sábado, 29 de abril de 2023

Tertúlia da Saudade 04: Héron Patrício

 

Samuel da Costa (Ana Paula Caetano)

Estava ela pensando na figura da mulher vestida toda de branco e seu olhar sem vida, que complacentemente chamava as pacientes para o que parecia ser mais uma consulta, a voz da atendente era de um tom monocórdio e quase sem vida. Como se fosse um ato mecânico, que se repetia dia após dia. 

Ela também pensava no que deixará para trás, quando passou pela porta envidraçada. Aquele local que parecia ser uma clínica hospitalar, mas na verdade o lugar cheirava a morte, pairava no ar o olor putrefato de cadáveres.

 Pensara na decisão repentina que ela tomou: — Porque não fiz o aborto meu Deus? Ana Paula Caetano pensava em tudo, na família, na vergonha e nos que os outros iriam falar e os dedos em riste. Ela pensou em todos e todas, menos no filho que teria para cuidar sozinha daqui alguns meses.  

Fonte:
Texto enviado por Samuel da Costa

Fabiane Braga Lima (Abrace a vida....)

O silêncio muitas vezes é assustador, mas também é instigante, pois nos evolui, conecta-nos com a alma. Certos barulhos tortura-nos, e são extremamente invasivos.   

De repente, somos nós, reféns de uma alma vazia, sem amor próprio. Toda mulher deve se respeitar, exigindo respeito. Não, não é preciso deixar de amar ou sonhar, mas para tudo existe um certo limite na vida. Domine a técnica do silêncio para se conhecer melhor, evitando assim, desrespeito e muita humilhação.

Muitos que se dizem amigos, mas perdoem, e se perdoam, não guardem mágoas ou rancores. Mágoas e rancores geralmente acumulam doenças psicossomáticas. Leia um livro, tenha a ousadia de sonhar e amar, esse é o melhor remédio. Bem-vindo ao século XXI. Ei, Abrace a vida! Ame-se…

Fonte:
Texto enviado por Samuel da Costa

Afrânio Peixoto (Trovas Populares Brasileiras) – 12

Atenção: Na época da publicação deste livro (1919), ainda não havia a normalização da trova para rimar o 1. com o 3. Verso, sendo obrigatório apenas o 2. Com o 4. São trovas populares coletadas por Afrânio Peixoto.


A bonina é disfarçada,
quem me dera ser assim!
É bem asneira morrer
por quem não morre per mim.
= = = = = = = = = 

A bonina é flor da noite,
não abre senão de tarde:
Não há mal que sempre dure,
nem bem que não se acabe.
= = = = = = = = = 

A folha da bananeira
de comprida amarelou;
A boca de meu benzinho
de tão doce açucarou.
= = = = = = = = = 

A folhinha do alecrim
cheira mais, quando pisada:
Há muita gente que é assim,
mais ama se desprezada.
= = = = = = = = = 

Alecrim verde cheiroso,
tem o cheiro diferente.
Este nosso doido amor
dá combate a muita gente.
= = = = = = = = = 

As florzinhas do coqueiro,
vem o vento, vão ao chão:
Fazem assim os meus olhos
se passa o meu coração.
= = = = = = = = = 

Cajueiro, cajueiro,
quem te botará no chão?...
Debaixo das tuas ramas
foi a minha perdição...
= = = = = = = = = 

Cravo roxo no meu peito
logo me cai a semente.
É melhor morrer de um tiro
que de ti viver ausente.
= = = = = = = = = 

Do pinheiro nasce a pinha,
da pinha nasce o pinhão,
da mulher nasce a firmeza,
do homem a ingratidão.
= = = = = = = = = 

Eu passei por um craveiro,
tirei um cravo com a unha.
Quem toma o amor dos outros
não tem vergonha nenhuma.
= = = = = = = = = 

Eu sou como a flor da murta
daquela que cai no chão.
Quanto mais carinhos faço,
mais desenganos me dão...
= = = = = = = = = 

Lá detrás daquela serra
tem um pé de pimenteira,
para se botar na boca
de quem for mexeriqueira.
= = = = = = = = = 

Limoeiro é pau de espinho
donde nasce a penitência.
Acharás neste meu peito
dobrada condescendência.
= = = = = = = = = 

Logo mando quatro cravos
todos quatro por abrir...
Meus braços estão abertos,
sempre que tu queiras vir.
= = = = = = = = = 

Meu coração é um jardim.
todo enfeitado de grades,
Com suspiros, não-me-deixes,
mal-me-queres e saudades.
= = = = = = = = =

Nasce a lima da limeira
de uma semente que tem.
Não pode haver desavença
de dois que se querem bem.
= = = = = = = = = 

Não há quem tire do pasto
tiririca e carrapicho.
Minha cegueira por ti
é mais que amor, é rabicho.
= = = = = = = = = 

No jardim da formosura
eu fui colher um jasmim,
mas a morte traiçoeira
colheu-o antes de mim.
= = = = = = = = = 

0 amor que vai ser meu
anda na flor do poejo,
pulando de galho em galho,
eu fazendo que não vejo.
= = = = = = = = = 

0 coqueiro de sabido
foi-se por naquela altura,
pensando que eu não sabia
quando tem fruta madura.
= = = = = = = = = 

0 cravo também se muda
do jardim para o deserto.
De longe também se ama,
quem não pode amar de perto.
= = = = = = = = = 

Plantei o milho num mês
e no outro embonecou:
Mandei-te um beijo outro dia,
lá se foi e não voltou.
= = = = = = = = = 

Quatro flores no meu peito
fizeram sociedade:
Sempre-viva, amor perfeito,
martírio roxo e saudade.
= = = = = = = = = 

Se a perpétua cheirasse,
era a rainha das flores.
Como a perpétua não cheira,
Perpétua não tem amores.
= = = = = = = = = 

Sou como a hera que sobe,
se acha muro de feição,
mas quando o muro se acaba,
pendem os ramos pelo chão.
= = = = = = = = =

Vinde cá, meu limão doce,
saboroso de comer.
Não descubras meu segredo
que a ti só dei a saber.
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Vinde ó, meu cravo d'ouro,
minha semente de prata,
a tua vista me alegra
o teu retiro me mata.
= = = = = = = = = 
Fonte:
Disponível em Domínio Público.
Afrânio Peixoto (seleção). Trovas populares brasileiras. RJ: Francisco Alves, 1919.

Maria Amália Vaz de Carvalho (O anel do diplomata)

— Parecia que vendia saúde... Tão forte que era!...

— É verdade! Quem o havia de dizer!

— Era uma criança ainda, tinha pouco mais de setenta anos, volveu outro que, pela figura e pelo andar trôpego e vacilante, denotava ter os seus oitenta, bem puxados.

— E olhe que era um bom homem! Você não viu como a filha chorava quando o pusemos em cima da cama? Cortava o coração, coitadinha!

— E honradinho! Eu sei cá! Poucos se topam por aí com tão bons sentimentos e com cara tão limpa...

— Lá isso é!...

— Não, que quem sabe aos seus não degenera!

— Era muito amigo da pobreza! – tartamudeou uma velha.

— Ó Cristo! Era o pai da pobreza, é o que vosmecê deve dizer, tia Joaquina.

— E depois olhe que era o melhor letrado destas oito léguas em redondo.

— Aquilo era um selvagem...

Assim falavam alguns indivíduos pertencentes a diversas categorias da pequena sociedade da vila de X***, descendo as escadas da casa do advogado Vasconcellos que caíra mortalmente fulminado por uma congestão cerebral, no momento em que defendia calorosamente um indivíduo que numa alucinação brutal de ciúme assassinara a mulher e dois filhinhos.

O advogado Vasconcellos morrera pobre, sorte de todos os causídicos de província, que logram vencer, quando muito, por mês, o que qualquer dos colegas de Lisboa e Porto dá aos seus agaloados trintanários.

Segundo filho de uma casa de bom nome na província do Minho, cursava cânones e leis na Universidade, no ano de 1828, emigrando nesse mesmo ano, e vindo terminar o curso mais tarde, depois de ter defendido a causa da liberdade, em parceria com outros codiscípulos, que tão assinaladamente se distinguiram depois na politica, nas armas e nas letras.

Depois de formado, recolheu-se á sua vila natal, e não podendo contar com a mesada que seu irmão lhe arbitrara, visto que os rendimentos da casa mal chegavam para a alimentação e sustento do primogênito, abriu banca de advogado, dependurando de um dos lados da estante de pinho, encimada pela pasta verde e encarnada de quintanista, a lata com os seus pergaminhos de bacharel in utroque (num e noutro), e de outro lado a farda impregnada da pólvora de vinte combates e varada pelas balas dos servidores de Del-Rei nosso senhor, no cerco do Porto.

A formosa irlandesa que o acompanhara no exilio, e que lhe foi denodada companheira nas ásperas provações da vida, morreu-lhe pouco tempo depois, deixando-lhe dois filhos, um rapaz e uma menina.

Tanto um como outro eram educados com solicitude e esmero, que para a educação dos dois não se forrava aquele pai amabilíssimo, nem a despesas, nem a trabalhos.

O rapaz foi para Coimbra, e a menina para o convento das Salesias em Lisboa, de onde recolheu quando o irmão entrava para o primeiro ano jurídico.

— É preciso estudar, Antonio, olha que se eu não tivesse aquelas cartas, tinha de andar a cavar nas hortas de meu irmão, ou de esmolar nas escadas ignóbeis das secretarias um lugar de porteiro ou de amanuense, e isto ainda assim, apresentando como documento dos meus serviços aquela farda...

Não eram necessários estes conselhos. Antonio de Vasconcellos foi sempre um sisudo moço, estudioso, o que não quer dizer que aquela mocidade fosse bisonha e avessa às ridentes alegrias dos vinte anos.

Pobre da árvore que ao sorrir da primavera não se cobre de flores, e em cujos ramos folhados e a cuja seiva não cantam as toutinegras e não assobiam os melros!

Recolhia-se á sua casa, em Coimbra, o moço estudante, alegre e contente de si por ter correspondido bizarramente, numa sabatina, ao alto conceito em que o curso o tinha, quando lhe entregaram uma parte telegráfica.

Rasgou alvoroçadamente o sobrescrito, leu e empalideceu horrivelmente.

— Meu querido pai! – murmurou, e curvado sobre a sua mesa de estudo deixou cair a cabeça nos punhos fechados. – Pobre pai! Pobre pai! Que me não chegou a ver bacharel!

Na manhã do dia seguinte entrava por casa dentro, ao passo que descia as escadas o caixão em que vinha metido o pai.

Quiseram-no afastar, esconder-lhe aquele espetáculo lutuoso, mas ele resistiu, e abraçado ao cadáver do pai chorava como choram os que de repente sentem que o braço amável que os guiava nesta vida enfraquece e esfria para sempre, deixando-os na mais desconsolada e álgida das solidões.

Amparado nos braços de um amigo da infância, entrou no aposento em que a irmã pálida e desfeita expedia gritos clamorosos e histéricos.

— Sozinha, repetia a mísera, sozinha!

— E eu, minha querida Francisca? Não te lembraste do teu irmão? – disse o moço engolindo as lágrimas, e fazendo-se forte para dar coragem à desgraçada menina.

Assim no alto mar quando o temporal arrepia e enovela as ondas, e o velame bate nos mastros com o ruído molhado das asas de uma ave que se afoga, e a marinhagem assustada grita e pragueja ante a morte próxima e inevitável, o capitão que tem filhos e esposa, longe numa pequena aldeia à beira-mar, dá ordens com voz tranquila, e comanda a manobra com a serenidade de quem vê perto as águas quietas e espelhadas do ancoradouro.

Passados alguns dias, desceu o estudante ao escritório. Examinou as gavetas e os móveis, a ver se o pai havia feito as suas últimas disposições. Não encontrou senão minutas, autos, libelos em princípio, considerações jurídicas.

— Parece-me que o estou vendo! A última vez que o vi, estava aqui sentado e perguntou-me a rir se eu sabia o que era um libelo! — disse o moço para a irmã, que o acompanhava. — Respondi-lhe, e ele tornou:

— Caspita! Pois olha, que quando deixei Coimbra não o sabia. A minha universidade foi esta banca. Aqui é que se aprende, deixa lá! E depois tu verás!

Mal sabia ele que eu nunca havia de ver isso...

— E porque, Antonio?

— Porque? Porque estamos paupérrimos. O pai morreu honrado, mas sem recursos. O que nos resta, filha, são umas cinquenta moedas, que a nossa velha Joanna ajuntou com as soldadas ganhas no serviço da casa de nossos avós, e nesta... casa que é hoje dela, porque é ela que nos tem sustentado desde que nos faltou o nosso querido amigo...

Bateram neste momento à porta do escritório, Antonio de Vasconcellos foi abrir. Apareceu no limiar da porta um lavrador que disse, desbarretando-se:

— Queria dar uma palavra ao sr. doutor...

— Meu pai faleceu esta semana...

— O quê? E eu que o vi ainda há dias tão forte e rijo! Em nome do Padre e do Filho... É o que nós somos neste mundo... Que Deus o tenha na sua glória, que era um homem às direitas... Então queira perdoar.

E saiu enquanto os dois com os olhares atados um no outro, perguntavam naquela muda linguagem, o que seria deles desamparados e sós naquele temporal, que tão subitamente lhes escurecera o azul sereno da vida.

Alguns amigos do advogado e um pároco daquelas circunvizinhanças, reunidos num sagrado pensamento, ajustaram entre si dar uma mensalidade a Antonio de Vasconcellos, que a rogos da irmã aceitou aqueles adiantamentos como uma divida que satisfaria mais tarde.

Temos o nosso estudante formado e pronto. Logo que se viu senhor dos títulos alcançados pelo seu estudo e aplicação, foi á vila natal agradecer aos que o haviam tão evangelicamente amparado e, por conselhos de um codiscípulo, dirigiu-se a Lisboa, onde fixou residência, e entrou a frequentar o escritório de um dos advogados de mais renome no foro da capital.

Ir para a província trabalhar como um mouro, estudar como um beneditino; Para quê? O resultado conhecera-o ele, que o exemplo lhe fora mais que manifesto na própria família. Em Lisboa encontraria campo mais dilatado onde desafogar as suas altas aspirações.

O pior seria o primeiro ano e ainda o segundo, mas depois acudiriam os clientes, e o seu nome adquiriria a gloriosa reputação com que outros de menos talento se ufanavam.

— A princípio, Francisca, dizia o moço doutor, não correrá tudo conforme nossos desejos, mas tu hás de ter muita coragem, não é assim? Quando eu entrar em casa, e vir um sorriso na tua boca, verás como me lanço ao trabalho com vontade e com intrepidez...

Pobre criança!
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Naquela época chegara a Lisboa um individuo que fora o mais perdulário dos leões da Lisboa de há trinta anos, e que presentemente ocupava um elevado lugar diplomático em uma corte estrangeira.

Contavam-se deste homem excentricidades que fariam morrer de inveja o mais fastiante e esplênico dos lordes. Batera-se vinte vezes e por motivos diversos, por questões de jogo, por questões de mulheres, e por questões de política.

Espirituoso, valente e rico, passou pelo mais bem acabado produto do seu tempo e do seu meio.

Agora velho mas sempre original e taful, era estimado por todos, querido nas salas, temido ainda na imprensa e respeitado pelos políticos a quem asseteava com o acre azedume de quem já mourejou nos bastidores da política, e lhes conhece de sobejo os obscuros mistérios.

Estava Antonio de Vasconcellos no Chiado, conversando com um codiscípulo, quando o diplomata apeou de um trem, e se deteve a conversar alguns instantes com umas senhoras que iam passando.

— Sabes quem é aquele sujeito? – perguntou-lhe o codiscípulo.

— Não.

— É Jorge de Alvim. O velho mais moço que passeia nesta cidade sorumbática e preguiçosa...

— Esse nome não me é estranho. Foi codiscípulo de meu pai que o estimava e tinha em grande conta, e até se me não engano, queimei uma grande correspondência travada entre aquele homem e meu pai. A ele pessoalmente não conhecia, mas é simpático.

— E homem de grande influência política.

Neste momento o cavalheiro F. e o ministro L. que passavam, acercaram-se do diplomata e demoraram-se com ele em palestra em que pareciam enlevados.

— Repara tu como eles o tratam! – concluiu o codiscipulo de Vasconcellos ao dar-lhe o aperto de mão de despedida.
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— Sempre me decido, Francisca.

— Pois vai, Antonio, vai que não desonra pedir trabalho e proteção...

— Receber-me-á ele bem?

— Quem te não há de receber bem, tolo? Vai que eu fico a pedir a Deus por ti!

Antonio de Vasconcellos foi e falou com o velho amigo de seu pai, Jorge Alvim. Contou-lhe toda a sua vida árdua, as lutas obscuras, as misérias que afrontara, descreveu-lhe a nua e triste água-furtada em que viviam, ele e a irmã, as longas e plúmbeas noites mal dormidas, a costura mal remunerada, a dureza dos senhorios.

E no gabinete cheio de conforto e de luxo aquelas palavras tristes, desesperadas e expirantes soavam lugubremente como um grito de agonia nas alegrias de um noivado...

— V. exa. não sabia de uma coisa que lhe vou agora dizer. Seu pai salvou-me da morte uma vez no cerco do Porto, eu salva-lo-ei custe o que custar das... garras da...

— Miséria! - disse o moço com o rosto ligeiramente carminado.

— Pois seja assim! Começaremos a combater o monstro hoje mesmo. Para isso é preciso que V. Exa. envergue as armas próprias para combates desta ordem. Em vez do arnez, do broquel, das caneleiras e do elmo, aconselho-lhe que se vista com elegância igual á sua gentileza, porque vai combater a fera no salão da mais elegante senhora de Lisboa, e ante a presença das nossas mais acentuadas celebridades políticas e literárias. Até logo, não é assim? disse o velho estendendo com uma graça adorável a mão a Antonio de Vasconcellos que desceu as escadas enceradas com o coração cheio de sol e de alegria.
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— Não estejas triste, a casaca fica-te bem, não está muito nova, mas ninguém repara. Põe este botão de rosa na casa. É bonito. Vais mesmo um taful — dizia a irmã de Antonio de Vasconcellos recuando e examinando amavelmente o moço.

Depois, com um gesto impregnado de um misto singular de proteção e de doce autoridade, continuou:

— Proibo-te que estejas com essa cara desconsolada. Digo-te eu que és o mais bonito que lá aparece. Depois me contarás.

E conversando e rindo num abandono divino e infantil, aqueles dois camaradas na adversidade, edificavam castelos de ventura, esquecidos de que o padeiro naquele dia recusara fiar-lhes mais pão. Oh mocidade!
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Jorge de Alvim naquele dia parecia exceder-se a si próprio, tão brilhantes eram as suas respostas, tão finas as suas ironias, tão cheias de sal as anedotas com que encantava os conselheiros, ministros e jornalistas que estavam à mesa da elegante condessa de X***.

Falou-se em diamantes. Jorge de Alvim desde logo entrou a historiar casos e anedotas a tal respeito. Narrou as aventuras de diamantes que se tornaram célebres pelas peregrinações em que andaram, e assim precisou com uma erudição graciosa a história do Sancy, diamante que foi de Carlos, o Temerário, e que das mãos deste passou para as de um Duque de Florença e depois para o poder do Prior do Crato, que o empenhou ao intendente das finanças em França, Harley de Sancy, de onde lhe proveio o nome.

— Ainda aqui não para, minhas senhoras, a odisseia desta pedra. Harley de Sancy quando Henrique IV de França antes de ser reconhecido se achou em grandes apuros de dinheiro, mandou vender esse diamante aos judeus de Metz. O homem encarregado de tão preciosa missão, caindo nas mãos de uma quadrilha de bandidos, e receando que lhe roubassem o tesouro que levava, engolira a pedra...

— Ora essa! – disse a dona da casa.

— Verdade pura, minha senhora. O cadáver foi descoberto passados tempos no bosque de Dôls, e aberto o ventre, acharam o diamante que foi vendido a Jacques II de Inglaterra, de cujo poder passou para o de Luiz XIV.

— E depois? – disse uma das senhoras. Não pode parar aí esse longo peregrinar de que V. Exa.  está sendo um Fernão Mendes...

— Minto?... pois seja assim. O que posso afiançar a V. Exa. é que esta pedra, depois de várias e encontradas vicissitudes acabou por onde acabou a esposa de Menelau... Foi roubada, e hoje para nas mãos dos Russos.

— Justamente o que mais dia menos dia sucederá ao seu magnifico anel, Sr. Jorge de Alvim, tornou a mesma interruptora, dardejando um olhar guloso e felino á pedra do anel — Não está ali por menos de duzentas libras, afirmou um banqueiro.

— Ora, pelo amor de Deus, meus senhores, volveu o velho casquilho. O meu anel que julgo não tem ainda por ora aventuras, ouvindo as minhas narrativas de há pouco encheu-se de brios, e quis provar aos incrédulos que também lhe estão reservados altos destinos... Vou propor a V. Exas. uma coisa que lhes parecerá excêntrica, mas que me relevarão, já que em Lisboa passo por um ente singular e extraordinário. Aí vai a singular excentricidade que me passou pela cabeça: ao sair desta sala hão de todos deixar-se revistar pelos donos da casa. Rejeitam ou aprovam?

Ouvindo aquela proposta esquisita e quase que ofensiva, alguns sorriram, indignaram-se outros, franzindo os sobrolhos, e um pesado silencio constrangedor caiu naquela sala há pouco tão sonora de vozes, de risos e do fino tilintar da prata e dos cristais.

— Peço perdão, mas oponho-me e rejeito essa proposta!

Quem assim falava era Antonio de Vasconcellos. Estava pálido como a morte, tentava sorrir, mas os dentes cerravam-se-lhe nervosamente, e os cabelos empastavam-se-lhe na testa gotejando suor.

— Seria ele? – disse a dona da casa baixo, e fitando-o tristemente.

E toda a gente que o ouvira como que por instinto afastou-se do pobre moço.

Podia ser, que fosse ele. Era pobre, pois não viam isso claramente?

Os olhos de todas as mulheres que ali estavam começaram então desapiedadamente a analisa-lo minuciosamente, e passavam-lhe em revista a casaca coseada, a pouca finura da camisa, a gravata branca ligeiramente encardida, as joelheiras luzidias das calças pretas.

— E não é feio rapaz!

— Pois sim, mas Lacenaire também não era feio, volveu outra menos caridosa e mais letrada.

Antonio de Vasconcellos aproximou-se de Jorge de Alvim, e baixo com voz concentrada disse-lhe:

— Uma palavra, Sr. Alvim, desejo dar-lhe uma palavra...

— É melhor mais tarde... depois..., replicou desdenhosamente Jorge de Alvim.

Repararam todos na insistência de Antonio de Vasconcellos, e as suspeitas mais e mais se enraizaram no espirito dos convivas.

O pobre rapaz, que conhecia a falsa posição em que se colocara com a sua frase, sentia-se humilhado e como que vendido naquele meio.

Os próprios criados olhavam-no com manifesto desprezo.

Vasconcellos disse ainda ao diplomata:

— Sr. Jorge de Alvim, pela ultima vez, quer ouvir-me?

— Homem, já sei; é pobre, teve uma fascinação, já li isso não sei aonde... Ah! já sei... num conto de Balzac...

E voltou-lhe as costas.

Nesse instante uma voz entaramelada e rouca ecoou na sala:

— Peço que me escutem! Como sou o único pobre que aqui está, e como todas as circunstâncias são em meu desfavor, podem julgar que fui eu que roubei esse anel. Se não consenti na proposta feita pelo Sr. Jorge de Alvim, — e na palidez do seu rosto destacavam-se duas rosas de pejo, — foi porque, se me revistassem, encontravam-me no bolso isto que eu furtei para levar á minha irmã que não come desde ontem... disse o mancebo tirando da algibeira um pão.

Houve um grande e profundo silencio angustioso. A condessa foi a primeira a rompe-lo adiantando-se para Vasconcellos.

— Pobre rapaz!...

E com o movimento que fez, um objeto brilhante faiscou nas franjas do seu vestido.

— Permita-me V. Exa., condessa, disse o banqueiro abaixando-se e desprendendo das franjas o objeto que reluzia e chispava: aqui está o anel.
* * * * * * * * * * * * * * * * * * 

Antonio de Vasconcellos ocupa hoje com aplauso geral e com grandes créditos o lugar de secretário, na embaixada de que é ministro seu amigo e cunhado Jorge de Alvim.
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Maria Amália Vaz de Carvalho foi uma escritora polígrafa, ativista feminina, e autora de contos, poesia, ensaios e biografias. Colaborou em diversos jornais e revistas publicando crónicas de crítica literária e opiniões sobre ética e educação, para além de ter analisado, com notável clarividência, a condição e o papel da mulher na sociedade do seu tempo. Foi a primeira mulher a ingressar na Academia das Ciências de Lisboa, eleita em 1912. Foi casada com o poeta António Cândido Gonçalves Crespo, dele organizando suas obras completas postumamente.

Fonte:
Disponível em Domínio Público.
Maria Amália Vaz de Carvalho. Contos e Phantasias. Publicado originalmente em Porto, 1880.
Convertido para o português atual por J. Feldman

sexta-feira, 28 de abril de 2023

Adega de Versos 104: Jorge Vicente (Meu Fado)

 

Humberto de Campos (O Limo)

Mme. Costa Mafra particulariza-se na sociedade carioca pela originalidade das suas perguntas, que lhe colocam o marido, de vez em quando, nas piores situações. Roda em que ela se encontre, dissolve-se invariavelmente com uma das suas consultas inesperadas, a mais simples das quais poria em dificuldades, talvez, o mais hábil dos sofistas. Como, porém, todo veneno possui um antídoto, Dona Arabela tem, para neutralizar as suas perguntas indiscretas, as respostas irretorquíveis do conselheiro Brazilino do Amaral.

Desse duelo entre a inocência e a esperteza, ou, melhor, entre a ingenuidade e a experiência, fui eu próprio testemunha, há dias, no salão de chá do Jockey-Club, quando, a propósito do Sr. deputado José Bonifácio, que havíamos encontrado à porta, Mme. Costa Mafra perguntou:

- Mas, é verdade, conselheiro: por que é que os homens têm o rosto ponteado de barba, de pelos irritantes e incomodatícios, quando as mulheres possuem, em geral, o delas macio, liso, limpo, sem um fio de cabelo?

O conselheiro olhou o Dr. Mafra, que o fitava suplicante, passou a mão pelas barbas veneráveis, e começou a explicar, com os olhos na toalha:

- Como a senhora sabe, o homem foi feito de barro, e a mulher foi tirada da sua costela.

- Isto eu sei.

- Pois, bem. Feito em primeiro lugar, com alguns punhados de barro umedecido, o homem foi posto a secar ao sol, como todas as obras de cerâmica. A senhora sabe, porém, que, todo barro molhado, quando não apanha sol convenientemente, cria limo; e foi o que aconteceu ao homem, cujo rosto, na ocasião de ser o corpo submetido ao fogo solar, ficou sombreado por um ramo de árvore, na oficina do Paraíso.

- E a mulher?

- A mulher, não. Tirada da costela do homem, e posta com o rosto para o sol, ficou naturalmente, com o cabelo apenas na cabeça, posta à sombra, mas, em compensação, sem o limo na face.

D. Arabela descansou o queixo de bonequinha alemã no polegar e no indicador da mão esquerda, e, ao dar com os olhos no próprio braço de mármore posto a descoberto até a "avenida da ligação", insistiu:

- E em toda a parte aonde o sol não chegou, criou limo?

O conselheiro ia responder, mas, ao abrir a boca, fechou-a, de novo. É que, defronte dele, com a xícara suspensa e os olhos fuzilantes, o Dr. Mafra intimava, com significativos tremores na voz:

- Conselheiro, tome o seu chá...

Fonte:
Disponível em Domínio Público
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925.

Professor Garcia (Reflexões em Trovas) 23

Ah! Coração, não me agridas,
vê quanto este peito sofre,
por tantas noites sofridas
presas, neste velho cofre!
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A todo instante, o que eu sinto,
no encanto dos versos teus,
é ver nos versos que eu pinto,
teus sonhos, nos versos meus!
= = = = = = = = = 

Cheia de essência e de aromas,
a lua calma e tão linda,
enche de prata, as redomas
da noite que dorme ainda!
= = = = = = = = = 

Da solidão, não lamente,
que às vezes, na multidão,
tenho visto muita gente
sofrendo de solidão!
= = = = = = = = = 

Dobrando as curvas da estrada,
pisando o mesmo caminho,
a silhueta mais curvada
da sombra de um bom velhinho!
= = = = = = = = = 

Essa regra, eu sei de cor:
onde a honradez se agasalha,
sinto o cheiro do suor
do rosto de quem trabalha!
= = = = = = = = = 

Eu sou idoso, sem ânsia,
ao ver, com intensidade,
que um filho devolve a infância
e os netos, a flor da idade!
= = = = = = = = = 

Eu vejo um mundo mais pobre,
ante a ambição desmedida,
em que a ganância do nobre
esquece as razões da vida!
= = = = = = = = = 

Fui primavera na vida;
e agora, que o outono estreia,
chego à estação, sem torcida,
num palco, sem ter plateia!
= = = = = = = = = 

Hoje, a saudade me invade,
de sonhos sentimentais,
ao ver os pés da saudade,
nos chinelos de meus pais!
= = = = = = = = = 

Madiba!... Velho Mandela!,..
Prenderam-te por maldade;
ficou teu corpo na cela
mas teu sonho em liberdade!
= = = = = = = = = 

Meu canto e o canto da fonte,
nos murmúrios são iguais;
seus versos ao pé do monte,
são murmúrios dos meus ais!
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Não bebi teus coquetéis
de amores, com falsas juras;
que as juras dos infiéis
são coquetéis de loucuras!
= = = = = = = = = 

Nas manhãs, vagando ao léu,
pastoro as nuvens no além,
buscando no azul do céu.
imagens lindas de alguém!
= = = = = = = = = 

No nosso ranchinho em flor,
ao dividir nosso pão,
sobram fatias de amor
no instante da divisão!
= = = = = = = = = 

No velho rancho de palha,
onde a saudade vagueia,
a solidão se agasalha
nos braços da lua cheia!
= = = = = = = = = 

O riso mais lindo e nobre
que nele, pensando fico,
foi ver num rancho tão pobre,
um riso de amor, tão rico!
= = = = = = = = = 

O Sol, ao nascer, traduz,
raio de luz tão bonito,
que é desse parto de luz,
que nasce a luz do infinito!
= = = = = = = = = 

O Sol, se pôs esquisito,
e aos poucos perdeu a graça,
ao ver na cor do infinito
a cor negra da fumaça!
= = = = = = = = = 

Percebo nas tardes mortas,
logo após o Sol se pôr,
que Deus põe nas nuvens tortas,
perfeitos versos de amor!
= = = = = = = = = 

Por que tantos pedestais
a incautos mitos, sem glória,
se há tantos, tão geniais,
nas sombras de nossa história?
= = = = = = = = = 

Procuro na noite calma,
a todo instante, entendê-las;
se é que a estrela, não tem alma,
por que tem luz nas estrelas?!…
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Se tens pedra em teu caminho,
prossegue na caminhada;
tu nunca estarás sozinho
por sobre as pedras da estrada!
= = = = = = = = = 

Teu regresso, ah! teu regresso,
que em voltar pouco se esmera,
sinto que quanto mais peço,
mais longa fica essa espera!
= = = = = = = = = 

Tu partiste e na verdade,
fiquei mais pobre de afeto;
com dó de mim, a saudade,
se fez exílio em meu teto!
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Fonte:
Professor Garcia. Versos para refletir. Natal/RN: Trairy, 2021.
Enviado pelo trovador.

João do Rio (A Amante Ideal)

Esses cavalheiros haviam mostrado um certo apetite. Era, após o jantar, na residência de Ernesto Pereira, assaz feliz para ter, antes dos quarenta anos, um palacete discreto e muito mais de cem mil contos.

Com tão confortável fortuna, Ernesto estava quase branco, não bebia senão águas minerais e mantinha as mulheres como simples companheiras para distrair. Após um negócio - ceia com elas e champanhe bebido pelos outros. Enriquecer quando não custa a vida e uma fortuna, custa, pelo menos, o melhor bem humano, porque transitório - a mocidade. Ernesto aliás tratava o doloroso e delicado assunto com cinismo amável. - Que querem vocês? Aos vinte anos, afastei as mulheres para conquistar a Fortuna. A Fortuna vingou-se desabituando-me do amor...

Mas era gentil, muito gentil, como diziam essas damas. Fazia as despesas de uma italiana, montara casa a uma espanhola, comia com as figuras mais impressionantes do armorial da galanteria, e protegia, às ocultas, algumas costureiras e modistas. O desprezo, ou antes, a integral indiferença de Ernesto pelas mulheres, só poderia ser notada porque esse homem jamais tinha uma história de mulher a contar. Quando narrava um fato era dos outros e referia-o sempre com o riso ingênuo da completa incompreensão. Parecia contar pilhérias de bonecos.

Os amigos julgavam-no feliz. Era-o. O homem feliz é aquele que não conhece o amor.

Nesse momento, porém, acesos os charutos no terraço sobre o mar a roda se fazia de homens, como é a maioria dos homens, tendo a vida com dois fins: dinheiro e mulher. Estavam Otaviano Rodrigues, que se arruinara por uma princesa austríaca, e André Figueiredo, com quem a princesa enganava Otaviano, mas que por sua vez tinha várias paixões, menos a princesa. Estava Clodomiro Viegas, que nunca pagara o amor e andava sempre a arranjar dinheiro para ser gentil com as generosas criaturas. Estava o comendador Andrade, que em trinta anos de francesas ainda não aprendera a falar francês. Estava Teodoro Gomes, o bolsista que enriquecia a bailarina russa de uma companhia italiana, em companhia de Godofredo de Alencar, o único literato com dinheiro.

E também palestrava Júlio Bento, lindo e excelente rapaz de trinta e cinco anos, casado, pai de cinco filhos, mas cuja lista de conquistas não deixava de ser profusa.

A conversa, precisamente, generalizava-se a propósito da última paixão de Júlio, senhora alta, com enorme boca vermelha e dois braços de tragédia, admiráveis e brancos, "as duas velas de seda da trirreme do amor", como dizia, com exagero, Godofredo de Alencar. Essa mulher agoniava Júlio Bento. Eram cartas, telegramas, chamadas ao telefone, imprevistas aparições, cenas de ciúme, ataques, tentativas de suicídio, recriminações, inquéritos minuciosos.

- Um inferno, meus caros! E eu tenho receio que minha esposa venha a saber.

- Mas deixa-a. Nada mais simples! insinuou Ernesto com o seu ingênuo e feliz desconhecimento do complicado desespero das ligações amorosas.

- É bom dizer. Ela mata-se...

- Ora!

- E para que deixar esta, se são todas assim? indagou ironicamente Alencar. Amar é sofrer, mas ser amado é o cataclismo. Não se pode fazer mais nada. Elas caem sobre a gente como os andaimes. Um gnóstico dizia que é preciso passar pela mulher como pelo fogo. Nós imbecilmente ficamos a assar. Ao demais o Eliphas Levi já teve uma frase lapidar - "Queres possuir? Não ames! Nós, sem inteligência, em vez de possuir, somos possuídos. A inteligência é um perigo no amor."

- Paradoxal!

- Conforme. Qual de nós não almeja, não sonha com o tipo da amante ideal? Qual de nós, porém não sofreria se amasse o tipo da amante ideal?

- A questão é saber qual a amante ideal, após três meses...

- A amante ideal! suspirou Júlio Bento.

- É a esposa, sentenciou o velho solteirão Andrade.

- A esposa, meu caro amigo, desde a Grécia, é a mãe dos nossos filhos. Não a sobrecarreguemos... Moisés, segundo a legenda, forjou o anel do Amor. E tais foram as complicações, que logo teve de forjar com pressa um outro: o anel do Esquecimento. Nenhum dos dois é a aliança matrimonial...

Júlio Bento ficara pensativo. E de repente:

- Como o Alencar fala a verdade. Eu já tive a amante ideal.

Houve na roda um alegre sobressalto.

- Tu?

- Como era ela?

- E deixaste-a fugir?

Júlio Bento, sem tristeza, suspirou.

- Sim. Apenas só depois é que soube... E até agora, francamente, não compreendo, não atino, não sinto bem... Que aventura! Imaginem vocês...

Acendeu outro charuto e, impaciente, continuou:

- Há uns cinco anos encontrei no teatro uma encantadora mulher. Pálida, da cor dos jasmins, dois olhos verdes, pestanudos, uma longa cabeleira de ébano, alta, magra. Estava no camarote pegado ao meu, só, vestida de preto. Olhou-me duas vezes. Da segunda havia muitas intenções. Fiquei desejoso de a conhecer, de falar-lhe. Mas, evidentemente, não era uma qualquer mulher. Saiu em meio de um ato e eu fiquei com a família, não sei por que, raivoso. Quatro dias depois ia pela rua do Ouvidor, quando a vi que vinha a sorrir. Tinha uma linda boca. Cumprimentei-a. Continuou a andar. Segui-a. Voltou-se uma só vez e logo meteu-se pela rua Gonçalves Dias. Continuei a acompanhá-la. Ela ia pelo meandro de ruas estreitas e comerciais. Enfim, num beco deserto, entrou por uma porta. Quando passei pela porta, ela estava no corredor. Timidamente disse-lhe:

- Desculpe se a acompanhei...

- Entre, fez ela com a voz calma. Não podíamos falar em ruas de movimento. Não seria conveniente nem para mim nem para você.

Fez uma pausa, murmurou: Simpatizei muito com a sua pessoa.

- E eu, então!

Ela riu:

- Sempre que as mulheres querem, os homens simpatizam ao menos uma vez.

Agarrei-a, ela ofereceu-me a boca, que cheirava a rosa, e gulosamente mordeu-me. Depois, desprendendo-se:

- Agora vá embora!

- Mas isso não pode ficar assim. Onde a posso encontrar?

- Na minha casa é impossível neste momento...

- Como se chama?

- Adelina. Até outro dia...

- Há outras casas. Por aqui mesmo...

- Hoje não.

- Por quê?

- Ninguém tem mais vontade do que eu... Amanhã, se quiser. Serve-lhe às duas horas da tarde, num automóvel defronte do terraço do Passeio Público?

Concordei. No dia seguinte rolávamos, às duas da tarde, para a Quinta da Boa Vista e essa mulher era de um ardor, de uma paixão alucinantes. Apenas não saiu do automóvel e no automóvel estivemos até às seis horas. Ao deixá-la, Adelina disse-me apenas:

- Moro numa pensão da rua da Piedade. Quando quiser, escreva-me.

- E não posso lá ir?

- Se quiser, durante o dia.

A minha curiosidade conseguiu saber aquilo que ela não dizia, mas de que não fazia mistério. Chamava-se Adelina Roxo. Era casada, separada do marido. Vivia mantida por um velho diretor de banco, que lhe dava larga vida. O seu modo era tão esquisito, tão diverso das outras mulheres quando desejavam, que me abstive de a procurar oito dias. Quando as mulheres são sinceras, os homens são "cocottes".

O "chique" é a essência do amor. Apenas verifiquei a inutilidade do processo e apertou-me o desejo. Queria aquela volúpia e queria também conhecer a mulher. Escrevi, pela manhã, uma carta sem assinatura, e lá fui. Recebeu-me deliciosamente. Tinha três salas admiráveis. O gabinete de vestir era mobiliado de sândalo com incrustações de marfim. Os tapetes altos de seda turca contavam em azul sobre fundo rosa suratas do Alcorão. Um cheiro de rosas errava no ar, e ela despindo um "chartcha" de seda pesada apareceu-me através de um tecido de Brussa com a pulcra delicadeza de um lírio à sombra. Amei-a furiosamente. Ela era das que, entregando-se, infiltram nos mortais ainda mais desejo. E se eu a amei, ela teve todas as etapas do delírio desde o frenesi ao desmaio. Ao sair esperei alguma frase, um pedido, uma súplica. Nada. Não me demorou, beijou-me com a alma. E não disse uma palavra.

Era diversa, integralmente diversa das outras. Certo gostava de mim, gostava com um calor que eu não sentira em nenhum outro corpo. Mas todas as mulheres querem saber coisas, perguntam onde vamos, indagam se as amamos muito, se será para sempre, e não deixam de reter mais alguns momentos a criatura... Ela não teve um só gesto nem uma das frases banais, mas que estamos acostumados a ouvir.

Claro que voltei. Conversávamos. Ela, sem pedantismos, sabia muito mais do que eu. Viajara a Europa inteira, falava várias línguas, conhecia os poetas de diversos países, que lia em encadernações de antílope com fechos de ouro lavrado. Mas, rindo com infinita alegria, prendendo com a sua clara voz, o seu olhar de brasa verde, o seu corpo de jasmim, jamais perguntou pela minha vida. E também não me disse uma palavra a respeito da sua, e também não me pediu nada. Sabem vocês como as mulheres gostam de contar a própria vida aos amantes. É um duplo exercício de mentira e de tortura. Sabem vocês, como ao cabo de uma semana não se pode dar um passo sem ter a senhora apaixonada a perguntar-nos os detalhes mínimos do dia. Ela abstinha-se desses atos, naturalmente. E, talvez por isso, se o meu desejo aumentava, a minha desconfiança irritada crescia. Nem o meu nome ela perguntara - nome que, de resto, devia saber. Tratava-me de "Meu pequeno", meu "guru". Um dia disse-lhe:

- Não sabes o meu nome?

- Não.

- Mas eu assino as cartas...

- Ah! sim, as cartas... Mas não quero o teu nome, quero-te a ti. Que me importa que te chames João, Antônio ou mesmo Júlio?...

- O tratamento de "guru", entretanto...

Ela deu uma grande risada.

- Ah! essa palavra é de um grande poema de amor, o "Ramayana". É uma palavra de carinho, de afeição que não tem tradução. Achei-a simpática. Só a ti no mundo eu chamo assim. Porque só a ti no mundo eu amo, meu pequeno...

- Enfim, um homem casado transformado em "guru"...

Eu dizia para forçá-la a perguntar-me as coisas. Foi em vão. Em virtude de tanta liberdade, como sou humano entre os lamentáveis humanos, aproveitei-a para traí-la. Traí-la? Pode-se trair uma mulher que não nos toma contas? Tive várias intrigas amorosas, que me deram enormes incômodos e fizeram-me enormes despesas. Todas essas mulheres amavam-me como loucas e eu as deixei sem que elas mudassem. Alguns negócios forçaram-me a ausentar da cidade.

- É uma aventura mortal! dizia a mim mesmo para convencer-me.

E ao chegar das viagens, lá ia entre desejoso daquele amor impossível de pôr em dúvida e um vago mal-estar, uma inquietação. Afinal, teria ou não interesse por mim? Tinha, era evidente que tinha. Mas não era bem esse alheamento da vida comum. Talvez forçasse a indiferença para não contar os mistérios da sua existência. Mas, respondia sempre com franqueza a tudo quanto lhe perguntava! Talvez tivesse outro amante. Inquiri, observei. Não. Além do velho banqueiro, só a mim...

Os nossos encontros faziam-se intermitentes. Semanas havia que estávamos juntos todos os dias. Depois passávamos semanas sem nos vermos. Era natural que essa mulher, diante de uma ausência prolongada, procurasse falar-me, escrevesse, passasse um telegrama ao menos. Pois nada. E recebia-me com a mesma ternura, o mesmo sincero amor, sem uma pergunta. Às vezes resolvia não a procurar mais. Encontrava-a, porém, na rua, e a irradiação do desejo era tão forte, que tivesse eu o mais urgente negócio, largava tudo para segui-la. Ela também ficava trêmula, com as mãos frias. Tomávamos o primeiro automóvel e era um verdadeiro frenesi.

Diante da sua absoluta discrição, era forçado a ser discreto. Nunca trocamos uma palavra a propósito do velho diretor do banco. E a necessidade de contar a minha vida se fazia nula com o acanhamento que produzia o seu ar de não querer saber. Uma vez gabei-lhe os olhos. Eram macios e ardentes.

- Herança, meu pequeno.

- Como?

- Eu sou descendente de armênios. Minha avó devia tapar os olhos. Eles ficaram com mais luz e mais doçura. São olhos de serralho...

- Curioso. Por que não me contas a tua vida?

- Porque não vale a pena.

- Mas não perguntas pela minha?

- Para não te aborrecer. Eu sou a tua escrava. Dei-te o meu desejo e o meu coração. Não tenho o direito de perguntar. Estamos assim tão bem...

Ela falava com tanta brandura, as suas mãos de jasmim pousavam tão docemente sobre os meus olhos, que senti uma infinita pena de mim mesmo, e calei-me... Sim, de fato, para que falar, para que mentir, quando não mentíamos ao nosso desejo? Vivemos assim largo tempo. Se não ia à sua casa e a via na rua - era fatal, soçobrávamos na volúpia. Às vezes o desejo era tão forte e imediato, que ela entrava em qualquer porta e ali mesmo as nossas bocas se ligavam vorazes - antes de seguirmos para a luxúria ardente dos seus aposentos.

Possuía-me e entregava-se como jamais pensara que fosse possível!

Conservara durante anos a mesma chama, a mesma maravilhosa chama. Sem uma intimidade, sem detalhes da vida comum, sem me interrogar, sem chegar a esse momento habitual em que dois amantes são iguais a duas criaturas comuns. Eu a consideraria exasperante, se talvez por isso - o meu desejo nunca tivesse força de resistir.

Enfim, há três meses tive de ir à Bahia. Ia demorar, pelo menos, trinta dias. Podia dizer-lhe. Mas o meu orgulho resistiu. Passei a tarde com ela, aliás, e quando consultei o relógio, ainda esperava uma pergunta, que não veio. Parti. Não escrevi. Não escrevi, posto que pensasse nela. Era o que eu julgava uma vingança. Ao chegar, não resisti e fui vê-la. Recebeu-me a dona da pensão, uma velha francesa.

- Bem dizia madame que o senhor tornaria...

- Onde está ela?

- Oito dias depois daquela tarde, ela caiu doente, muito mal. Esteve assim três dias. Afinal, os médicos acharam necessário uma operação. Era apendicite. Saiu daqui para ser operada no Hospital dos Ingleses. Mas antes de sair, chamou-me. Lembro-me bem das suas palavras, 'la pauvre"!

"Madame Angéle, eu vou morrer, sinto que vou morrer. Quando o meu pequeno aparecer, diga-lhe que não fique triste, mas que eu morrerei pensando nele como o meu único bem..."

- Então?

- "Pauvre petite!". Morreu na mesa de operações...

- Mas onde a enterraram?

- Não sei, não acompanhei. Talvez perguntando ao Sr.Herbrath...

Desci, quase a correr, para não mostrar à velha francesa as minhas lágrimas. Todo esse longo, o único longo amor da minha vida, surgia aos olhos do meu desejo como um sonho. Tinha sido uma ilusão, a imensa ilusão. E desaparecera, de modo que nem mesmo lhe sentira o amargor, nem mesmo lhe compreendia o fim, pensando na última tarde que fora a primeira, sempre primeira, sempre nova, sempre a que afasta para depois a tristeza...

Na rua, eu era como o homem que, tendo tido uma entrevista de amor em que amou com fúria - procura encontrar de novo aquela que não teve tempo de conhecer bem, com a ânsia dos vinte anos.”

O criado de Ernesto entrou nesse momento com o café e largos copos de cristal, onde gotejou uma famosa "fine" de 1840. Júlio recebeu o copo, virou-o. Se estivéssemos em tempo de emoções, a sua história poderia ter comovido. Mas não estamos. Otaviano é que disse com indiferença:

- Curioso!

- Nunca me pediu nada, nunca lhe dei nada, nunca me perguntou nada, continuou Júlio Bento, com a voz surda. O sentimento que conservo por ela é o mesmo: um louco desejo e uma certa humilhação...

- Porque tu és da vida comum e ela era o amor, respondeu Alencar. O amor é o desejo acima da vida. Talvez nunca tivesse dito sem o sentir uma tão profunda frase. Nenhum de nós nascidos e vividos na mentira e na tortura da mulher, compreenderia essa amante que existiu, como todas as coisas irreais. Mas, se nos fosse dado compreender - aos homens como às mulheres, todos nós invejaríamos a tua sorte e o prazer superior dessa suave perfeição. Para conservar o desejo é preciso não mentir, não pedir e não saber. Ela foi a amante ideal, a única sincera.

Nesse momento o criado voltou a prevenir Bento de que uma senhora estava à sua espera num automóvel, a chorar.

- É a Hortência! bradou Bento. Nem aqui me deixa! Por Deus, não lhe contem essa aventura. Teria ciúmes da morta. É insuportável!

E como todos os homens neste mundo, precipitou-se ansioso para a amante, igual às outras.

Fonte:
Disponível em Domínio Público.
João do Rio. Contos, in https://pt.wikisource.org/wiki/A_Amante_Ideal