sábado, 22 de fevereiro de 2025

Adega de Versos 125 : Cecy Barbosa Campos

 

José Feldman (Roteiro para uma peça teatral) A Pensão do riso

CENÁRIO: 

Uma pensão antiga e um tanto bagunçada, com paredes descascadas e um cheiro peculiar de feijão com arroz. Os hóspedes são uma mistura de personagens excêntricos. 
 
PERSONAGENS: 

- Dona Teresa: A proprietária da pensão, uma senhora de idade avançada, cheia de energia e sempre com um comentário engraçado na ponta da língua. 

- Seu Joaquim: Um aposentado que vive contando histórias de sua juventude, sempre exageradas. 

- Mariana: Uma jovem estudante de teatro, sonhadora e cheia de ideias malucas. 

- Tio Mário: Um viajante que nunca sai da pensão, sempre esperando uma oportunidade de ganhar na loteria. 

- Clara: Uma mulher que vive reclamando, mas que no fundo é bem-humorada. 
 
CENA 1: O CAFÉ DA MANHÃ
 
(A manhã começa com Dona Teresa na cozinha, fazendo barulho enquanto prepara o café. Seu Joaquim já está à mesa, contando uma de suas histórias épicas.) 

Seu Joaquim: (com entusiasmo) E então, eu disse ao piloto: "Se você não me deixar pilotar, eu vou gritar!" E não é que ele deixou? 

Dona Teresa: (sem olhar para ele) Joaquim, você nunca pilotou um avião na vida! 

Seu Joaquim: (fazendo uma pausa dramática) Exatamente. Por isso gritei! O medo é um excelente motivador! 

(Mariana entra, com uma toalha na cabeça e um olhar sonolento.) 

Mariana: Bom dia, pessoal! Alguém viu meu texto? Deixei em cima da mesa. 

Dona Teresa: (rindo) O que você escreveu, querida? "Como fazer uma omelete sem ovos"? 

Mariana: (revirando os olhos) Muito engraçado, Dona Teresa. Era sobre a vida no teatro! 

Tio Mário: (interrompendo) O que eu queria mesmo era um papel no teatro! Se eu ganhar na loteria, vou ser ator famoso! 

Clara: (entrando com um olhar de reprovação) E se você ganhar na loteria, Tio Mário, você vai comprar um par de sapatos novos primeiro? 

Tio Mário: (com um sorriso) Sapatos? Para quê? Para ficar em casa? 
 
CENA 2: O ALMOÇO 

(Durante o almoço, Dona Teresa serve um prato de feijão e arroz, enquanto os hóspedes discutem animadamente.) 

Dona Teresa: (colocando o prato na mesa) Aqui está: feijão com arroz, o verdadeiro banquete da pensão! 

Seu Joaquim: (mordendo o feijão) Ah, Dona Teresa, este feijão é tão bom que eu poderia jurar que você tem um chef escondido na cozinha! 

Dona Teresa: (piscando) Tenho sim. Ele se chama "meu marido". Mas ele não cozinha desde 1980! 

Mariana: (rindo) Então, se você não tem um chef, você é a chef ou a "chefa"? 

Dona Teresa: (com uma expressão de orgulho) Sou a chefa! E não aceito reclamações, a menos que sejam sobre o feijão frio. 

Clara: (murmurando) Se o feijão estiver frio, eu vou reclamar! 

Tio Mário: (levantando a mão) Eu tenho uma ideia! Vamos fazer um concurso de quem consegue comer mais feijão! 

Mariana: (brincando) Isso vai acabar em uma competição de flatulência! 

(Todos riem, exceto Clara, que faz uma cara de desgosto.) 
 
CENA 3: O JOGO DE TABULEIRO 

(Após o almoço, os hóspedes se reúnem na sala para jogar um jogo de tabuleiro. O clima é descontraído.) 

Dona Teresa: (distribuindo as peças) Então, quem vai ser o banqueiro? 

Tio Mário: (levantando a mão) Eu! Afinal, estou esperando a minha grande chance! 

Seu Joaquim: (com um sorriso) Espero que você tenha mais sorte aqui do que na vida real! 

Mariana: (sorrindo) Vamos ver se você consegue ganhar algo além de um sorriso! 

(O jogo começa, e logo a competição esquenta.) 

Clara: (reclamando) Não vale! O Tio Mário está trapaceando! 

Tio Mário: (fazendo cara de inocente) Eu? Nunca! Estou apenas... ajustando as regras! 

Dona Teresa: (rindo) Ajustando as regras? Você quer dizer "mudando as regras conforme sua necessidade"? 

Seu Joaquim: (apontando) Isso soa como uma ótima estratégia para a vida, não é? "Mude as regras e ganhe sempre!" 

Mariana: (pensativa) E se a vida fosse um grande jogo de tabuleiro? Eu escolheria ser uma peça colorida! 
 
CENA 4: A NOITE 

(À noite, os hóspedes se reúnem no terraço da pensão, onde Dona Teresa serve chá.) 

Dona Teresa: (observando as estrelas) Olhem essas estrelas! Lindo, não é? 

Mariana: (suspirando) Eu sempre quis ser uma estrela de teatro, mas acho que vou me contentar em ser uma estrela da pensão! 

Clara: (brincando) E quem disse que você não é? Você já tem um público fiel! 

Seu Joaquim: (levantando o chá) A um brinde, então! Às estrelas da pensão! 

Tio Mário: (interrompendo) Mas eu quero brinde à loteria! 

Dona Teresa: (rindo) Tio Mário, você e suas loterias! Um dia você vai ganhar, e quando isso acontecer, não esqueça de nós! 

Tio Mário: (sonhando) Claro! Vou comprar a pensão e transformar isso em um hotel cinco estrelas! 

Clara: (sarcasticamente) Com o feijão como prato principal, certo? 

(Todos riem e brindam juntos.) 

CENA FINAL: REFLEXÕES E RISADAS 

(Os hóspedes se acomodam nas cadeiras, conversando e rindo sobre suas vidas e sonhos.) 

Mariana: (pensativa) Sabe, acho que a vida é como esse jogo: cheia de surpresas e algumas armadilhas. 

Seu Joaquim: (com um sorriso) E o melhor de tudo é que, mesmo com as armadilhas, temos sempre uns aos outros! 

Dona Teresa: (orgulhosa) Isso mesmo! Aqui na pensão, somos uma família, mesmo que um pouco maluca! 

Tio Mário: (com um brilho nos olhos) E quem sabe um dia eu ganho na loteria e nos levo para uma viagem! 

Clara: (brincando) Desde que eu não tenha que comer mais feijão! 

(Todos riem, enquanto as luzes se apagam lentamente, deixando a cena com uma sensação de calor e camaradagem.) 
 FIM 
Fontes:
José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

Olavo Bilac (A borboleta negra)

Madrugada de domingo no campo, longe da cidade. Logo à primeira claridade do dia, saem os dois de casa, com o Leão, seu companheiro inseparável.

O Leão é quase tão alto como eles. É um enorme cão da Terra Nova, todo negro, de pelo espesso, de goela imensa. É o terror do lugar. Quando ele passa na estrada, acompanhando as duas crianças, rosnando ameaçadoramente, todos se afastam com respeito. E, assim seguidos de perto pelo Leão, Henrique e Leonor estão mais livres de qualquer perigo do que se estivessem guardados por todo um exército.

Amanhecer de domingo. Longe, repica o sino da capela, anunciando a segunda missa. Ainda não saiu o sol.

O vento da manhã sacode as árvores molhadas de orvalho. Nos galhos altos, trilam os pássaros. O ar está cheio do aroma forte dos matos. Passam homens cantando. E o sino da capelinha, cujo repique tem a alegria ruidosa de uma risada de criança, continua a anunciar a missa.

Mas, Henrique e Leonor já foram à primeira missa. As duas crianças agitam no ar os seus grandes sacos de caçar borboletas. Henrique, que é quem carrega a tiracolo a bolsa em que vai o pão da merenda, sabe de um lugar em que há flores de toda espécie. Fica para lá da igreja: é uma pequena clareira dentro do mato, atapetada de uma relva fresca. Aí, onde o sol entra livremente, as borboletas voam, todo o dia, sugando o mel das flores, vibrando as asas rutilantes, azuis, vermelhas, douradas. É para lá que vão os três. 

Leão trota na frente, pesado e enorme, sacudindo a grossa cauda negra. Às vezes, volta, vem lamber as mãos das crianças, e trota de novo, alegre, com a língua pendente e as orelhas abanando. 

Lá vão eles... o sol ainda não saiu. Mas, já entre as nuvens cor de fogo, no nascente, aponta uma claridade viva, que ofusca. Das árvores, caem ainda, como diamantes soltos, os pingos do sereno. E Henrique diz, tiritando:

— Como fez frio esta noite, Leonor!

E tiritando, diz Leonor:

— Coitado, coitado de quem, sendo pobre e não tendo casa, teve de passar esta noite ao relento!...

E lá vão os três.

Já passaram a igreja, muito branca, muito pobre, posta, no alto de uma ladeira íngreme. Viram, na pequenina janela, rodar o sino, cantando, cantando sempre. Viram muita gente, à porta, esperando o padre... e seguiram. De repente, Henrique para:

— É aqui! — diz ele, e aponta uma picada aberta no mato — Olha, Leonor, olha! Já uma borboleta!

Uma borboleta grande, azul, riscada de ouro, saía, dançando no ar. Leonor bate palmas:

— Que linda! Que linda!

E Henrique exclama:

— Vais ver que porção de borboletas há lá dentro, Leonor!

E vão entrar. E Leão adianta-se, e dá dois passos no caminho estreito e escuro, rasgado no seio da folhagem. Mas o cão estaca. E começa a ladrar, a ladrar, a ladrar, furiosamente, perto de um embrulho que está no chão. As crianças aproximam-se, abaixam-se. 

É um embrulho  de panos e flanelas. Alguma coisa agita-se dentro dele. E, quando o Leão deixa de ladrar, as crianças ouvem um gemido muito fraco, muito fraco, que sai da trouxa, toda ensopada de orvalho. Trazem-na para o meio da estrada, com cautela. Abrem-na. 

O sol já saiu. Que sol! O céu, todo azul, está inundado de luz. O sino continua a repicar. Nos galhos altos os pássaros cantam.

— Jesus! É uma criança! — exclama Leonor.

É uma criança recém-nascida que está dentro do embrulho de flanela, é uma criancinha preta, vagindo de manso, de manso, com os olhinhos fechados. Leonor, sentada no chão, põe no colo a criaturinha de pele preta, e começa a embalá-la, já com a seriedade de uma mulher feita: — Coitadinha! Coitadinha!

Henrique, muito sério, está de pé. Henrique é um homem... só tem 9 anos, mas é um homem! E um homem não deve chorar... mas Henrique está chorando, olha a criancinha preta que vage de manso, no colo da irmã. O Leão, curvado, sem ladrar, sacudindo a cauda, com a língua pendente, está também olhando a recém-nascida, com seus grandes olhos inteligentes e carinhosos.

— Coitadinha! Coitadinha! — repete Leonor.

— Que maldade! Que maldade! — murmura Henrique.

Então Leonor tem uma ideia:

— Henrique, vamos fazer uma surpresa à mamãe! Vamos levar-lhe esta pretinha! 

Henrique dá um salto de alegria:

— Vamos Leonor!

E Leonor levanta-se, acomoda no colo o embrulho de panos e flanelas. Henrique apanha os dois grandes sacos de caçar borboletas. O Leão solta um latido de júbilo. E lá vão os três, correndo, pela estrada inundada de sol.

Adeus, borboletas azuis, vermelhas e douradas! Adeus borboletas de todas as cores, que estão bailando no ar, sobre as flores cheirosas e doces! Podeis bailar em sossego! Aqueles dois grandes sacos de gaze, que vinham buscar-vos, voltam para a casa vazios! Deixam-vos em paz, os caçadores! Não pensa em vós Leonor, que vai correndo, correndo, segurando com cautela aquele embrulho, dentro do qual há uma criancinha preta que chora... não pensa em vós Henrique, que corre atrás dela, calado e ofegante... não pensa em vós o Leão, que trota na frente, rosnando, enorme e pesado, com a língua pendente e as orelhas abandando... Podeis bailar em sossego! Hoje, Henrique não subirá, como um macaco, aos galhos altos das árvores, para apanhar os frutos e os ninhos. Hoje, Leonor, cansada de apanhar borboletas, não merendará sobre a relva. Hoje, Leão não dormirá a sua sesta, ao sol, nessa clareira aberta no mato...

Lá vão os três. Ainda passa muita gente que vai a missa. O sino ainda está lá, num repique festivo, chamando o povo. Passa muita gente... Mas os três não dão bom dia a ninguém. Vão correndo, vão correndo, porque querem fazer quanto antes uma surpresa à mamãe. E quando chegam à casa, diz Leonor:

— Devagarinho! Devagarinho!

Entram, como três ladrões. A casa está calada e quieta. A mamãe está com certeza na cozinha. Na varanda, Leonor senta-se, ajeita nos braços a criancinha, e fica a embalá-la, com a seriedade de uma mulher feita. E Henrique e o Leão correm para a cozinha. E, enquanto o cão salta e late, Henrique exclama:

— Mamãe! Mamãe! Venha ver uma borboleta negra que caçamos no mato!

Quando a mãe chega à varanda, para à porta, espantada, Leonor, com a voz trêmula, pergunta:

— Não é verdade, mamãe, que não podíamos deixar morrer de fome esta coitadinha? Que mãe malvada, mamãe! Que mãe malvada, que preta malvada a que abandonou assim esta filhinha! Não é verdade que mamãe também vai ser mãe dela?

— É verdade, minha filha! — diz a mãe. — Foi Deus quem conduziu vocês... Fizeram bem! Fizeram bem! O pão da nossa pobreza há de chegar para mais um filho.

E tomou nos braços a criancinha negra, única borboleta que Henrique, Leonor e o Leão caçaram nesse dia.
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OLAVO BILAC nasceu em 1865, no Rio de Janeiro/RJ. Cursou Medicina, abandonou o curso, tentou estudar Direito, também não concluiu, e passou a escrever para jornais cariocas. Em 1888, publicou seu primeiro livro - Poesias. No entanto, Bilac era firme em seus posicionamentos políticos e discordava do governo de Floriano Peixoto. Por fazer críticas a ele, foi preso em 1892 e também em 1894. O início do regime republicano, portanto, não foi muito agradável para o poeta. Em 1897, fundou, com outros intelectuais, a Academia Brasileira de Letras e ocupou a cadeira de número 15, cujo patrono é o escritor romântico Gonçalves Dias (1823-1864). No ano seguinte, passou a trabalhar como inspetor escolar. A partir daí, o escritor empreendeu uma campanha em prol do nacionalismo, e, inclusive, escreveu a letra do Hino à Bandeira, além de ter defendido o serviço militar obrigatório. Morreu em 1918, no Rio de Janeiro, deixando certo mistério sobre sua vida íntima. Nunca se casou. Um poeta parnasiano, crítico e nacionalista, mas, ao mesmo tempo, boêmio e libertário. Um homem rigoroso e prático, mas que tinha, possivelmente, uma alma romântica. Enfim, um indivíduo complexo, detentor de uma genialidade que o consagrou como Príncipe dos Poetas. 

Fontes:
Olavo Bilac e Coelho Neto. Contos pátrios para crianças. Publicado originalmente em 1931. Disponível em Domínio Público. 
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

Jerson Brito (Asas da poesia) 12


 

Antonio Juraci Siqueira (Sina)

Águas de Março. Dilúvio equatorial engolindo a várzea. Na imensa e imersa paisagem líquida o homem agiganta-se na luta pela sobrevivência. Tudo se torna difícil sob o domínio absoluto das águas. A caça, vasqueira. O peixe e o camarão sumiram como por encanto. O açaí, em início de safra, mal começou a pretar. A fome ronda as cabanas erguidas sobre estacas às margens dos rios. Rios prenhes de solidão e de incertezas onde a esperança passa de bubuia à procura da tábua da salvação.

Em silêncio um casco desliza igarapé acima. Mãos ágeis manejam o remo enquanto olhos atentos varrem as copas dos açaizeiros em busca dos frutos da redenção. A safra promete ser generosa: árvores carregadas de cachos; uns verdes, outros na floração, mal saídos das fofóias (capa de proteção dos cachos de açaí). Os poucos que vão amadurecendo são disputados por periquitos e araçaris.

Venâncio, nascido e moldado sob o jugo dessa realidade, mantém estreita relação com o meio. Conhece, como a palma da própria mão, cada curva de rio, cada enseada, cada igarapé, cada barranco, cada árvore. Nutre particular afeição pelos açaizeiros e trata-os como extensão de sua família. Daí não ter aderido à exploração palmito, responsável pela dizimação de açaizais inteiros. Não atinava como um palmo de talo salobro, vendido por míseros centavos, pudesse valer mais que todo o açaí produzido durante anos a fio por uma única árvore. Não atinava.

Estanca o casco bruscamente e apura o olhar entre a folhagem: um grande cacho, ainda não totalmente preto, parece sorrir-lhe do alto. Encalha o casco na ribanceira e caminha, afoito, rumo à touceira de açaizeiros a poucos passos da margem do igarapé. Para subir providencia uma peconha entrelaçando folhas de açaizeiro e, em seguida, aplica golpes de terçado no chavascal que envolve a touceira, ação preventiva conta a presença de cobras e outros animais peçonhentos que costumam aninhar-se nesses locais. Ajeita a peconha nos pés, enfia o cabo do terçado no cós do calção, abraça-se à árvore e começa subir. 

Já a conhece de outras safras; a cada ano vai ficando mais alta e flexível, enquanto que ele, mais pesado e lento. Vencido mais da metade do percurso o açaizeiro começa a vergar perigosamente. Uma rajada de vento faz a árvore inclinar-se ainda mais, obrigando-o a recuar estrategicamente. O cacho de açaí, a poucos metros, acena-lhe, desafiador. Precisa dele para garantir o pirão das crianças. Pensa nelas. Um menino e duas meninas. Pensa na companheira grávida, em véspera de parto, e ganha forças para continuar. 

A ventania amaina. Recomeça a escalada, vence mais uns metros. Nova refrega, novo recuo. A altura é considerável. Olha para baixo e vê o igarapé como uma boiúna gigantesca serpenteando entre o matagal. Seus pés doem pressionados pela peconha e suas pernas, antes firmes, agora já tremem um pouco. Lembra do irmão mais velho, morto ao cair de um açaizeiro nas mesmas circunstâncias. Pensa em desistir. No meio da safra não se arriscaria tanto. Agora a situação é outra: ir até o fim ou voltar para casa de mãos abanando. 

Apega-se à Nossa Senhora de Nazaré e vence, com rápidas braçadas, os últimos metros que o separam de seu objetivo. O arco atrás de si denuncia o limite máximo de resistência da árvore. Rápido e preciso retira o facão do cós do calção e golpeia a extremidade da munheca do cacho, arrancando-o da haste com a mão esquerda. 

Como um raio escorrega até o meio da árvore que, livre do peso, volta à posição original. Trêmulo, suando frio, respira aliviado. O coração ainda bate forte mas já não há o que temer. Desce, agora sem pressa, até tocar o chão. Livra-se da peconha e firma o peso do corpo no chavascal. 

Sente algo mover-se sob seus pés. Sente a picada. Uma dor fina, lancinante, indescritível percorre-lhe o corpo, do calcanhar à nuca. Rodopia sobre si mesmo e projeta-se ao solo sobre o cacho de açaí...

O Sol ainda vai alto mas os olhos de Venâncio, repentinamente anoitecidos, já não carecem de luz. Já não podem ver o rio, a mata, a jararaca esgueirando-se sorrateiramente entre a folhagem, nem a revoada de periquitos e araçaris que vieram prestar-lhe a última homenagem.
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ANTÔNIO JURACI ALMEIDA SIQUEIRA nasceu em Afuá, no Pará, em 1948. Escreveu diversas obras literárias, entre elas merecem destaque, O Chapéu do Boto (2003), Paca, Tatu; Cutia não! (2008), e Aumentei, Mas Não Menti (2016). Seus poemas, contos e trovas são principalmente inspirados no folclore, nas crenças e saberes populares e pela natureza amazônica. Popularmente ele é conhecido como "o boto" ou o poeta "filho do boto". Em 1978, e foi morar em Belém. cursou Licenciatura em Filosofia pela Universidade Federal do Pará, atua como instrutor de oficinas literárias, artista performista, contador de histórias, e leciona filosofia na rede pública de educação paraense. É considerado um dos poetas mais prolíferos da região Norte do Brasil. Seus trabalhos variam entre publicações de livros de literatura infantojuvenil, literatura de cordel, livros de poesias, contos, crônicas e textos humorísticos. Todo esse trabalho rendeu-lhe cerca de 200 premiações em concursos literários de diversos gêneros, tanto no âmbito nacional, quanto no estadual.

Fontes:
Blog do Boto Juraci
https://blogdobotojuraci.blogspot.com/2008/10/sina.html
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

Vereda da Poesia = 218

Soneto de
ANÍBAL BEÇA
Manaus/ AM, 1946 – 2009

SIMPLES SONETO

Desejado soneto este que é escrito
sem as firulas graves do solene,
que leva na palavra o simples rito
da fala cotidiana. Não condene

no entanto, a falta de um estro especioso,
nem de brega rotule esse meu vezo.
Apenas sinta o som oco e poroso
do fundo mar de anêmonas, o peso

rarefeito das algas nos peraus.
Essa cantiga filtra nossos medos,
as culpas e os tabus, e dá-me o aval

para buscar o simples e em querê-lo
ornamento de estética espartana
na faxina ao supérfluo que se espana.
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Poema de
SILVIAH CARVALHO
Manaus/AM

A SÚPLICA DO BEIJA-FLOR

...Quanto a mim, da solidão me vesti,
Vi sangrar o meu coração sem paz,
A segredar à noite tudo que vivi,
Reluto sozinha, não volto atrás.

O sossego das noites não refrigera meus dias,
Poeta beija-flor... Perdi essa identidade!
Exilada morro aos poucos e comigo a poesia,
Tantos “não” que do “sim”, sinto saudades.

Quisera ressuscitar-me, não mais amar...
Já não percebo do amor o fulgor,
Só o silencio que sua ausência deixou.

Eu preciso me redescobrir no teu olhar,
Voar na essência e sabor do seu vasto jardim,
Alimenta esse beija-flor, traga néctar pra mim...
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Poema de
DOMINGOS FREIRE CARDOSO
Ilhavo/ Portugal

ENERVA-ME ESTA CHUVA IMPERTINENTE
(Fernandes Valente Sobrinho in "Poemas Escolhidos", p. 127)

Enerva-me esta chuva impertinente
Que tomba lá dos céus feitos de breu
E as gotas são o pranto que nasceu
De nuvens que tivessem dor de gente.

O vento ainda faz mais repelente
Cada pingo que o meu rosto ofendeu
Lágrima que do ar se desprendeu
Como um cristal da mágoa que alguém sente.

A chuva tudo alaga, tudo invade
Deixando o fino véu dessa umidade
Caído pelo chão, pênsil dos ramos.

E sobe uma revolta ao meu olhar;
Por que há de a Natureza assim chorar
Do modo como nós também choramos?
= = = = = = = = = 

Poema de
AFONSO FREDERICO SCHMIDT
Cubatão/ SP, 1890-1964, São Paulo/SP

OS PEQUENOS VARREDORES

Pela escura avenida arborizada,
ninguém. Lá para cima,
escuta-se um rumor que se aproxima,
nuvens rolando pelo chão, mais nada...

Depois, enche-se a noite de pavores,
há risos, pragas, uivos;
dançam, ao longe, contra o vento, ruivos
de poeira, pequeninos varredores.

De ombros estreitos e de faces cavas,
lutam com seus destinos,
nas horas em que todos os meninos
dormem e sonham com princesas flavas.

Há, entre eles, alguns que são precoces,
fumam e bebem. Vários,
transitam para a noite dos ossários,
têm o pulmão comido pelas tosses.

Arrastando o esqualor destas sarjetas,
dirão, olhos em brasa,
que é melhor acabar na Santa Casa
do que viver assim, como grilhetas.

E lá se vão. A nuvem se adelgaça;
um senhor, na alameda
sem luz, toma do lenço, que é de seda,
tapa o nariz, inclina a fronte, e passa…
= = = = = = 

Soneto de
FILEMON MARTINS
São Paulo/ SP

GARIMPANDO A FELICIDADE

Vou garimpando pela vida afora
a lição de Humildade que conforta
e traz ao coração a Luz da aurora,
mesmo que a crença já pareça morta.

De solo em solo, busco sem demora
o cascalho do Amor que aduba a horta.
Busco a pedra da Fé, que revigora
e prepara o caminho abrindo a porta.

Não quero, meu amigo, andar a esmo,
minha sorte depende de mim mesmo,
que a vida pode ser melhor assim.

E se meus passos forem tão errantes,
buscando joias, pedras, diamantes,
- não haverá felicidade em mim!
= = = = = = = = =  

Poetrix de
GERALDO TROMBIN
Americana/SP

FUNDO MUSICAL

Pisou fundo no acelerador,
Bateu de frente com o infortúnio.
Marcha fúnebre!
= = = = = = 

Soneto de
AUTA DE SOUZA
Macaíba/RN, 1876 – 1901, Natal/RN+

POBRE FLOR!

Deu-ma um dia uma antiga companheira
Do tempinho feliz de adolescente;
E os meus lábios roçaram docemente
Pelas folhas da nívea feiticeira.

Como se apaga uma ilusão primeira,
Um sonho estremecido e resplendente,
Eu beijei-lhe a corola, rescendente
Inda mais que a da flor da laranjeira.

E como amava o seu formoso brilho!
Tinha-lhe quase essa afeição sagrada
Da jovem mãe ao seu primeiro filho.

Dei-lhe no seio uma pousada franca...
Mas, ai! depressa ela murchou, coitada!
Doce e mísera flor, cheirosa e branca!
= = = = = = 

Hino de 
CANELA/ RS

Canela, terra querida
Onde a gente vive mais
Possuis pinheiros frondosos
E paisagens naturais

No inverno cai branca neve
Neve de encantos mil
Nossa Suíça encantadora
A Suíça do Brasil

Deus, o criador do mundo
Escultor da natureza
Colocou-te junto ao céu
Premiou-te com a beleza

Enfeitou tua existência
E com flores deu teu nome
A cidade do turismo
A cidade das hortências

Canela, terra querida
Onde a gente vive mais
Possuis pinheiros frondosos
E paisagens naturais

No inverno cai branca neve
Neve de encantos mil
Nossa Suíça encantadora
A Suíça do Brasil

Do turista és preferida
Por tua brisa refrescante
És a terra mais querida
Num recanto exuberante

Se existe o céu na terra
Num pedaço do Rio Grande
É na mais bela cidade
Na cidade de Canela
= = = = = = = = =  

Soneto de
BENEDITA AZEVEDO
Magé/ RJ

RESTOS DE SONHOS

Passou a juventude, a sua glória,
inconsequentes risos e paqueras.
Tudo se transformou em vãs quimeras
e a vida de euforia é só memória.

No presente as carências aceleras,
em sonhos de passadas trajetórias.
Mas, a vida em cobranças compulsórias,
deixa-te somente sonhos que veneras.

Duvidosa promessa já acolhida,
não deixa tua alma já liberta
desta lembrança triste, animicida.

Restos de sonhos e esperanças cedem
e o esquecimento nesta fresta aberta,
invade os pensamentos que se perdem.
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Cantiga Infantil de Roda
ROCK DO RATINHO
(Cyro de Souza)

Era uma vez um ratinho pequenino
que namorava uma ratinha pequenina
e os dois se encontravam todo dia
num buraquinho na esquina

rock rock rock rock rock
é o rato e a ratinha namorando
rock rock rock rock rock
é o rato e a ratinha se beijando

o ratinho lhe trazia todo dia
um pedaço de toucinho fumeiro
um tiquinho de manteiga, um queijinho
e um pouquinho de manteiga no focinho

rock rock rock rock rock
é o sino da igreja badalando
rock rock rock rock rock
é o ratinho e a ratinha se casando…
= = = = = = = = =  

Quadra Popular de
AUTOR ANÔNIMO

Na rua não sei de onde
puseram não sei que santo,
pra rezar não sei o quê,
e ganhar não sei lá quanto.
= = = = = = = = =  

Poema de
VANICE ZIMERMAN
Curitiba/PR

JANELA DE SONHOS...

A janela entreaberta
Ainda à espera
Dos sons da tua volta...
Há tanto silêncio
Em tua ausência,
Que inquieta  a alma...
Busco teu olhar, tuas mãos
E não as encontro,
Encontro à saudade
Que se despe
Das rendas tecidas de poesias
E deságua
Em lágrimas…
= = = = = = 

Eduardo Martínez (Papai e a caixa de gordura)

Sou o caçula lá em casa, apesar de já não ser tão pequeno assim. Estou com quase doze anos ou, como um tio carioca fala, "douze". Acho engraçado, pois ele nem percebe que fala assim, tamanha a naturalidade. Por falar nesse meu tio, ele também não sabe ou não quer pronunciar mesmo, mas "mermo".  Prefiro nem corrigir o gajo, ainda mais porque ele é metido a escritor. 

Gente, por que estou falando do meu tio? A ideia inicial não era essa. É que quero contar uma coisa que aconteceu há poucos dias, e que levei três dias para me livrar do fedor.

Sabe caixa de gordura? Pois é, de vez em quando, meu pai limpa a daqui de casa. Que nojo! Então, sempre que percebo que ele está separando os apetrechos para limpá-la, trato de me esconder. Mas eis que, na semana passada, o meu velho me pegou distraído.

— Gabriel, vem cá me dar uma mão.

— Ah, pai, tô ocupado.

— Ocupado? Tu tá aí de bobeira no sofá, que eu sei.

Sem ter desculpas para inventar, tive que encarar a tarefa de ajudar papai. Mas que ele não viesse com a ideia de querer me fazer meter a mão naquela gordura com cheiro repugnante. Eca!

 — O que foi, pai?

 — Traga a mangueira até aqui. 

 Fiz o que meu pai mandou e quis entregá-la. Meu velho me olhou com uma cara de nenhum amigo.

 — Gabriel, não tá vendo que tô com as mãos ocupadas?

 — Hum...

 — Hum o quê?

 — Nada.

 — Ligue a mangueira e jogue água dentro da caixa de gordura. 

 Meu pai, que já havia transferido quase toda aquela gosma da caixa de gordura para um balde ao lado, ficou observando a minha lerdeza. Finalmente, liguei a torneira. Não tardou, a água começou a sair forte que nem ducha.

 — Gabriel, aponte a mangueira pra caixa de gordura!

 — Tô tentando, pai!

 — Gabriel, você tá me molhando todo!

 Era verdade. Meu pai parecia ter saído de um temporal, pois eu, com o estômago embrulhado por conta daquele cheiro horrível vindo principalmente do balde ao lado, não conseguia direcionar a mangueira de modo certeiro. 

— Num vai vomitar em mim, não!

Nunca papai foi tão profético. O vômito saiu como cachoeira sobre os negros cabelos do meu pai. Era possível ver nitidamente dois ou três grãos de milho no cocuruto do meu coroa. Furioso que ficou, papai perdeu qualquer noção de racionalidade. Sabe o que ele fez? Pois acredite, ele fez mesmo! Despejou todo o conteúdo do balde sobre os meus lindos cabelos. Pode uma coisa dessa?

Mamãe, quando viu, quis brigar com meu pai. No entanto, não sei o que deu nela, pois desandou a gargalhar diante do estado de calamidade que ficou minhas lindas madeixas. Pior foi a minha irmã quando soube. Não perdeu a oportunidade de me apelidar de Gabriel Gordurinha. Ainda bem que o apelido não pegou, se bem que, vez ou outra, meu tio, aquele mesmo que só fala “douze” e “mermo”, me chama assim. 

Tive que gastar dois frascos inteiros de xampu e quatro sabonetes para me limpar. Pode parecer engraçado para você, mas juro que, ainda hoje, cada vez mais próximo ao meu aniversário, ainda sinto aquele fedor. Não tenho mágoa do papai por conta do que fez, mas creio que ele pegou pesado demais comigo naquele dia.
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EDUARDO MARTÍNEZ possui formação em Jornalismo, Medicina Veterinária e Engenharia Agronômica. Editor de Cultura e colunista do Notibras, autor dos livros "57 Contos e crônicas por um autor muito velho", "Despido de ilusões", "Meu melhor amigo e eu" e "Raquel", além de dezenas de participações em coletânea. Reside em Porto Alegre/RS.

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quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

José Feldman (Guirlanda de Versos) * 20 *

 

Eduardo Affonso (Rádio Montanheza, ZYV-4)

Não queiras gostar de mim sem que eu te peça.

O pedido, por vezes, emergia do rádio, mas normalmente vinha mesmo da minha mãe, e sua voz serena, afinada, tomava a casa, invadindo-a – e a mim, e a minha vida – a partir do quarto de costura, da cozinha, do quintal.

Eu não entendia os adultos. Por que nem às paredes ela podia confessar de quem gostava?

As canções eram uma passagem secreta para esse mundo que me esperava quando eu tivesse menos cabelo, fosse indiferente às crianças e conseguisse amarrar meus próprios cadarços.

Eram elas que me alertavam que la distancia hace el olvido, que esa paloma no era otra cosa más que su alma, que tengo miedo a perderte, perdete outra vez, que solamente una vez amé en la vida (solamente una vez, y nada más).

Eu ainda não sabia o que eram os idiomas, e achava bonito aquele jeito de falar uma palavra conhecida em meio a tantas outras inventadas – um truque que, soube depois, se chamava mexicano, e vinha de Cuba, da Argentina, de Acapulco (Acapulco era o lugar mais lindo do mundo, logo depois do Rio de Janeiro).

O rádio (imenso, de madeira, grandes botões roliços, no centro um palmo de tecido de xadrez miúdo, parecendo uma cortina prestes a se abrir), ficava na cozinha. Eu o arrastava ao quarto de costura, à janela que dava para a varanda, e aí me percebia que meu coração (un corazón de melón, de melón melón melón) batia em ritmo de bolero, de rumba, de samba-canção.

A música se misturava à vida. Era a vida.

Quando o carteiro chegou, e seu nome gritou, com uma carta na mão, minha mãe lavava roupa no quintal. Risque meu nome do seu caderno – minha mãe varria a casa – eu não suporto o inferno – estendia camas – do nosso amor fracassado. Que queres tu de mim? (minha mãe temperava o feijão) que fazes junto a mim? (minha mãe descamava as sardinhas) se tudo está perdido, amor? (minha mãe refogava coxas, sobrecoxas, aposta). Você há de rolar como as pedras que rolam na estrada – minha mãe com o ferro de passar – sem ter nunca um cantinho de seu pra poder descansar.

Enquanto o planeta pulsava iê iê iê, eu queria a rosa mais linda que houver, e a primeira estrela que vier, para enfeitar a noite do meu bem.

Nunca soube o que ia dentro da minha mãe, dos sentimentos que nem às paredes ela confessava. Mas inventei que dentro do rádio havia pessoinhas miúdas (do tamanho dos índios e cowboys que vinham nos vidros de Toddy), e que se a cortina xadrez se abrisse de repente (um dia se abriria), eu os veria – Dolores Duran, Ângela Maria, Dalva e Herivelto, Trio Los Panchos – de vestido vermelho, de sombrero, em seu mundo de miniatura feito de desenganos, desditas, perfídias e ilusões.

Eu não queria ser adulto, para querer quem não me quer, e quem me quer mandar embora. Para ter de me perguntar o que será da minha vida sem o teu amor, da minha boca sem os beijos teus, da minha alma sem o teu calor. Seria como eu era para sempre, sem saber que a deusa da minha rua tem os olhos onde a lua costuma se embriagar, sem me importar se Conceição vivia no morro a sonhar com coisas que o morro não tem, sem amanhecer pensando em ti, anoitecer pensando em ti, sem me cansar de pra você não ser ninguém.

Mas a vida veio e levou a voz de minha mãe (qué bonitos ojos tienes, debajo de esas dos cejas), o rádio do meu avô (por que não paras, relógio?), os lábios que beijei, mãos que eu afaguei (as mãos salpicadas de branco de minha avó), e a diminuta Dalva (tudo acabado entre nós, já não há mais nada) para trás do tecido xadrez que nunca se abriu.
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EDUARDO AFFONSO, arquiteto mineiro de Belo Horizonte/MG, 1950. Colunista do jornal O Globo. Coordena a Oficina Literária Eduardo Affonso, voltada para cronistas. Participa do coletivo literário Flique.

Fontes:
Blog do Eduardo Affonso. 30 janeiro 2025.
https://tianeysa.wordpress.com/2025/01/30/radio-montanheza-zyv-4/
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Abbie Phillips Walker (Festa na casa do sr. Raposo)

O Sr. Raposo era frequentemente perturbado pelo Sr. Cão e seu dono, então ele decidiu se mudar para o primeiro andar da floresta em vez de morar no andar térreo. Uma noite, ele olhou em volta ao luar e, para sua alegria, descobriu o lugar que queria morar.

Era uma casa construída nos galhos de uma grande árvore. Alguns meninos provavelmente haviam construído no ano anterior. 

“Com alguns reparos aqui e ali, esta será a casa mais bonita da floresta”, disse Raposo satisfeito.

Então ele foi procurar tudo o que precisava para tornar sua casa confortável longe do Sr. Homem. Ele até encontrou uma velha chaminé para manter seu fogão queimando bem. E em poucos dias, o Sr. Raposo contou a todos os seus amigos sobre sua nova casa e os convidou para uma festa em casa.

O Sr. Cobra, o Sr. Rato de Bolsa e o Sr. Esquilo não se incomodaram quando descobriram que a nova casa do Sr. Raposo estava na grande árvore. Mas o Sr. Coelho e o Sr. Texugo pareciam muito tristes e disseram que não aceitariam o convite amigável do Sr. Raposo, por mais que quisessem. Eles não podiam subir na árvore.

O Sr. Raposo pegou uma escada emprestada do Sr. Homem, e quando o Sr. Coelho e o Sr. Texugo disseram que não poderiam vir, ele percebeu que teria problemas para entrar em casa, especialmente se estivesse com pressa. Então ele decidiu que o Sr. Homem provavelmente não precisava da escada tanto quanto ele e que a escada seria uma boa adição à sua casa.

Quando ele contou ao Sr. Texugo e ao Sr. Coelho sobre a escada, eles decidiram ir, afinal, e uma noite, quando a lua estava brilhando, todos os animais iriam à casa do Sr. Raposo para comer. O Sr. Raposo achou que gastaria menos dinheiro se desse sopa aos convidados, então pegou todos os ossos que havia recolhido e os colocou em uma panela no fogão para cozinhar.

A fumaça subia de sua chaminé e espalhava o delicioso aroma de sopa. O Sr. Cão, que por acaso estava correndo pela floresta, viu a fumaça e sentiu o cheiro delicioso. Ele abanou o rabo e olhou para a casa na árvore. Então ele uivou e arranhou a árvore e, ao contorná-la, com os olhos fixos na casa o tempo todo, esbarrou na escada.

“Ah, que sorte!” ele disse, subiu e foi até a casa do Sr. Raposo, onde tirou a tampa da panela.

Levou menos de um segundo para tirar a panela do fogão, despejar a sopa na pia e deixar os ossos esfriarem. Então ele teve um delicioso banquete. Ele comeu até ficar sonolento, depois deitou no chão e adormeceu. O Sr. Cão não sabia que o Sr. Raposo morava naquela casa. Não que tivesse medo dele, mas teria dormido com um olho aberto para poder agarrá-lo.

O Sr. Raposo vagou pelas colinas, procurando um peru ou uma galinha perdida, e só voltou para casa quase anoitecendo. Subiu a escada correndo sem acender a luz e foi direto ao fogão ver como estava a sopa. Então ele tropeçou no Sr. Cão. O Sr. Cão deu um pulo com um latido rouco. O Sr. Raposo fugiu o mais rápido que pôde, mas não usou a escada, pulou pela janela e quase quebrou o pescoço. O Sr. Cão latiu ferozmente para ele.

O Sr. Raposo não parava de correr, e o Sr. Cão, pensando nos ossos que ainda não tinha comido, afastou-se da janela e atirou-se sobre os ossos. Enquanto ele ainda comia, chegaram os primeiros convidados da festa. O Sr. Cobra não precisava da escada para entrar, nem o Sr. Rato de Bolsa. O Sr. Esquilo não teve problemas para escalar. Mas eles pensaram que seria indelicado ir de qualquer outra maneira.

O Sr. Rato de Bolsa subiu a escada primeiro, seguido pelo Sr. Cobra. Então o Sr. Texugo e o Sr. Coelho subiram, enquanto o Sr. Esquilo subiu correndo a escada. Quando estavam na metade do caminho, o Sr. Cão, que ouviu barulho do lado de fora, foi até a porta. Ele deu a eles a maior surpresa de suas vidas, mas ele próprio ficou tão surpreso que nem latiu a princípio.

Depois que ele se recuperou do choque, ele saiu pela porta latindo. Mas o Sr. Cão não estava acostumado a descer uma escada e, no primeiro degrau, escorregou e caiu. Os convidados pularam imediatamente quando o Sr. Cão latiu, mas ainda não haviam saído do caminho quando o Sr. Cão caiu em cima deles. Junto com o Sr. Cão, o Sr. Rato de Bolsa, o Sr. Cobra e o Sr. Texugo caíram.

O Sr. Esquilo pulou em um galho da árvore e não se intimidou com a provação. Ele disse que era a visão mais engraçada que já tinha visto e tinha uma bela vista de onde estava sentado. Mas o Sr. Coelho disse que tinha certeza de que sua perspectiva era a melhor porque ele estava mais próximo da base da escada quando a queda começou. Ele tinha acabado de sair do caminho a tempo quando todos caíram no chão.

“Não dava nem para ver quem era quem, era um caos”, disse o Sr. Coelho, que mais tarde conversou sobre isso com o Sr. Esquilo.

Demorou muito para o Sr. Raposo convencer os convidados de que não pretendia receber o Sr. Cão em sua festa em casa. Mas quando o Sr. Esquilo disse a eles que realmente foi o Sr. Cão que comeu os ossos do chão e limpou a panela sem o Sr. Raposo saber, eles finalmente perdoaram o Sr. Raposo. O Sr. Raposo decidiu que o andar térreo era o mais seguro para ele, afinal. Quando ele se estabeleceu novamente, ele deu uma nova festa em casa, mas desta vez, o Sr. Cão não estava lá, felizmente.
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ABBIE HOXIE PHILLIPS JACOB WALKER foi uma autora americana conhecida por suas contribuições cativantes para a literatura infantil no início do século 20. Nascida em Exeter, Rhode Island, Estados Unidos, em 1867. Walker cultivou um estilo que envolvia o caprichoso e o didático, com o objetivo de entreter e instruir as mentes jovens. Grande parte da escrita de Walker está encapsulada em sua deliciosa coleção de histórias para dormir intitulada 'The Sandman's Hour: Stories for Bedtime', que foi publicado em 1916 e despertou a imaginação de inúmeras crianças ao longo das gerações. Nesta antologia, Walker exibe uma propensão para elaborar contos imbuídos de um senso de admiração e lições morais, adaptado para mandar as crianças dormir com sonhos inspirados em suas proezas narrativas. Seu estilo literário muitas vezes espelha a tradição oral de contar histórias, com uma qualidade lírica que ecoa a atemporalidade dos contos populares. A abordagem sutil de Walker ao tecer contos que falam tanto da inocência da juventude quanto da sabedoria buscada pelas mentes em crescimento tornou suas obras clássicos duradouros no domínio da literatura infantil. Embora informações biográficas detalhadas sobre Walker sejam relativamente escassas, seu corpo de trabalho continua a falar de seu legado como autora cujas histórias embalaram e inspiraram, muito parecido com o Sandman homônimo de seu livro mais conhecido. Faleceu em 1951.

Fontes> 
Abbie Phillips Walker. Contos para crianças. Disponível em Domínio Público.
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