou epiderme a lhe provocar.

Uma Trova de Ademar

Na transposição mais nobre,
podemos, sem qualquer risco,
matar a sede do pobre
com as águas do São Francisco!...
(ADEMAR MACEDO/RN)

...E Suas Trovas Ficaram

Se na estrada em que transponho,
só tem pesares daninhos,
eu peço carona ao sonho
e nem piso nos espinhos.
(LILA RICCIARDI FONTES/SP)

Estrofe do Dia

– Carlos Drummond de Andrade (RJ) -
A CASA DO TEMPO PERDIDO

Bati no portão do tempo perdido, ninguém atendeu.
Bati segunda vez e mais outra e mais outra.
Resposta nenhuma.
A casa do tempo perdido está coberta de hera
pela metade; a outra metade são cinzas.
Casa onde não mora ninguém, e eu batendo e chamando
pela dor de chamar e não ser escutado.
Simplesmente bater. O eco devolve
minha ânsia de entreabrir esses paços gelados.
A noite e o dia se confundem no esperar,
no bater e bater.
O tempo perdido certamente não existe.
É o casarão vazio e condenado.

Soneto do Dia

Raymundo de Salles Brasil/BA –
AO RELER MEU SONETO

Um verso eu quis fazer melhor elaborado,
um clássico soneto igual aos de Bilac,
soneto à moda antiga, bem metrificado,
como o fizera Arthur, que foi do verso um craque.

Fiquei ante o papel, horas a fio, parado,
buscando um verso puro, um verso sem sotaque,
corri atrás da rima até ficar cansado,
coloquei a cesura em lugar de destaque.

Achei que o meu soneto já estivesse pronto,
mas quando o fui reler, verso por verso, vi
que em cada um faltava ainda um contraponto

que lhes pudesse dar riqueza à melodia;
e as cordas dedilhei de novo, e descobri:
faltava-lhe a unção – e dá-la eu não sabia.

Fonte:
Ademar Macedo

Lygia Fagundes Telles (A Consulta)


Doutor Ramazian debruçou-se na janela e ficou olhando o jardim banhado por um débil sol de inverno. Alguns pacientes estavam sentados nos bancos, outros passeavam, pálidos e perplexos. Um velho deitou-se no gramado, despiu o pulôver, atirou-o longe e quando já ia arrancar a camiseta de lã, o enfermeiro de jeans tomou-o pelos cotovelos e trouxe-o para dentro. Um jovem de alpargatas escondeu depressa a cara nas mãos.

- Max! Maximiliano! - o médico chamou. - Pode vir aqui um instante?

O homem que espiava a rua através do portão de ferro voltou-se. Veio vindo sorridente, as mãos metidas nos bolsos do blazer azul-marinho com botões prateados. Inclinou-se para tirar uma folha seca da calça de flanela.

- Boa tarde, doutor.

O médico bateu na janela o cachimbo já esvaziado, soprou um pouco de cinza e encarou o homem.

- Você me parece muito bem-disposto, Max.

- Eu estou bem-disposto. E tive pesadelos, doutor, vi um pombo esmagado no meio da rua, com um raminho verde no bico. Tão verde o raminho no meio do sangue. Não é curiosa essa coincidência?

- Que coincidência?

- Um gatinho foi atropelado bem aí na frente do portão. Ficou que nem o pombo.

- Sem o raminho verde.

- Sem o raminho verde - repetiu Maximiliano fixando 0 olhar no cachimbo que o médico deixou na mesa. - O senhor vai sair?

- Tenho um compromisso e Dona Dóris ainda não apareceu, eu queria que você ficasse aqui para atender o telefone, me faz esse favor? Antes das quatro devo estar de volta.

- Com prazer - disse Maximiliano apoiando-se na janela baixa. Pulou ágil para dentro do consultório. - Fico feliz quando o senhor confia em mim mesmo para tarefas menores como atender o telefone ou limpar seus sapatos.

O médico fechou o zíper da maleta.

- Você nunca limpou meus sapatos, Max. - Mas limparia. Os seus e os de Jesus.

- Jesus usava sandálias - disse Doutor Ramazian guardando a caneta no bolso. Apontou para um bloco ao lado do telefone: - Qualquer recado, tome nota aqui, sim? Se quiser café, já sabe onde encontrar. Não demoro.

Quando o médico saiu, Maximiliano sentou-se na cadeira giratória e apoiou os cotovelos na mesa. Apanhou o cachimbo, examinou-o atentamente. Ficou aspirando o cheiro de fumo. Deixou o cachimbo, apanhou a espátula metálica. As batidas na porta eram tímidas, constrangidas.

- Doutor Ramazian? - perguntou o recém-chegado abrindo a porta e espiando pela fresta. Ainda segurava o trinco: - Me desculpe ter vindo assim adiantado, minha hora era às quatro, mas se o senhor pudesse me atender agora... Pode me atender agora?

- Sim, claro, entre. É a primeira vez, não? - A primeira. Falei com Dona Dóris, mas... - Ela não veio hoje. Sente-se, faz favor.

- É que não agüentei esperar - disse o homem afrouxando o colarinho. Passou ansiosamente a mão no queixo. -Nem fiz a barba, está vendo? Cheguei cedo demais e fiquei andando lá na calçada, mas foi me dando uma aflição, acho que estou em ponto de enlouquecer!

- Exagero. Os que estão em ponto de enlouquecer, não dizem. Nem sabem. Quer fumar? - perguntou Maximiliano abrindo a caixa de cigarros, ao lado do porta-cachimbos.

- Obrigado, prefiro minha marca - disse o homem tirando o maço do bolso. Sua mão tremia. - Estou fumando três, quatro maços por dia, acendo um no outro, sem parar - acrescentou, vagando em torno o olhar inquieto. Fixou-o na janela. - São todos loucos? Esses aí fora.

Maximiliano abriu a bolsa de fumo. Encheu o cachimbo. - Nem todos, têm médicos e enfermeiros misturados com eles. Aqui o regime é de liberdade total, suprimimos aventais, uniformes, os doentes precisam se sentir iguais a nós. Eu mesmo ás vezes, não distingo. - Meu pai conhecia os loucos pelos olhos.

Maximiliano apertou os seus. Sorriu.

- E um elemento - disse inclinando-se. Segurava ainda o cachimbo apagado. - Mas então?

- Nem sei como começar, doutor, é demais absurdo, ridículo! Essa obsessão... Não faz sentido tanto medo, tanto medo! - Medo do quê, filho?

- Da morte.

O telefone branco em cima da mesa tocou baixinho, com o som reprimido de uma cigarra fechada na gaveta. Maximiliano atendeu, disse um não está, fez um movimento para pegar o lápis e depois de um conformado como queira, desligou. Apanhou o cachimbo mas recusou o isqueiro que o recém-chegado lhe ofereceu, agradecia mas não ia fumar, contentava-se em ficar segurando o cachimbo assim cheio como fazia nesse instante. O homem teve uma expressão desolada.

- Quisera eu poder resistir, doutor. Mais de três maços por dia - queixou-se, pousando o cigarro no cinzeiro. Entrelaçou com veemência as mãos magras. - Já não durmo, não como direito, não cumpro minhas obrigações, não faço mais nada a não ser pensar nisso. Não posso nem dizer a palavra, nem ouvir que já me sinto mal. Ainda agora, não viu?, eu falei e já comecei a transpirar, me veio uma ânsia! O tempo todo pensando, pensando, perdi o apetite da vida. No trabalho, em casa com minha mulher, na cama com minha amante, tenho uma amante, uma menina tão boazinha, nem sei como ainda me agüenta, venho me esquivando dos encontros, a última vez foi um vexame, no meio, doutor, parei no meio feito um velho, broxei feito um idiota ali em cima dela ou debaixo, nem me lembro, parece que foi há séculos! Séculos - repetiu, sacudindo a cabeça. Tragou profundamente, cerrando os olhos congestionados. - Hoje minha mulher precisou me mandar trocar de roupa, esqueço de fazer a barba, estou exausto, exausto! Quase um ano nessa agonia, doutor. Começou aos poucos, com um certo mal-estar, quando me avisavam que alguém tinha mor... tinha empacotado. Eu evitava o assunto, me desviava dos campos-santos, das casas de saúde, onde sentia de longe o cheiro dela, da coisa, desinfetada, enluvada mas presente, atuante, está me compreendendo? Até que o mal-estar foi aumentando, virou náusea, pânico, me levanto já pensando que ela pode acontecer não só para mim mas para as pessoas que eu amo. Olho meus filhos, tenho dois meninos que já estão rindo de mim, desse meu medo de contágio, de acidentes, acho que tudo nos conduz a ela e num galope. Já senti todas as doenças do mundo! Fiz dezenas de exames, radiografias, meu médico nem quer mais me receber, Você não tem nada!, já me repetiu não sei quantas vezes. E tenho tudo. O medo quando me deito, medo que aconteça durante o sono, medo que ela me pegue em flagrante, às vezes a imagino com uma cara de puta safada, cafona, me gozando com seu olho antiqüíssimo. Outras vezes, quando ouço música - meu único consolo ainda é a música, doutor -, nessas horas ela me aparece etérea, suave como uma dessas virgens das baladas, coroada com uma grinalda de jasmins, me acenando com seus frios dedos de éter... Ainda não sei qual das duas me assusta mais, se essa ou a outra, que é suja, podre. Ah, doutor um homem de trinta e cinco anos e tremendo inteiro como uma criancinha perdida no escuro, choramingando beleza, escondida lá no fundo, a semente da coisa. Na plenitude hoje, mas e amanhã?

Platão lembraria a metáfora da maçã. Mas continue, senhor Gutierrez, continue.

- Uma manhã dessas acordei sem nenhum medo, diluído, eu, que estava tão denso, cheguei a pensar que tinha me libertado quando aos poucos comecei a sentir medo de não ter medo, está me compreendendo? Parece que ficou pior ainda o vazio, esse espaço que o medo ocupava. Então quis me provar, saber se realmente estava livre: entrei a passos largos num ce... num desses campos-santos. Não passava perto deles nem que me arrastassem pelos cabelos. Fui indo até que na curva da alameda pressenti um... uma cerimônia, o doutor sabe onde quero chegar, antes mesmo já senti o cheiro da coisa; fiquei com o olfato apuradíssimo, sinto de longe, doutor. Foi o suficiente para começar a vomitar ali mesmo atrás de um cipreste. Saí ventando, só dei acordo de mim em casa, encharcado de suor. Amarelo de medo. Ou verde? - perguntou, esboçando um riso frouxo. Olhou as próprias mãos. - A cor do medo. Tire uma licença, meu chefe aconselhou, sou funcionário público. Se o senhor está doente, faça um exame médico e vá viajar, espairecer. Quis me ajudar, todos querem me ajudar. Mas dizer o que aos médicos lá do Instituto? Se o meu mal é o medo, com que cara vou confessar que estou doente de medo? Tudo em ordem. E esta desordem, esta angústia. Seria melhor enlouquecer. Ainda outra noite pensei muito nisso, seria uma solução. Mas não vou enlouquecer, vou...

- Morrer.

- Não fala, doutor, não fala! Só de ouvir, está vendo? murmurou ele enxugando no lenço o queixo, a testa. Acendeu um cigarro. Suspirou. - Eu avisei que era uma história ridícula, absurda, não avisei? Quando vinha hoje para cá, meu táxi foi cortado por um cortejo, o senhor sabe. Só de ver aqueles carros todos atrás do carro principal foi me dando tamanha aflição que saltei, mudei de rua, mas pensa que adiantou? Logo mais dei com a manchete de um jornal, o menino me abriu a manchete na cara, mal tive tempo de desviar e a voz adiante de outro jornaleiro anunciando a tragédia, um ônibus que despencou num precipício, dezenas de feridos fatais... Entrei num café e lá dentro a conversa sobre um condenado americano que quer, que exige que o... que o executem. Mas só se fala na coisa?! Ou já falavam antes, apenas era eu que estava distraído? Não sei. Sei que ando com vontade de me isolar, sumir num lugar onde essa presença não tenha tanta importância, mas existe esse lugar? Os conventos são solitários. Defendidos. Lá, nem a vida nem a ante vida importam, era de se esperar que não se preocupassem com a nossa... finitude. Mas se importam, querem a santidade através da auto-flagelação, e nessa flagelação está a memória da coisa exaltada em orações, cantorias, imagens, repetida até nos cumprimentos, lembra-te da... O senhor sabe, tem uma comunidade que se cumprimenta assim, desde que eles acordam, um vê o outro, sorri e diz - lembra-te da... - Ah! Ah, não sei por que tirar a despreocupação da vida enquanto vida.

Maximiliano ficou olhando o cachimbo fechado na gruta da mão.

- Vou lhe contar um caso, Senhor Gutierrez, serei rápido. - Fernandez, doutor. Samuel Fernandez.

- Perdão. Mas todo esse horror que o senhor tem por essa, digamos, fatalidade, um meu paciente tinha pelo automóvel. Pela máquina. Começou também assim, como o senhor, manifestando a princípio uma certa má vontade de guiar, vendeu o carro. Queixava-se do trânsito, dos motoristas. A má vontade se agravou, ficou agressivo, assustadiço, o medo de entrar num carro crescendo de tal jeito que só andava a pé, desconfiado, fugindo das ruas movimentadas, as orelhas atufadas de algodão para atenuar o som das buzinas, entrando em pânico se um carro se aproximasse mais. Ora, nossa cidade tem carro à beça, o que significa que ele vivia em estado de pânico permanente. Quando chegavam as férias, ele era bancário, fugia alucinado para o campo, para as praias, mas praia e campo, está tudo invadido, o carro está em toda parte, como Deus. Fugir para onde? Tentou se adaptar, dominar o horror. Não conseguiu. Quando resolveu me procurar, parecia um cadáver. Perdão, estava abatidíssimo. Fez a confissão quase em prantos: a fobia estava ficando insuportável. Essa repugnância que o senhor tem pelo avesso da vida, o cheiro especial que o senhor sente quando esse avesso se aproxima, ele sentia também, mas no cheiro da gasolina, do óleo, daquele bafo negro do motor, sentia tudo mesmo fechado num armário, mesmo escondido debaixo da cama. Então ordenei-lhe que se empregasse imediatamente numa fábrica de automóveis. - De automóveis?

Maximiliano deu uma risadinha.

- Vejo seu espanto, Senhor Gutierrez, mas não é novidade que a única forma de se curar de um veneno é recorrer ao próprio veneno. Como é que se cura picada de cobra? Hum? E o que vem a ser a homeopatia? Empregue-se numa fábrica de automóveis, receitei. E o moço, que não podia se aproximar sequer de uma garagem, de carros, entrou no coração deles, obrigado a lidar com as peças, montando, desmontando, parafusando, pintando, a cara enfiada na máquina, os ouvidos saturados do barulho da máquina. De manhãzinha já ia se esfregar nos motores, as unhas impregnadas de graxa, vi suas unhas, nem escova com sabão podia limpar aquelas unhas da presença detestável. Ensinei-lhe que é preciso destruir os fantasmas indo de encontro a eles, desvendá-los, meu caro, sabe o que é desvendar? É levantar o véu e olhar a coisa nos olhos. Nos olhos!

O telefone tocou e dessa vez Maximiliano tomou algumas notas, depois de informar que a pessoa em questão se ausentara da clínica por algumas horas. Voltou-se para o homem que esperava, ansioso, o cigarro pendendo do canto da boca, as mãos tortuosas abertas nos joelhos. Examinou-o num silêncio cordial. Tranqüilo.

- Ele sarou, doutor? - Quem?

- O moço...

- Ah, definitivamente. Passada aquela fase de sofrimento maior, começou a se interessar pelo trabalho. Vinha me ver três vezes por semana, nunca pensei que o processo de adaptação marchasse assim rápido: um mês depois já tinha comprado um carro. E lia revistas de automóveis, ajudou a montar o Salão da Máquina, colaborava na revista Oito Rodas, contava anedotas sobre o trânsito, virou um técnico. Durante esse período, só teve uma recaída, quando foi todo satisfeito ver uma fita sobre corrida de carros e de repente, no meio, se levantou aos gritos e saiu espavorido, todo o antigo horror explodindo tão forte que pensei, pronto, voltou ao marco zero. Mas não, no dia seguinte já estava normal, tudo bem. De admirador da máquina passou a ser seu amante, ih, a paixão que eu tenho por isto, me disse certa vez, alisando um pára-lama como se alisa a coxa da namorada. Mas sua paixão pelo automóvel não era de ficar por aí, não demorou muito e integrou-se no próprio.

- Não estou entendendo, doutor.

- Tão simples, Gutierrez: ele assumiu o automóvel. Virou um automóvel, e com tamanho fervor que certa manhã bebeu gasolina azul e saiu buzinando pela rua afora, uon! uon! uon! brrrrrrrrrr!... brrrrrrrrrr!... Perdeu para uma jamanta que vinha em sentido contrário.

- Morreu?

- Isso aí. E agora o senhor soltou a palavra tão natural, está vendo? Pronto, já é o caminho da cura assumir os fantasmas. Melhor ainda, virar um deles.

- Então ele não se curou, doutor.

Cariciosamente, Maximiliano passou e repassou no lábio risonho o cachimbo apagado.

- Mas o que o senhor chama de cura? Por acaso queria que ele continuasse um automóvel para o resto da vida? O senhor, por exemplo, quer continuar assim em pânico até o fim? É isso que quer? Me responda! Quer sofrer esse medo até morrer de medo?

- Não, doutor, não é isso que eu quero, não queria ter medo nunca mais, nunca mais!

- Eu poderia lhe recomendar um estágio de enfermeiro num hospital daquele estilo em que o doente entra sem o raminho verde no bico, sem esperança - disse e riu. Ficou sério. Olhou o relógio de pulso. - Seria retomar o tratamento daquele caso, os hospitais são fábricas de defuntos, os que não morrem da doença com que entram pegam outra lá dentro, o senhor teria um material de primeira ordem. Mas quero que pule essa fase, não vamos fazer cera, mesmo porque não vai ter outra consulta, esta é a última.

- A última?

- Seria pura perda de tempo, filho. Por que uma volta tão grande para se chegar ao mesmo fim? No hospital, o senhor iria se acostumando com - posso falar a palavra? - com a morte, e de tal jeito que acabaria se afeiçoando à idéia. De simples admirador passaria a ser seu amante, que nem o moço da máquina, montado nela o dia inteiro, aquele tesão. Mas não parava nisso, a identificação seria tão profunda que de repente ia querer se matar. Melhor então que se mate já.

- Doutor?!

- Imediatamente. Saia e se mate, é uma ordem.

O homem levantou-se, cambaleando. Deixou cair no cinzeiro o cigarro e ali ficou de pé, a boca entreaberta, a face porejando, branca.

- O senhor está falando sério, doutor?

- Nunca falei tão seriamente em minha vida. Só com a morte se cura o medo da morte. Mate-se. Não quer se libertar? Pois lhe ordeno a libertação, está salvo, mate-se - disse Maximiliano fixando no homem o olhar reto. - Saia e se mate em seguida. Uma boa morte para o senhor.

- Mas doutor, espera!...

Suave mas firmemente, Maximiliano foi impelindo o homem até a porta.

- Obedeça. Agora, adeus.

Assim que se viu sozinho foi até a janela e através do vidro ficou vendo o homem atravessar o jardim num passo vacilante, as mãos abertas, pendidas. Virou-se ainda uma vez, a face aterrada se contraindo inteira numa interrogação de quem se esqueceu ao dizer - ou fazer - alguma coisa, o quê?

Quando o Doutor Ramazian voltou, Maximiliano estava de pé ao lado da mesa, com o bloco de notas na mão. O cachimbo esvaziado. O cinzeiro limpo.

- Pronto, Max. Agora pode ir tomar seu lanche. Algum recado?

- Uma senhora telefonou, mas não quis dizer o nome. E um cliente, o Professor Nóbrega, também ligou, disse que só pode vir na sexta-feira, vai combinar a hora com Dona Dóris.

Doutor Ramazian encheu o cachimbo. Falou depois de uma baforada.

- Ótimo. Nada mais? Alguém me procurou?

- Um momento, deixa eu ver - disse Maximiliano franzindo a testa. Encarou o médico: - Não, ninguém. Ninguém. Posso ir? - Sim, sem dúvida - disse o médico passando o olhar distraído na folha de bloco com as anotações. - Ótimo, Max. Você vai indo muito bem, o progresso que fez. Estou muito satisfeito.

- Eu também.

- Falta apenas o último passo, você sabe, assumir sem possibilidades de retrocesso. Então estará curado. Maximiliano sorriu. A voz saiu mansa, num quase sussurro, “curado e fodido”.

- O que foi? Você disse alguma coisa?

- Não, doutor, nada. O senhor tem razão. Vamos ao lanche?

Fonte:
TELLES, Lygia Fagundes. Seminário dos Ratos.

Carlos Drummond de Andrade (Poesias Avulsas III)


A BRUXA

A Emil Farhat

Nesta cidade do Rio,
de dois milhões de habitantes,
estou sozinho no quarto,
estou sozinho na América.
Estarei mesmo sozinho?
Ainda há pouco um ruído
anunciou vida a meu lado.
Certo não é vida humana,
mas é vida. E sinto a bruxa
presa na zona de luz.
De dois milhões de habitantes!
E nem precisava tanto...
Precisava de um amigo,
desses calados, distantes,
que lêem verso de Horácio
mas secretamente influem
na vida, no amor, na carne.
Estou só, não tenho amigo,
e a essa hora tardia
como procurar amigo?
E nem precisava tanto.
Precisava de mulher
que entrasse nesse minuto,
recebesse este carinho,
salvasse do aniquilamento
um minuto e um carinho loucos
que tenho para oferecer.
Em dois milhões de habitantes,
quantas mulheres prováveis
interrogam-se no espelho
medindo o tempo perdido
até que venha a manhã
trazer leite, jornal e calma.
Porém a essa hora vazia
como descobrir mulher?
Esta cidade do Rio!
Tenho tanta palavra meiga,
conheço vozes de bichos,
sei os beijos mais violentos,
viajei, briguei, aprendi.
Estou cercado de olhos,
de mãos, afetos, procuras.
Mas se tento comunicar-me,
o que há é apenas a noite
e uma espantosa solidão.
Companheiros, escutai-me!
Essa presença agitada
querendo romper a noite
não é simplesmente a bruxa.
É antes a confidência
exalando-se de um homem.

A CÂMARA VIAJANTE

Que pode a câmara fotográfica?
Não pode nada.
Conta só o que viu.
Não pode mudar o que viu.
Não tem responsabilidade no que viu.
A câmara, entretanto,
Ajuda a ver e rever, a multi-ver
O real nu, cru, triste, sujo.
Desvenda, espalha, universaliza.
A imagem que ela captou e distribui.
Obriga a sentir,
A, driticamente, julgar,
A querer bem ou a protestar,
A desejar mudança.
A câmara hoje passeia contigo pela Mata Atlântica.
No que resta - ainda esplendor - da mata Atlântica
Apesar do declínio histórico, do massacre
De formas latejantes de viço e beleza.
Mostra o que ficou e amanhã - quem sabe? acabará
Na infinita desolação da terra assassinada.
E pergunta: "Podemos deixar
Que uma faixa imensa do Brasil se esterilize,
Vire deserto, ossuário, tumba da natureza?"
Este livro-câmara é anseio de salvar
O que ainda pode ser salvo,
O que precisa ser salvo
Sem esperar pelo ano 2 mil.

ACORDAR, VIVER

Como acordar sem sofrimento?
Recomeçar sem horror?
O sono transportou-me
àquele reino onde não existe vida
e eu quedo inerte sem paixão.

Como repetir, dia seguinte após dia seguinte,
a fábula inconclusa,
suportar a semelhança das coisas ásperas
de amanhã com as coisas ásperas de hoje?

Como proteger-me das feridas
que rasga em mim o acontecimento,
qualquer acontecimento
que lembra a Terra e sua púrpura
demente?
E mais aquela ferida que me inflijo
a cada hora, algoz
do inocente que não sou?

Ninguém responde, a vida é pétrea.

A CORRENTE

Sente raiva do passado
que o mantém acorrentado.
Sente raiva da corrente
a puxá-lo para a frente
e a fazer do seu futuro
o retorno ao chão escuro
onde jaz envilecida
certa promessa de vida
de onde brotam cogumelos
venenosos, amarelos,
e encaracoladas lesmas
deglutindo-se a si mesmas.

(in A Paixão Medida)

A EXCITANTE FILA DO FEIJÃO

Larga, poeta, a mesa de escritório,
esquece a poesia burocrática
e vai cedinho à fila do feijão.

Cedinho, eu disse? Vai, mas é de véspera,
seja noite de estrela ou chuva grossa,
e sem certeza de trazer dois quilos.

Certeza não terás, mas esperança
(que substitui, em qualquer caso, tudo),
uma espera-esperança de dez horas.

Dez, doze ou mais: o tempo não importa
quando aperta o desejo brasileiro
de ter no prato a preta, amiga vagem.

Camburões, patrulhinhas te protegem
e gás lacrimogêneo facilita
o ato de comprar a tua cota.

Se levas cassetete na cabeça
ou no braço, nas costas, na virilha,
não o leves a mal: é por teu bem.

O feijão é de todos, em princípio,
tal como a liberdade, o amor, o ar.
Mas há que conquistá-lo a teus irmãos.

Bocas oitenta mil vão disputando
cada manhã o que somente chega
para de vinte mil matar a gula.

Insiste, não desistas: amanhã
outros vinte mil quilos em pacotes
serão distribuídos dessa forma.

A conta-gotas vai-se escoando o estoque
armazenado nos porões do Estado.
Assim não falta nunca feijão-preto

(embora falte sempre nas panelas).
Método esconde-pinga: não percebes
que ele torna excitante a tua busca?

Supermercados erguem barricadas
contra esse teu projeto de comer.
Há gritos, há desmaios, há prisões.

Suspense à la Hitchcock ante as cerradas
portas de bronze, guardas do escondido
papilionáceo grão que ambicionas.

É a grande aventura oferecida
ao morno cotidiano em que vegetas.
Instante de vibrar, curtir a vida

na dimensão dramática da luta
por um ideal pedestre mas autêntico:
Feijão! Feijão, ao menos um tiquinho!

Caldinho de feijão para as crianças...
Feijoada, essa não: é sonho puro,
mas um feijão modesto e camarada

que lembre os tempos tão desmoronados
em que ele florescia atrás da casa
sem o olho normativo da Cobal.

Se nada conseguires... tudo bem.
Esperar é que vale - o povo sabe
enquanto leva as suas bordoadas.

Larga, poeta, o verso comedido,
a paz do teu jardim vocabular,
e vai sofrer na fila do feijão.

(in Amar Se Aprende Amando)

A FALTA DE ÉRICO

Falta alguma coisa no Brasil
depois da noite de Sexta-feira
Falta aquele homem no escritório
a tirar da máquina elétrica
o destino dos seres,
a explicação antiga da terra.
Falta uma tristeza de menino bom
caminhando entre adultos
na esperança da justiça
que tarda - como tarda!
a clarear o mundo.
Falta um boné, aquele jeito manso,
aquela ternura contida, óleo
a derramar-se lentamente,
falta o casal passeando no trigal.
Falta um solo de clarineta.

A FALTA QUE AMA

Entre areia, sol e grama
o que se esquiva se dá,
enquanto a falta que ama
procura alguém que não há.

Está coberto de terra,
forrado de esquecimento.
Onde a vista mais se aferra,
a dália é toda cimento.

A transparência da hora
corrói ângulos obscuros:
cantiga que não implora
nem ri, patinando muros.

Já nem se escuta a poeira
que o gesto espalha no chão.
A vida conta-se, inteira,
em letras de conclusão.

Por que é que revoa à toa
o pensamento, na luz?
E por que nunca se escoa
o tempo, chaga sem pus?

O inseto petrificado
na concha ardente do dia
une o tédio do passado
a uma futura energia.

No solo vira semente?
Vai tudo recomeçar?
É a falta ou ele que sente
o sonho do verbo amar?

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n.129)


Uma Trova Nacional

Por mais que eu garimpe e tente,
nos meus pedregulhos tantos,
nem com lupa ou forte lente
eu não acho os meus encantos.
(TIA PRISCA/SP)

Uma Trova Potiguar

Amo bastante, não minto;
sem envolver-me em lambanças,
sentir saudades, não sinto;
sinto, agradáveis lembranças.
(PEDRO GRILO/RN)

Uma Trova Premiada

2010 > Curitiba/PR
Tema > IMAGEM > Menção Honrosa

A grande riqueza humana
consiste em se perceber
quando a luz do "ter" profana
e ofusca a Imagem do "ser".
(WANDIRA FAGUNDES QUEIROZ/PR)

Simplesmente Poesia

– Sérgio Severo/RN –
TRIBUTO A NOVA FRIBURGO.

Nova Friburgo se ergue
das brumas de um pesadelo
e não há ninguém que negue:
nunca o fez por merecê-lo.

Essa Cidade tão Bela,
"Capital dos Trovadores",
tornará a ser aquela,
"Eterna Terra das Flores".

Ó Terra dos meus Avós,
permita falar por Vós,
e ao Brasil, todo, eu conclamo:

"Venham à Terra revivida,
de novo, cheia de Vida,
Nova Friburgo, TE AMO!!"

Uma Trova de Ademar

Estão nos desígnios meus
lições de uma eternidade:
só na colheita de Deus
se colhe Fé de verdade!...
(ADEMAR MACEDO/RN)

...E Suas Trovas Ficaram

Para não sentir remorsos
de roubar os beijos teus,
cada dia mais me esforço
de pagá-los com os meus.
(MIGUEL RUSSOWSKY/SC)

Estrofe do Dia

Relembrar um grande amor,
uma ausência lamentar,
ficar triste, suspirar,
ver a beleza da flor,
andar com ar sonhador,
parecendo estar ausente,
isso é banzo recorrente
uma coisa que maltrata,
pois saudade ninguém mata,
é ela que mata a gente.
(JOSÉ ALBERTO COSTA/AL)

Soneto do Dia

– Humberto Rodrigues Neto/SP –
PLÁGIOS.

Há poetas que vivem no ostracismo,
mas julgam-se a si próprios magistrais,
e em tábidas manobras imorais
fazem do plágio seu falaz lirismo.

Surdos à lei e às convenções morais,
entregam-se da inveja ao fatalismo,
essa filha bastarda do egoísmo
que tantos danos à poesia traz!

Por falha herdada de um viver pretérito,
pouco lhes toca que um poema ultrajem
pra disfarçar seu crônico demérito!

Mal sabem os medíocres que assim agem,
que a inveja é até uma forma de homenagem
que prestam, sem saber, aos que têm mérito!

Fonte:
Ademar Macedo

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

João Freire Filho (Caderno de Trovas)


A lua, que nos clareia,
é diferente de quem,
recebendo luz alheia,
não ilumina ninguém!

Ante a dor... não esmoreço,
sabendo, em meu caminhar,
que a Vida não cobra preço
que não se possa pagar

A Terra vive conflitos,
sangrando, de guerra em guerra,
e é com voz branda... e, não, gritos...
que se há de ter Paz... na Terra!

A saudade é dependência...
É meu vício, em tal medida,
que você se fez a ausência
mais presente em minha vida!

As revoltas não têm fim
e explodem cada vez mais,
que a fome acende o estopim
das convulsões sociais!

A tormenta, que atordoa,
não distingue, em mar bravio,
a humildade da canoa...
da soberba do navio!...

A Verdade anda tão rara,
que a Mentira, sorridente,
já nem sequer se mascara
para enganar tanta gente!

A vida me presenteia
com tamanhas alegrias,
que a tristeza é um grão de areia
na ampulheta dos meus dias!

Bendita a fonte escondida...
que escorre e, por onde passa,
trazendo a graça da vida,
dá tanta vida de graça!

Cai na rua... Perde o tino,
no alcoolismo em que se esvai...
E, aos passantes... um menino
diz, inocente: - "É meu pai"...

Cantando terno estribilho
e esquecendo que era escrava,
Mãe Preta aleitava o filho
de quem os seus açoitava!...

Com sabor de penitência...
de brinde contra a vontade,
vou bebendo a tua ausência...
em meus porres de saudade!

Da ternura ao desvario..
do desvario à ternura,
nosso amor vive no fio
da mais sublime loucura...

Distante, a lua prateada,
entre nuvens de inconstância,
me lembra a mulher amada...
mais amada... se à distância!

Distante do olhar das ruas,
num sonho que me enternece,
em nosso céu brilham luas
que só nosso amor conhece!...

Dos meus tempos mais risonhos
descubro, agora, os segredos:
- cabia um mundo de sonhos
no meu mundo de brinquedos!

É o desvario do mando
de alguns Senhores da Terra...
que implanta, de quando em quando,
os desvarios da guerra!

Eu compreendo os desvios
a que leva uma paixão...
As vezes, são desvarios
que dão à vida... razão!...

Fim do amor... Desiludidos,
sabemos juntos, mas sós,
que há silêncios inibidos...
tentando falar por nós!

Hoje, em meu leito, sem ela,
enquanto resisto ao sono,
a Saudade é sentinela...
dando plantão... no abandono!

Imperfeito, eu rogo, aflito,
por nosso amor, que é perfeito:
- Não faças de mim um mito...
que mitos não têm defeito!

Liberdade -- sentinela
da Paz, em qualquer lugar!
E quem não lutar por ela...
não tem mais por que lutar!

Lutando por ideais,
mesmo à beira da utopia,
tenho enfrentado os "jamais"
com meus "sempres" de ousadia

Meu coração se acautela
e, imerso em desilusões,
faz da razão sentinela...
contra novas invasões!

Meus ideais mais risonhos
correm livres, sempre em frente,
numa corrente de sonhos,
que rompe qualquer corrente!

Na vida, que te conduz
às mais diversas pelejas,
se não puderes ser luz,
que, ao menos, sombra não sejas!

Nosso amor, desde o começo,
tem tal alcance e medida,
que, quanto mais envelheço,
mais o sinto... além da vida!

O meu amor te ocultei!
Seguimos rumos diversos...
Passou-se o tempo, e, hoje, eu sei:
- permaneceste em meus versos!

Poeta é aquele que abraça
a noite, sentindo-a sua,
e bebe estrelas na taça
inspiradora... da lua!

Quem ama... libera o ardor
dos impulsos naturais,
que, em desvarios de amor,
loucura alguma é demais !

Quem tem a luz do saber,
muito mais que outro qualquer,
tem de cumprir o dever
de ser luz... onde estiver!

Saudoso, namoro a Lua
e sinto, por seu feitiço,
que o nosso amor continua,
embora nem saibas disso!

Sonhador, poeta... e amante
de quanto a vida me dá,
que importa a lua distante...
se os meus sonhos chegam lá ?!...

Tenho um segredo profundo
- e, é de amor... – e, tarde ou cedo,
eu gostaria que o mundo
soubesse desse segredo!

Teu ciúme, cortando os laços
do nosso amor, me magoa...
mas meu amor abre os braços
e, por amor, te perdoa!

Toda noite ela regressa
em meus sonhos erradios...
Não há distância que impeça
de eu tê-la... em meus desvarios !

Vem do sol a luz de prata
que parte da lua encerra...
E a lua, modesta e grata,
deita pratas sobre a terra!

João Freire Filho (1941)



Nasceu no Rio de Janeiro, em 29 de maio de 1941.

Cursos de Bacharel pela Faculdade de Letras e Licenciatura pela Faculdade de Educação, ambas da UFRJ. Também em ambas foi professor, tendo se aposentado após mais de 35 anos de serviço.

Foi também diretor do Colégio de Aplicação daquela universidade.

Iniciou-se na Trova em 1979. Sua primeira premiação foi em São Bernardo do Campo, no mesmo ano.

Magnífico Trovador (gênero "líricas e filosóficas") por Nova Friburgo.

Ex-presidente da UBT - União Brasileira de Trovadores.

Lançou, em 2007, o livro de trovas "Entre achados e perdidos".

Lygia Fagundes Telles (Dia de Dizer Não)


Esse dia vai ser hoje, resolvi quando acordei: dia de dizer Não! E pensei de repente em Santo Agostinho, o vera artificiosa apis Dei - abelha de Deus. Admirada e amada abelha de caráter tão forte que conhecendo o sim e o não na sua natureza mais profunda cedeu para em seguida resistir, ah! Como ele resistiu até se instalar na cidade sonhada. Não! ele disse ao invasor daquele tempo e que devia ser parecido com o invasor atual, esse invasor-cobrador a ocupar um espaço que não lhe pertence.

Falei na Cidade de Deus. E estamos nesta cidade aqui embaixo onde tem invasor de todo tipo, desde os extraterrestres (em geral, mais discretos) até aqueles mais ambíguos: o invasor da vontade. Esse vem mascarado. Aproveitando-se, é claro, do mais comum dos sentimentos, o da culpa. No imenso quadro do mea culpa, a postura fácil é a da humildade que quer dizer fragilidade. Isso comove o invasor? Não comove não, ao contrário, ele se sente estimulado a insistir até dobrar a vontade enferma que acaba por ceder fortalecida na crença de que mais adiante pode se libertar. Libertou-se? Não porque o sim vai se multiplicando como os elos de uma corrente na qual ele se enrola, passivo. E acreditando lutar porque não perde a esperança. Mas a esperança é cega e na desatinada cegueira acaba por se transformar na esperança da desesperança.

O próximo que Jesus pediu para amar, eu sei. Mas Ele está vendo como ficou o próximo neste século. E não estou pensando no próximo real (o povo) mas nesse próximo oficial, o político-invasor que nem está se importando realmente quando ouve a recusa: faz uma cara aborrecida mas logo vai tomar chope ou cocaína e esquece. Contudo, mostra-se exigente. E costuma fazer perguntas no tom de quem não aprecia respostas pessimistas, o cobrador é o oposto do negativista. Tudo bem?, ele pergunta e o invadido deve responder, Tudo bem! com aquele ar atlético de quem já deu a volta por cima quando na realidade está caído de borco no chão. É o sim do comodismo. Da servidão.

A cega esperança. Com os cegos encarneirados no servilismo que gera a insegurança. O medo. Medo até de sentir medo e daí a fragilizada vontade sonhando com a evasão. Com a fuga. Mas fugir para onde se a Miséria e a Violência (as irmãs gêmeas) estão em toda parte num só galope, montadas nos pálidos cavalos do Apocalypse. Neste Ano do Dragão (Horóscopo Chinês) o homem ficou mais cruel ou ele foi sempre desse jeito mesmo? Dia de dizer Não. Peço a Deus que aumente a minha fé, peço tão ardentemente, é a depressão? E esta dor não localizável, outra gripe? Por pudor não me jogo no chão nem arranco os cabelos que já estão ralos na cabeça dolorida, mas onde está aquele bom invasor (o extraterrestre) que vai ensinar a desatarraxar a cabeça latejante para dependurá-la com delicadeza no cabide? Dissolvo aspirinas. Uma parte de mim mesma se deita no escuro enquanto a outra parte (estou dividida) me aponta a rua. Porque já tem um cobrador no éter (o telefone) cobrando e interpelando, Por que essa voz? Engulo depressa a saliva e respondo que estou bem. Estou ótima! posso até declarar aos quatro ventos, quais são os quatro ventos? Esqueci. Sei de um único vento que apenas varia de intensidade assim como a Pizza dos Quatro Queijos, atração do restaurante: a gente encomenda e ela vem soltando fumaça, quatro queijos! Na realidade, há um único queijo que vai variando ao capricho dos molhos. A solução é fingir (mentir) que a gente acredita e de mentira em mentira ir regredindo até culminar no triunfo do otimismo só alcançado por aquele filme, lembra? O galã levou uma rajada de metralhadora no peito, a camisa ensopada de sangue (suco de tomate ou calda de chocolate?) e ainda assim consegue chegar rastejante até o policial que faz a clássica pergunta: Tudo bem? E o galã responde, Tudo bem! quando devia gritar, Que merda, eu estou morrendo! Mas nesse pedaço entram os violinos (cinema comercial norte-americano) e o galã fica sentimental porque pensa na amada. Mais violinos. Horas non numero nisi serenas! - ele pode citar com a ênfase do relógio no jardim parisiense, Conto somente as horas felizes!
Contagem em dólar! sopra o materialista eufórico. Pois é, a ênfase.

“As coisas. Que tristes são as coisas consideradas sem ênfase”, escreveu o poeta Carlos Drummond de Andrade. Ficam tristes as coisas e a espécie humana, eu acrescento. Com a licença dos ateus eu queria dizer ainda que na ênfase está a alma.

Tive a minha juventude tão impregnada pelo som colonizador que considero um milagre me ver insubmissa nesta altura, tentando desde sempre - ai de mim! - forjar uma vontade com a resistência do ferro.

Manhã de céu claro. Limpo. O motorista do táxi liga o rádio e pergunta se quero escutar esse político falando. Não, respondo. Digo que não gosto de discurso e ele sugere então uma música sertaneja, já estacionou no canal das violas. Desafinadas, descubro e me calo: se essa sua cordialidade não tiver resposta, ele vai se irritar e na irritação pode trombar com o carro da frente, um ônibus que já está invadindo o nosso espaço. Cuidado!, eu sussurro e me encolho inteira para não ser arremessada para fora. Num impacto do qual saio, no mínimo, com uma perna quebrada. Tento relaxar enquanto vou brincando (brincando?) com as idéias: imagino uma senhora de perna quebrada e entrando num pronto-socorro público em dia útil. Ou inútil, não importa, sempre há gente demais. Demais! - exclama o médico ao qual me dirijo com delicadeza, na insegurança a voz fica delicadíssima. A senhora teve apenas uma fratura, ele diz. E olha só como está isso!, explode e corre em seguida para receber um capacete de motoqueiro com miolos dentro. O policial com o capacete está gaguejando, pois o jovem teve a cabeça prensada contra o poste e na colisão ficaram esses miolos, ele esclarece estendendo o capacete. Recolhi o que pude, esclareceu e apontou para o corredor: O corpo é aquele que está ali... Que estava, porque a padiola já vai sendo rapidamente removida. O policial e o médico, ambos precisam correr atrás dessa padiola. Em vão, porque foram interceptados por outro médico que chega esbaforido e perguntando pelo corpo de outra vítima, outra?! Esse segundo médico aponta para a padiola onde está apenas um braço amputado e meio enrolado numa folha de jornal com respingos de sangue. Pasmo total dos dois médicos e do policial gaguejante. Mas logo aparece um senhor bem barbeado, metido numa elegante malha esportiva. Apresenta-se como testemunha: Este não foi um acidente mas um assalto, ele diz fechando o zíper do blusão azul. Eu vinha fazendo o meu cooper quando vi num buraco do asfalto um dedo apontando no meio da lama, tinha chovido, doutor. E o bueiro entupiu, o senhor sabe, estão sempre entupidos. E o braço decepado pelo elemento foi cair justo nesse buraco, o susto que levei! O segundo médico (o primeiro já tinha desaparecido com o policial) inclinou-se para ver melhor o braço com placas de lama e sangue. E ainda com uns restos do tecido da camiseta cavadona, o calor. A testemunha abre o zíper do blusão e prossegue: A vítima vinha guiando o seu Gol último tipo quando fechou o sinal e lá veio o elemento com o revólver que falhou. A vítima então abriu o vidro da janela e abriu os braços, a recomendação é essa, a vítima não deve jamais reagir, ao contrário, deve demonstrar afeto. Infelizmente o elemento não entendeu e puxou a peixeira, tinha falhado o revólver, já dei esse detalhe. E todo mundo que ia passando por perto e fazendo que não estava nem aí, todo mundo vendo e disfarçando enquanto o elemento continuou completando o seu serviço! arrematou a testemunha apontando para a padiola. Puxou o maço de cigarro do bolso do blusão e interrompeu o gesto quando leu o aviso, É proibido fumar. O médico inclinou-se atento até à padiola, Mas o corpo? Onde está esse corpo? A testemunha empertigou-se: Também não sei, doutor! Suponho que o corpo veio na frente, está por aí, disse e apontou vagamente para o corredor atulhado de padiolas e camas improvisadas. Só encontrei esse braço que esqueceram no local, conforme já disse. O resto mesmo eu não sei onde foi parar, isso daí eu não sei. O médico tirou uma pinça do bolso do avental e futucou o corte sob a crosta de sangue: Um trabalho perfeito, disse.

Recolho as pernas para bem junto do banco e olho aflita para o motorista que está atendendo a um chamado no seu celular, dirige apenas com a mão esquerda. Enfim, o ônibus ameaçador já desapareceu no tumulto. Consigo moderar a respiração. A charanga das violas segue livre no rádio e agora o motorista guia com ambas as mãos, depositou o celular ao lado. Abro uma nesga no vidro da janela e onde o vendedor já introduziu uma caixinha, Morangos, dona? Digo Não e vou repetindo o Não ao vendedor que oferece panos de limpeza e ao outro que oferece chicletes, vassouras... A miséria trabalhando, penso e digo um Não mais brando ao moço que oferece uma cestinha de violetas. Aproxima-se um pequeno cacho de mendigos. Fecho depressa o vidro e no espelhinho vejo a cara congestionada do motorista que me lança um olhar agressivo, Está quente, não?

Na avenida ensolarada, a miséria (aquela galopante) me pareceu mais calma. Ainda assim, presente. Abri o vidro da janela esquerda quando o sinal fechou lá no cruzamento. Abre logo! fiquei desejando. Mas esse era um farol distraído, tão distraído que deu tempo para o menino vendedor de bilhetes de loteria vir vindo capengando: equilibrava-se nas muletas debaixo dos braços ossudos e ainda assim avançava rapidamente, esgueirando-se ágil por entre as filas de carros. Mesmo lá longe devia ter visto a janela aberta e agora chegava triunfante. Pronto, conseguiu, pensei recuando enquanto a mão magra entrava pela abertura, não vendia bilhetes mas papel de cartas.

- Cartas perfumadas! anunciou com voz estridente ao abrir o leque colorido de envelopes. Mande uma carta perfumada, olha só, esta tem perfume de rosa! Esta daqui é de jasmim, coisa linda!

Escorreguei para o canto oposto do carro e ele insistindo a sacudir o arco-íris de papel. Senti o perfume adocicado e voltei o olhar ansioso para o farol vermelho, tão vermelho! mas não vai abrir?! E o menino magrela e dentuço falando sem parar, Carta azul é para amigo mesmo, mas esta daqui cor-de-rosa, está vendo? esta é carta de amor! Esta daqui branca é de amor que acabou mas esta roxa é a carta da saudade, a saudade é roxa, leva tudo e faço um preço especial!

Fixei o olhar nas suas duas muletas, uma de cada lado a sustentar o tronco ossudo e saltado sob a camiseta de propaganda política. Então me lembrei de minha mãe lá no seu jardim, as mãos sujas de terra tentando segurar com duas estacas a planta murcha, vergada para o chão.

- Não tenho a quem escrever.
O menino riu a sacudir o maçarote.
- Mas nenhum namorado, uai!

O motorista achou graça e sacudiu os ombros num risinho de cumplicidade, O perfume é bom! aprovou em voz baixa. Voltei-me para o sinal, mas não vai abrir nunca mais? E aquela intimidade que de repente se armou ali dentro, a música sertaneja no auge das violas e o menino também no auge do entusiasmo, a sacudir as cartas:

- Escuta só isso, ele pode estar longe mas vai voltar correndo se receber esta carta verde que é do perdão. Puro cravo!
- Abriu! O sinal abriu, anunciei ao motorista distraído, todo voltado como um girassol para o vendedor.

Ele retomou a direção, eu disse o Não definitivo e as filas dos carros recomeçaram a avançar furiosamente. A mão alada fugiu feito um pássaro pela fresta do vidro. Vi ainda a silhueta magrela esgueirar-se capengando entre as muletas e desaparecer atrás de um jipe.

- Fica para outra vez, eu disse fechando a janela.
- O perfume era bom, resmungou o motorista.

Ele estaria me censurando ou a censura estava apenas em mim? Fui cumprindo as tarefas da rotina: uma passagem pelo banco que achei diferente, mas onde está aquele antigo clima de amenidades, de confiança? Tantos homens
armados. As caras severas - mas este banco virou um quartel? Ouço sem emoção as ofertas de valiosos planos que o gerente oferece e aos quais vou educadamente recusando, Não, não... Parto em seguida para o corredor tumultuado dos Correios e Telégrafos. A fila é bastante longa e então tenho tempo para ouvir os apelos, esta mulher com uma criança quer dinheiro para comprar os remédios, o homem desdentado pede uma passagem para voltar ao Nordeste, o moço com chapéu de vaqueiro quer que eu participe de um sorteio fantástico, posso ganhar um carro importado! Não, Não... vou repetindo e no cansaço faço agora apenas um gesto meio vago para o mendigo que me aborda na calçada e que fixa em mim um olhar interpelativo, Mas o que a senhora tem aí no peito? Uma pedra?

- Podemos ir, eu disse ao motorista que me aguardava no táxi. Ele tinha desligado o rádio e examinava um folheto. A cara fechada.
- Onde agora?

Fiquei muda ao sentir que meu semblante tinha descaído como os semblantes bíblicos nas horas das danações. Baixei a cabeça e pensei ainda em Santo Agostinho, “a abelha de Deus fabricando o mel que destila a misericórdia e a verdade”. Afinal, o dia de dizer Não estava mesmo cortado pelo meio porque na outra face da medalha estava o Sim. A vontade podia servir tanto de um lado como do outro, o importante era escolher o lado verdadeiro e para isso seguir a inspiração da razão. Ou do coração? Ora, liberdade nessa inspiração, toda a liberdade para não me sentir como estava me sentindo agora, uma esponja de fel. A ênfase da inspiração! decidi e levantei a cabeça no susto da revelação: o menino das muletas! Era nele que pensava (e não pensava) o tempo todo.

- Por favor, vamos voltar para o mesmo caminho, pedi ao motorista. Quero comprar as cartas daquele menino, vou comprar todas! anunciei e ouvi minha voz com alegria.

Ele voltou a ligar o rádio. Deu a partida:

- O perfume era bom.

Lá estava o cruzamento da avenida e com o mesmo farol vermelho acendendo glorioso. Abri rapidamente o vidro da janela, Que sorte! E procurei ansiosamente, Mas não era por aqui que ele estava? O motorista saiu do carro para ajudar na busca, olhou para um lado, para o outro, gesticulou. Fez perguntas, E aquele moleque das muletas?...

Abri a porta e perguntei ao jornaleiro, Onde está o vendedor das cartas, você conhece? Então, aquele... ah! onde a mão ossuda sacudindo o jardim do arco-íris, onde?! Vi o vendedor de figos e vi a menina dos caramelos. Fui olhar da outra janela e dei com o jovem dos potes de flores.

- Um menino de muletas vendendo cartas! perguntei e as pessoas tentando vagamente ajudar, Cartas?...

O motorista voltou para a direção, lá adiante o farol já estava verde.

- Mas onde esse moleque foi parar?

Vi ainda o jornaleiro e o camelô dos relógios, vi a mocinha distribuindo anúncios de imóveis, e o menino das cartas perfumadas, esse eu não vi mais.

Fonte:
TELLES, Lygia Fagundes. Invenção e Memória. Editora Rocco, 2000.