sábado, 10 de julho de 2021

Varal de Trovas 512


 

Sammis Reachers (O Novo Milionário)

Nos idos dos anos 80 do século passado, não tínhamos Mega-Sena, Rio de Prêmios e outros jogos e loterias como hoje. Naquela época, quem mandava ainda era a hoje esvaziada Loteria Esportiva. Na rede Globo, ficou famosa a “Zebrinha”, que dava os resultados das partidas de futebol.

Naquela época havia um cobrador de ônibus na empresa niteroiense Ingá, indivíduo verdadeiramente “viciado” na jogatina: toda semana, religiosamente, lá ia ele fazer seus joguinhos na loteria esportiva.

Pois eis que, certo dia, ouvindo no radinho de pilha os resultados dos jogos, enquanto trabalhava, no turno da tarde, na linha 49, o coração de Marco (esse era o nome do nosso apostador) quase parou de bater: Finalmente, depois de tantos anos, ele acertara na loteria!!! Meio sem fôlego e sem acreditar, ficou ouvindo desesperado o radinho, para confirmar o resultado do último jogo, o que lhe daria o prêmio. Era isso mesmo, o resultado fora o que ele apostara, Marco ganhara a bolada! Nosso amigo não perdeu muito tempo: comunicou imediatamente ao motorista, e ordenou, agora já com o tom de patrão:

– Recolha esse carro.

– Mas Marco, qué isso, rapaz? Vamos terminar os trabalhos...

– Que terminar o quê, amigo, tô mandando você recolher. Pra mim chega disso tudo!

Sem opção, ao chegar no ponto final, o motorista comunicou ao despachante que iria recolher o carro. E Marco já foi falando para todos os companheiros ali presentes:

– Aí cambada! Ganhei, ganhei na esportiva! Chega de Ingá! Chega de trabalho! Sofram aí carregando praianos, aturando assalto! Eu agora vou ser patrão de vocês!

A galera, entre acreditar ou não, ficava em silêncio. Afinal ele estava recolhendo o carro e nem era ainda a metade do período de trabalho, e isso era grave. O malandro não faria isso à toa...

Bem, rapidamente a notícia chegou à garagem, e aos inspetores. Ficaram, é claro, chateados com o fato de o funcionário recolher o carro, mas secretamente tinham era inveja de Marco, que agora ia nadar no dinheiro.

Enquanto isso, nosso ganhador já havia prestado conta da féria arrecadada e se dirigia para casa, andando como se flutuasse.

Ao chegar em casa, foi logo gritando a boa-nova para a mulher, e ligando a velha TV de marca Telefunken, preto-e-branco, que hoje só se vê em museus. No telejornal as notícias avançavam, até que chegou a hora do resultado da loteca. Os números dos jogos de futebol foram repetidos, e Marco confirmou pela trecentésima vez que realmente acertara. A seguir o apresentador avisou:

– Segundo a Caixa Econômica Federal, foram 13.650 os acertadores...

– Êpa! Mas isso tudo? – disse para si mesmo Marco.

– E após o rateio, cada apostador receberá a módica quantia de CR$ 10.050.000...

Sim, amigo leitor, são muitos zeros, e se fosse em moeda de hoje, em reais, seria um respeitável valor... mas naquela época dos cruzeiros, de inflação galopante, aquela grana mal dava para... pagar um jantar para a patroa num restaurante decente.

Um balde de água fria, melhor, uma piscina de água da Antártida, com pinguins e tudo, caiu com estrondo na cabeça do pobre Marco. Aquilo pelo que ele esperava há anos, o sonho que acalentara tanto (e lhe custara já tanto dinheiro), durara apenas algumas horas...

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No dia seguinte, uma tremenda segunda-feira, Marco, a quem muitos julgavam que nunca mais veriam, apareceu na empresa, bonitinho, de uniforme passado e tudo.

– Ué Marco, a galera tá toda falando que você ganhou na loteria, e é o mais novo milionário – foi logo dizendo o primeiro companheiro que o viu.

E assim foi o avanço de ganhador da loteria, tendo que explicar a cada um a sua triste história. A galera não sabia se ria ou chorava...

Ao adentrar a empresa, Marco se dirigiu logo para a sala dos inspetores. Após relatar sua história agora triste, recebeu diversas broncas de praxe, e ficou aguardando enquanto seu caso era levado ao diretor da empresa. Todos davam já sua demissão como certa, e o sonho de Marco ganhava a cada instante ares de pesadelo.

Mas, muitos minutos depois, eis que chega a boa notícia: o dono da empresa se condoera da situação de Marco, e disse que dessa vez iria “perdoá-lo”. Ele poderia voltar ao trabalho. E assim nosso amigo fez.

Mas a chamada “Rádio Leão” (assim chamada pela alcunha que cariocamente se aplica aos rodoviários: ‘leões’), a rede de fofocas dos rodoviários, que dissemina informações à velocidade da luz, já existia naquela época, e trabalhava a todo vapor, dando as notícias sobre o novo “milionário”. E nas duas semanas seguintes, CADA LEÃO que via Marco, e alguns deles várias vezes por dia, tinham que perguntar algo como:

– E aí, milionário? Comprou esse ônibus aí e tá trabalhando nele?

– E aí Marco, meu “patrão”! Me empresta um dinheiro aí!

– Olha lá, olha lá o “milionário”! Fala milionário! Como tá aquela favela lá? Vai se mudar de lá para a mansão quando?

– E aí, jogador? Deu “zebra,” hein???!!
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O apelido de “milionário” pegou e nunca mais saiu. Já o emprego do Marco, coitado, não durou tanto: não suportando a zoação frenética, em duas semanas ele foi até o homem e pediu as contas…

Fonte:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes do dia-a-dia dos Rodoviários.
São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

Therezinha Dieguez Brisolla (À Procura de Estrelas) 2

A IDADE DO OLHAR

O teu olhar me convida
ao amor... e, ainda que evite,
no meu delírio, atrevida,
eu aceito o teu convite.


O olhar de espanto
diante do mundo.
O primeiro brinquedo, Papai Noel, a escola...
A vida correndo sem parar
e eu a brincar
indiferente...
Meu tempo é o presente.

O olhar sem medo
diante do mundo.
O primeiro amor, a faculdade, o emprego...
Em busca dos sonhos, o adeus, o desapego.
Vencendo distâncias, transpondo fronteiras
eu procuro...
Meu tempo é o futuro.

O olhar sereno
diante do mundo.
Os primeiros sonhos sendo refeitos...
Sobre o livro de orações, os óculos
e sobre a folha de papel, em branco, a caneta
à espera da inspiração para a poesia.
A visita, a carta, o telefone,
o enfado...
Meu tempo é o passado.
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A JANELA ENCANTADA

Se a luz do dia revela
que a noite de amor é finda,
fecho, depressa, a janela
e pensas que é noite ainda!


A casa pobre e singela,
um dia se enriqueceu
e os pais, cheios de alegria,
a chamaram de Maria
quando a menina nasceu.

Um quarto, a sala, a cozinha,
uma porta e uma janela...
Nessa casa pequenina
cresceu, em graça, a menina
que, aos poucos, tornou-se bela!

À tarde sai à janela,
sempre no horário marcado
a olhara rua!... Risonha,
a menina pobre sonha
com seu príncipe encantado!

E é na janela o namoro...
Pede, o moço apaixonado,
ao pai a mão de Maria
e, para sua alegria,
o casamento é marcado.

O tempo passou ligeiro...
Sem a cortina de renda,
a casa em ruínas, fechada,
hoje, a janela encantada
ostenta uma placa: À VENDA.
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CIDADE NATAL

Ao procurar as raízes,
tem o meu sonho tal ânsia,
que ao buscar dias felizes
volto à fazenda da infância.


Seu pai era jardineiro
e ele era um menino arteiro,
que só queria brincar.
Mas, quando a mãe o chamava,
as flores, logo abraçava
e o pai ele ia ajudar.

Cresceu... deixou a cidade.
Longe de tudo, a saudade,
quase que o fez regressar.
Mas, sabendo o que queria,
formou-se em agronomia
depois de muito estudar.

Já casado e com família,
passou anos em vigília
e por trabalhar assim,
formou dois filhos doutores
mas, nunca mais plantou flores
e nem cuidou de um jardim!

Ao perder a companheira,
sua ilusão derradeira,
já tendo bastante idade,
procurou suas raízes
lembrando os tempos felizes
lá, na pequena cidade.

Voltou à morada antiga,
ouviu a velha cantiga,
foi à igreja e ao botequim.
E, na praça da cidade,
onde dói mais a saudade,
plantou flores no jardim!
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HERANÇA POÉTICA
(Homenagem a Mário Quintana)

Pede cautela a razão,
no labirinto da vida...
mas, sei que o meu coração
também conhece a saída.


Na sua ruazinha sonolenta,
a velha casa, onde nasceu, resiste.
Da porta aberta quando à noite, venta
do "catavento" eu ouço o canto triste.

Sua "cadeira de balanço" tenta
ninar meus sonhos... quanto pede e insiste!
Mas, a saudade chega e ciumenta
ocupa o seu lugar e não desiste.

Abro o "baú de espantos", comovida!...
Seu "sapato florido", ao ganhar vida,
vai procurar seu dono... e, por instinto,

eu levo o seu "espelho com magia",
que me fará cativo da poesia
e hei de encontrar você no "labirinto".
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Fonte:
Therezinha Dieguez Brisolla. À procura de estrelas.
Porto Alegre/RS: Odisséia, 2014.
Livro enviado pela poetisa.

Solange Colombara (Carreata de Micro-Contos) – 3 –

PROMOÇÃO

Após as devidas higienizações e protocolos, espalhou os "leões de chácara" pelo estabelecimento e reabriu em grande estilo. Tinha promoção para jovens e idosos. Ninguém ficaria sem diversão.
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ABAJUR

Gostava de sentir a noite e seus mistérios. Seus sonhos eram povoados de cores e o cheirinho do orvalho amanhecendo o jardim. Após um bocejo, desligou o abajur e tentou dormir.
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BRISA
(Baseado no poema "Brisa", de Manuel Bandeira)

Transpirando saudade, ouviu o conhecido repicar do sino. Arrumou as malas pensando na volta. A brisa vinda ao amanhecer invadiu seu mundo e naquele instante teve certeza de que ali era o seu lugar.
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SENTIMENTO

O sentimento de medo foi tomado pelo alívio em finalmente romper as barreiras. Nada se compara à sensação de liberdade. E voou…
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ACONCHEGO

Cansada, pousou no tronco largo e robusto. Na sombra daquela árvore sentiu-se abraçada. Estava resolvido: Ali seria seu aconchego até o próximo voo.

Estante de Livros (A Dama do Encantado, de João Antônio)

João Antônio, esse (des)conhecido
Artigo por Tania Celestino de Macêdo

João Antônio foi um escritor com grande número de livros publicados, uma militância atilada na imprensa, mas, infelizmente, seus textos não foram best seller. Talvez fosse tempo de perguntar a razão e, ao mesmo tempo, conhecer esse autor duas vezes contemplado com o prêmio Jabuti, com obra traduzida para vários idiomas, mas de quem apenas alguns já ouviram falar e poucos leram.

O contista João Antônio foi aclamado pela crítica e público já no seu primeiro livro: Malagueta, Perus e Bacanaço. O ano era 1963 e com esses contos a literatura brasileira via surgirem em suas páginas heróis que pouco tinham sido destaque até então: os malandros, os operários, os jogadores de sinuca, crianças abandonadas e prostitutas. O cenário privilegiado dessa ficção era a periferia das grandes cidades, os salões de sinuca e a zona do meretrício. Ou seja, espaços e personagens marginalizados, apresentados sem nenhuma idealização, sem que, no entanto, se ausentasse uma simpatia por eles.

Após esse livro, seguir-se-iam outros, sempre focalizando a realidade sofrida, às vezes sórdida, daqueles que têm que batalhar (e muito) para viver. Talvez esteja aqui uma das razões da pouca repercussão dos textos de João Antônio junto ao grande público: os contos do autor atiram seus leitores de frente com um mundo que os cerca cotidianamente, mas que insistentemente eles se negam a encarar. Ocorre que todo esse batalhão de personagens marginalizadas, não pede a compaixão do leitor. Antes, pelo contrário, o desafia, quer pelas situações apresentadas, quer pela linguagem a qual, sem se descolar do mundo da marginalidade, revela truques e traquejos, solicitando uma leitura atenta.

Sob esse aspecto, o crítico Alfredo Bosi, na apresentação de O conto brasileiro contemporâneo (São Paulo: Cultrix, 1974), observa: "desse fundo torvo tirou João Antônio a linguagem lírico-popular das histórias (…). Tudo nelas é breve, intenso e sintético como o narrador imagina ser o andamento vital daquelas criaturas apertadas entre a urgência pícara de vencer a fome e o medo agudo da polícia ou do malandro mais forte."

Em outras palavras, João Antônio coloca seus leitores em contato com espaços, situações e personagens que constituem a outra face das imagens bem comportadas das novelas de televisão ou de uma certa literatura cheia de finais felizes. Ora, se fosse essa apenas a nota característica da escrita do autor, já seria um grande mérito. Mas há mais: sua linguagem.

Sob esse aspecto, ler João Antônio é participar de um jogo em que, malandramente, a fala dos marginalizados se cruza com o português-padrão, driblando o leitor desatento. Assim, encontramos, ao lado de gírias e palavras de baixo calão, estruturas gramaticais (sobretudo no que se refere às orações subordinadas) que apenas grandes mestres do idioma utilizam. E isso sem que ocorra um estranhamento, pois existe um intenso trabalho de dar um ritmo certo à frase, de procura de elegância vocabular. Há, portanto, que se ter cuidado ao ler João Antônio. Talvez, também por isso, ele seja um escritor de poucos.

Vale notar que essas características estão presentes também nos numerosos artigos escritos para a imprensa. Seus textos jornalísticos trazem a marca de uma escrita ágil, cuidada, que além de fornecer a informação, não deixa de lado a reflexão. As entrevistas por ele realizadas (com o professor e antropólogo Darcy Ribeiro ou a cantora popular Aracy de Almeida, por exemplo) procuram sempre desenhar o perfil da personalidade em foco, indo além do fato e do que o público já conhece. As crônicas, quer sejam sobre Noel Rosa ou o conjunto habitacional da Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, procuram sempre um traço característico, um olhar novo sobre o objeto.

Acontece que toda essa produção jornalística não foi realizada para os grandes jornais populares. Ainda que tenha escrito para veículos como o Jornal do Brasil, João Antônio colaborou, sobretudo, com a imprensa alternativa, com a "imprensa nanica" (para usar uma expressão inventada por ele), tendo sido inclusive diretor de algumas publicações, como o Livro de cabeceira do homem. É que para o autor, a badalação que cerca determinados círculos era insuportável.

Bem, sob esse aspecto, a biografia do autor talvez também auxilie na compreensão de seu pequeno número de leitores. Deve-se lembrar que João Antônio se negou a fazer concessões. Com uma visão pessimista dos governantes do país e descrédito com o mundo das letras, ele sempre se recusou a participar de cerimônias oficiais e reuniões com autoridades e rodinhas literárias. Era um solitário que, decisivamente, odiava o protocolo, a gravata e os tapinhas nas costas. Se alguém queria encontrar João Antônio, não o procurasse junto à oficialidade, mas sim em bares e restaurantes populares, rodas de samba e outros lugares em que havia gente simples, com uma vida sofrida mas a alegria forte de quem tem pouca chance de ser feliz. Nesses ambientes era fácil ver o sorriso de João Antônio, os olhos brilhantes e atentos, a sua mania de mexer no bigode, enquanto registrava mentalmente gestos, palavras e atitudes que, muitas vezes, transformavam-se em contos. Provavelmente somente nesses momentos ele se abandonava à felicidade, porque compartilhava com o povo as pequenas vitórias do cotidiano.

Assim sendo, João Antônio nunca participou de cargos públicos ou do círculo daqueles autores que são badalados pela mídia. Ele sobreviveu, num país de parco público leitor, apenas de sua literatura. Foi com ela seu maior compromisso. E por isso, provavelmente, sua admiração para com os professores de língua e literatura. João Antônio via nesses profissionais o mesmo amor que ele próprio possuía pelas palavras, a mesma luta árdua e a falta de reconhecimento pelo trabalho realizado. Em função desse respeito, o escritor nunca recusou o convite de um professor para debater suas obras com os alunos. Delicado, simples, acessível, percorreu praticamente todo o Brasil conversando com os jovens, ouvindo sugestões, críticas e opiniões, incentivando a leitura e a produção de textos.

Enfim, João Antônio pode ser definido como um autor que fez uma opção pela literatura, pelo povo, pelo Brasil. Ler suas obras é conhecer melhor a nossa face, os nossos valores e também os imensos problemas que enfrentamos. Mas, sobretudo, conhecer a boa literatura produzida no país.
Fica aqui nosso convite: vamos, finalmente, ler João Antônio?
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Tania Celestino de Macêdo é professora de Literatura Portuguesa da UNESP/Assis
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Dama do Encantado

João Antônio


...Que o subúrbio é ambiente
De completa liberdade
(Voltaste, Noel Rosa, 1934)

Há quem diga que é no Encantado que se come o melhor bacalhau da cidade. E eu não estou aqui para desdizer.

A partir do seu nome, esse subúrbio da Central do Brasil, antes de Madureira, capital do samba, e depois do Méier, carrega ares singelos, descansados; são as casas, os sobrados, os gradis. O ritmo ali é pausado. Sua população pobre é típica do Rio mais carioca, a Zona Norte — negros, mulataria, mestiçados que, na pobreza, vivem num ambiente de espontaneidade e pouca correria. Depois, tem que se chama Encantado...

Chegou ao noticiário nacional pela força de duas mulheres nascidas ali, Aracy de Almeida, a sambeira de muitos cognomes ditos e repetidos — "O Samba em Pessoa", "A Dama da Central", "A Arquiduquesa do Encantado". Bem. Exagerações à parte ou exageração nenhuma, Aracy era uma fidalga, dessa fidalguia carioca, sestrosa, picarda, encharcada de silenciosa dignidade, alta em si mesma, e a que pertenceram Pixinguinha, Clementina de Jesus, Cartola, Nélson Cavaquinho, Heitor dos Prazeres... e, claro, Paulinho da Viola, hoje em dia. A segunda dama de nomeada, para muitos, é a primeira do nosso teatro de bom nível, Fernanda Montenegro.

A fala, o som, o sotaque, o gosto com que carregava as palavras, a alegria de viver, a linguagem carioca de Aracy, debochada na primeira aparência, era em si mesma um depoimento vivo da alma do subúrbio. Mas subúrbio universal. Sua conversa tinha cor e plástica, além da bossa, obliquidade e ginga. Falava, se quiserem, em diagonal, mas o resultado era uma linha reta. Usava, abusava e deliciava o interlocutor com propriedade tão fina e tal franqueza a aparentar até rusticidade. Os adjetivos perderam um tanto o sentido quando se meteram a situar sua personalidade. Autêntica, genuína, irreverente, desconcertante, livre, impulsiva, afetiva, ética e franca... no caso de Aracy são palavras e nada mais. Ela era voz, uma voz da terra e do povo. E uma sambeira nada simples. No fundo, mulher fina e lida, leitora frequente da Bíblia e ouvinte de Mozart, vocacionada profissionalmente para indicar caminhos a jovens músicos. Foi certeira nessas previsões: sabia ouvir. Lia bastante sobre medicina e desenvolveu um gosto refinado pela pintura e artes plásticas. Captava o sentido trágico, quase grego da vida, mais de se notar ao cantar Noel Rosa.

— Nasci no Encantado, fui criada ali, tenho lá minha casa com minhas flores e meus cachorrinhos de estimação. Ali eu fui menina, fui pobre, dormi em cima de esteira. É uma casa térrea, minha, cheia de azaleias na primavera e de caramanchões; eu lá vou me sujeitar a viver dentro de um apartamento? Não, compadre, não é por nada,.não. Mas esse babado de Zona Sul, apartamento, quarto-e-sala... a sua tia aqui não embarca nessa canoa. Depois, me criei no Encantado. Sabe, a gente sente o calor de tudo isso.

Sua casa térrea, à Rua Almeida Bastos, número 294 foi e é a própria Aracy e tanto quanto a sua voz no disco é o seu melhor retrato. Bom gosto por dentro e singeleza suburbana por fora. Aracy jamais quis outra casa, embora cortejada pelas ondas da Zona Sul carioca. Não lhe era fácil ou cômodo sair do Encantado e cantar em Copacabana... Cantava, cantava. Mas pousava na casa do Encantado. Lá dentro, muita atmosfera e pintura, quadros de Aldemir Martins (que chegou a retratá-la) e Di Cavalcanti, uma cabeça de Aracy esculpida por Bruno Giorgio, mobília de bom gosto, nada de falso antigo e como Araca adorasse cachorros, havia uma atmosfera humana e movimentada. Não casou. Tinha uma tese:

— Solteira, sempre. Acho esse babado de casamento uma onda bastante enrolada. No começo, são flores e mais flores. Depois, pedras e espinhos. É a rotina, não é, filhinho? Todo o dia a mesma toalha, o mesmo sabonete. É fogo. Além de que, esse assunto é maçante. Vamos deixar para o próximo número.

A sua afilhada portuguesa, que depois de adulta a secretariou, a quem Araca quis ver médica mas que acabou vendo advogada, ainda hoje vive lá com seu nome fidalgo, Maria Adelaide Serra Bragança.

Um dos cachorros de Aracy se chamava Feijão.

— Sério, compadre, ninguém gosta de cachorro como eu.

Além do uso do cigarro importado, americano, a mania de um regime alimentar que não cumpria. Costumava fazer a feira, pessoalmente, à Rua Cruz e Souza, a feira do Encantado. Aparentemente ranzinza, esquiva:

— Ih, meu tio, eu estou sem tempo até pra me coçar.

Desculpa esfarrapada. Adorava o bate papo, era mestra na arte espontânea de prosear. Tinha carisma e conversa sua surpreendia, maravilhava ou arrepiava os pelos do braço pela autenticidade e franqueza. De memória invejável, quando sua parolagem remontava ao tempo de Noel, então, mais envolvia, devido aos detalhes e rasgos. Quando moça jogou sinuca, falou palavrão, acompanhou Noel em andanças pelos cantos por onde o poeta circulava e até pelo Mangue:

— Apesar da minha pouca idade, achava Noel um fenômeno. Passei a andar atrás dele porque estava interessada em aparecer — quando você tem pouca idade acredita nessas besteiras. Ele pegava da viola e eu cantava, em casas suspeitas, atrás do Mangue, no baixo meretrício. Sua voz era fraca e ele estava a fim daquelas mulatas. Os dias em que convivi com Noel nesta terra foram dias muito engraçados.

Sua voz sofreu restrições, devido à característica anasalada. Mas como intérprete ela foi a cantora que mais fundamente captou e transmitiu a essência rítmica do samba — a cadência.

Enquanto cantou e gravou, sua vida virou terreno do diz-que-não-diz em que era mais atacada do que atacava. As suas apresentações, de scripts livres, em boates e teatro, acabavam levantando críticas azedas, pois Aracy, em matéria de franqueza, não falava a meia verdade. Depois desabafava, jamais em tom de resposta ou desforra, mas usando inteiramente o seu direito de falar:

— Alguém escreveu por aí que eu exagero nas histórias que conto. Exagero coisa nenhuma, é tudo verdade. Conto o que é pra se contar. Tinha mais, é que não me deixam abrir o verbo. E essa coisa de Noel Rosa é preciso deixar claro que, se não fosse ele, eu não estaria aqui cantando. Só ele acreditou em mim, os outros me achavam uma escurinha que queria... Bem. Uma escurinha qualquer. E teve gente que disse até que eu desafinava, coisa que eu nunca consegui fazer em mais de 40 anos de profissão!

Uma vez, lhe perguntaram, cara a cara:

— Noel roubava música, Aracy?

E Araca, pronta:

—Ao contrário. Roubavam dele. Vi muito samba ser consertado pelo Noel e, se duvida, tem muito samba mesmo. Você está interessado na relação?

Àqueles que achavam que ela foi reduzida, com os anos, a uma cantora que interpretava exclusivamente Noel Rosa:

- Eu não me fixei em Noel e a prova disso é que cantei muitos outros grandes compositores, Caymmi, Ari Barroso, Joel e Gaúcho, Antônio Maria. A lista iria longe. Mandei pra o alto uma porção de sucessos carnavalescos que nada tinham a ver com Noel. Canto as músicas mais por sentimentalismo, por gostar do que ele fez, do que para forçar o cartaz, como uns sabidinhos já escreveram e disseram por aí. Acresce, meu tio, a seguinte circunstância: eu estou fazendo um espetáculo, cantando numa boate, num teatro, e logo o público começa pedindo: canta o Feitiço da Vila, canta O X do Problema. Manda os Três Apitos, canta a Conversa de Botequim. Aí, eu vou lá e atendo. Pego o embalo e vou indo, indo, indo de Noel. Não tenho culpa, não, compadre.

Como se tem no país a mania das classificações, ela foi considerada uma das maiores, senão a maior, das intérpretes de Noel. E a sambista mais respeitada do país. Aceitava, e não, tudo isso e explicava que Noel foi o seu mestre na arte de cantar sambas. Ninguém poderia, por exemplo, cantar melhor Gago Apaixonado, uma obra-prima, do que ele próprio. Coisas assim. Mas o fato é que desde moça foi famosa nacionalmente. E houve lendas.

Cronistas apressados viram em Aracy apenas irreverência. A gana de reportar o pitoresco e até o picaresco esteve mais preocupada com a fofocagem da suposição de que com a obra, a ponto de confundirem nomes e locais. Até se envolveu o nome de Getúlio Vargas, no Palácio do Catete, Rio de Janeiro, a prestar uma homenagem à cantora e a receber uma de suas respostas irônicas.

Na verdade, Araca esclareceu que o caso se deu quando ela recebeu um banquete em homenagem aos seus "25 ou 30 anos de rádio, eu nem me lembro". Evidente, no entanto, que a cantora omitia a data exata, para evitar o enfoque direto de um governador paulista.

O banquete era oficial e o político, sem a mínima propriedade, lhe teria feito um elogio rasgado, sem nenhuma convicção. Araca recebeu na linguagem oficial e despachou na sua linguagem típica, aberta, convicta:

— Ora, deixe isso pra lá. Isso são lantejoulas de sua parte.

Mas Getúlio Vargas, na época, nem estava em São Paulo.

Falou-se também que, uma vez, Aracy passava pela ex-Galeria Cruzeiro, hoje Edifício Avenida Central, no centro do Rio, e teria sido saudada assim por Ari Barroso:

- Olá, Aracy, como vai?

Araca retificou. Foi defronte à Livraria Jaraguá, em São Paulo, na Rua Marconi, nos tempos em que havia o famoso chá da tarde, reunindo desocupados, ricaços, esnobes e gente sem emulação cultural alguma, ruminando ideias importadas e despejando frases feitas. A saudação partiu do ator Maurício Barroso, que, estando num grupo de grã-finos, pretendeu esnobar Aracy com a inflexão "olá" de pouco caso. O que mais a ofendeu é que Maurício parecia estar fazendo um favor ao cumprimentar cantores populares, gente de uma profissãozinha qualquer, uns boêmios inconsequentes.

Ah, pra quê! Ela fez meia volta, encarou-o. E a resposta:

— Eu não sou mulher de olá!

Mas Ari Barroso não teve nada a ver com a história.

Um indisfarçável medo de avião:

— Pra não dizer que eu sinto medo, vou dizer que tenho receio. Ou, melhor ainda, que eu tenho um distúrbio neurovegetativo que não me deixa viajar de avião. Eu embarco no Rio e chego a São Paulo tontinha. Prefiro o trem, que é na base do antigo e do seguro.

Sempre uma mulher do povo. Gostava de futebol, sempre passional:

— Amo o Vasco, no Rio, mas adoro o Palmeiras, em São Paulo. Sou vascaína podre. Sou palmeirense podre. Morro. Sou palmeirense doente mesmo.

Vai daí, viveu e como. Houve duas passagens legítimas que recordava nos momentos de melhor humor e que havia dado briga. Sustentava:

— Uma vez, o Kid Pepe me encostou uma faca deste tamanho na barriga, querendo me obrigar a gravar uma batucada de autoria dele, chamada O Que Tem Iaiá. Eu gravei, compadre, com a faca na barriga e tudo.

O famoso Amélia, samba tido e havido como um dos hinos nacionais de nossa música popular, tem uma revelação da parte de Aracy. Já foi motivo de briga entre a cantora e o autor dos versos, Mário Lago:

— O Mário fica doido de raiva quando eu digo, mas a ideia de Amélia fui eu quem deu. Um dia, sugeri uma frase, "Amélia é que era mulher de verdade", ao Wilson Batista. Ele disse que andava sem tempo para compor e então o Ataulfo, que estava perto, pediu a frase para o Mário, e o samba foi feito. Tem mais. Dou até o local onde aconteceu: na Leiteria Nevada, ali na Rua Bittencourt da Silva. Na esquina ficava o Café Nice.

Sempre saltava do ataque para a defesa. Sobre a velha guarda:

— A verdade clarinha, compadre, é que nos tempos antigos, principalmente na minha fase de RCA Victor, havia mais camaradagem e todos os artistas torciam pelo sucesso de um cantor. O Orlando Silva, a Aurora Miranda, o Francisco Alves, todo mundo ajudava no coro. A gente tinha uma dificuldade bárbara para gravar. Então, se dava outro valor, né?

Mas com solene serenidade, Aracy, quando aborrecida, costumava declarar ao empresário:

— Veja. Eu moro longe, tenho os meus cachorrinhos de estimação e não preciso me aborrecer para trabalhar. Já enjoei de cantar e tem mais: o ambiente não ajuda, e no momento o mingau anda grosso.

Já veterana, sua figura continuou desconcertante também em público. Aparecia de minissaia, botinhas e boina na cabeça. Não se definiu até que ponto ela estava na moda ou ridicularizando os costumes.

Tocava o telefone. Um empresário, do lado de lá do fio, a convidava para receber uma homenagem. Ela deveria cantar, inclusive.

— Homenagem me dá muito trabalho, meu filho. Eu ando cansada. Imagine só: eu passei a manhã inteira cuidando do jardim, tive de tirar tanta terra de lá pra cá e você me vem com essa história de homenagem... Hem, e quanto vocês me pagam para cantar?

Vem a resposta.

— O quê? Olha aqui, meu filho, quem canta de graça é galo!

Desligando o telefone, voltava aos cachorros:

— Na outra encarnação, eu devo ter sido cachorro. Porque ainda não conheci no mundo quem gostasse mais de cachorro do que eu. Sério, compadre. Flor e cachorro é comigo. Imagine que eu cuido do Feijão, da Bela Lola (uma homenagem que eu fiz a um filme de Sarita Montiel), da Gorda e da Mundica. A Mundica, não desfazendo das outras, é minha grande considerada. Mas o fato é que eu já criei muito cachorro e pretendo criar muitos ainda.

Famosa, disputada, teve seus apaixonados. Um deles, em São Paulo, a apanhou no hotel, colocou-a num táxi, levou-a a passear pela cidade, enquanto a cortejava dizendo-lhe coisas doces. Ao passarem pelo Viaduto do Chá, Aracy saudou a paisagem, com ironia:

— Esta é a Ponte dos Suspiros.

Araca passou os seus derradeiros trinta anos sem gravar. E pouco cantava. Costumava repetir que o mingau estava grosso.
(Junho de 1989)

(1) Referência a um samba de autoria de Nilo Bom Cabelo, em que ele imitava a voz de Francisco Alves.
(2) ratatuia = corja, bando; gente mal-intencionada.
(3) gurufim = passatempo praticado durante os velórios de pessoas queridas (com jogos do anel e de adivinhações), típico dos morros do Rio de Janeiro.
(4) Vista Chinesa = ponto turístico na serra do Rio de Janeiro, com um quiosque em estilo chinês, e de onde se avista a baía da Guanabara; foi um recanto apreciado pelos namorados.
(5) queimar o pé (em) = beber muito.
(6) Referência à composição "As rosas não falam" que, gravada pela primeira vez em 1976, deu popularidade a Cartola ([...] "Queixo-me às rosas / Mas, que bobagem, as rosas não falam / Simplesmente as rosas exalam / O perfume que roubam de ti" [...]).

Texto extraído do livro “Dama do Encantado”, Editora Nova Alexandria – São Paulo, 1996.
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João Antônio Ferreira Filho (1937-1996), nasceu de uma família de imigrantes portugueses de poucos recursos, na cidade de São Paulo (SP). Em 1949 publica seus primeiros contos no jornalzinho infanto-juvenil "O Crisol". Sem deixar de ler e escrever muito, em 1954 começa a freqüentar os salões de sinuca da cidade. Em 1958, ganha os concursos de contos da revista "A Cigarra" e do jornal "Tribuna da Imprensa", ambos do Rio de Janeiro. Inicia o curso de jornalismo. Em 1959, ganha o concurso de contos do jornal "Última Hora", de São Paulo. Os originais de seu livro "Malagueta, Perus e Bacanaço" são destruídos no incêndio de sua casa, em 1960. O livro só será publicado em 1963, totalmente reescrito. Ganha o Prêmio Fábio Prado e dois Prêmios Jabuti (revelação de autor e melhor livro de contos do ano). Muda-se para o Rio de Janeiro, para trabalhar no "Jornal do Brasil", em 1964. Em 1966 volta a São Paulo, onde fará parte da equipe criadora da revista "Realidade". Tem contos publicados na Alemanha, Venezuela e, naquela época, Tchecoslováquia. De volta ao Rio, em 1968, passa a colaborar com diversos jornais. Publica, em 1975, "Leão-de-chácara" (Prêmio Paraná de 1974) e "Malhação do Judas carioca". Edita o "Livro de cabeceira do homem" e cria a expressão "imprensa nanica" no jornal "O Pasquim". Ainda nesse ano, é agraciado com o Prêmio Ficção da APCA (SP). Em 1977, seu conto "Malagueta, Perus e Bacanaço" é adaptado para o cinema, recebendo o nome de "O jogo da vida". Outro prêmio: em 1983, seu livro "Dedo-duro" recebe o Troféu Calango do Prêmio Brasília de Ficção. Ganha também o Prêmio Pen Club. Nos mais de quinze livros que deixou mostra sua extrema habilidade em fundir a linguagem falada nas ruas e a escrita literária. Atuou intensamente na imprensa e foi um ardoroso defensor dos direitos do escritor no Brasil. Premiada, sua obra é objeto de análise dos mais importantes críticos literários brasileiros.

Outras obras do autor: "Casa de loucos" (1976), "Calvário e porres do pingente Afonso Henriques de lima Barreto (1977), "Lambões de caçarola" (1977), "Ô, Copacabana" (1978), "Noel Rosa" (1988), "Meninão do caixote" (1983), "Dez contos escolhidos" (1983) e "Abraçado ao meu rancor" (1986).

sexta-feira, 9 de julho de 2021

Carolina Ramos (Catatau)

Chuvinha fina, persistente... gelava até os ossos. Encolhidos sob a marquise urbana, os três garotos conversavam, sentados num degrau de pedra:

Então, Catatau... vê se resolve duma veiz! Tu vai ou não vai c'a gente?!

O guri, encolhido entre os dois maiores, encolheu-se um pouco mais, ainda indeciso. Era o mais novo, mais franzino e também o mais assustado de todos.

Tu vai? Ou qué ficá morando aqui na rua... sozinho... Diz!

Duas cotoveladas fizeram com que a resposta saltasse mais pronta que a disposição do menino.

– AH... tá bom... tá bom... eu vô, sim!

– Tá certo, Catatau, tu não vai se arrepende, não! A gente vai conhece o mar. Lá embaixo, não existe frio! Tem sempre sol! A areia é fofa... quentinha... Tu vai vê, a gente nem vai precisá dos coberto que as muié deram. Prá durmi é só fazê um buraco e se cobri com a areia quentinha... e o mar, ali pertinho... vai cantá a noite interinha, sem pará... chuá... chuá...

– Tô cum fome!

Guenta, Catatau, eles vão trazê cumida... Tão chegando!

Cada farol de carro que cortava a escuridão aumentava a expectativa.

Toma, chêra isto. É bom. Ajuda a enganá a fome.

A cola de sapateiro correu, mão em mão... e foi parar na de Catatau.

Posso cumê um pedacinho?

Tá lôco, Catatau! Num vê que isso é só prá cherá, rapaiz?...

A porta abriu-se, tão logo o veículo encostou-se ao meio fio. Sem perda de tempo, Juca e Zinho acomodaram-se no carro, a disputar lugar com o próprio corpo. Outros garotos e seus cobertores já estavam instalados, ansiosos por partir.

Catatau ainda permanecia de fora, enrolado na sua manta, a ponta da mesma enfiada na boca - chupeta improvisada. Embora tentado, lutava intimamente contra as amarras da indecisão.

Vem, logo, cara... dêxa de sê bobo, moleque! – estrilou o Zinho.

Sem mais fazer-se de rogado, Catatau deixou a bobice de fora e entrou no carro... cobertor sujo a arrastar atrás de si mais sobras das sujeiras ambientais.

Acomodou-se como pôde no espaço mínimo que lhe foi concedido,

Vocês estão limpos? – indagou voz adulta vinda do primeiro banco.

Se tiverem alguma sujeira nos bolsos...favor ir jogando fora tudinho... ou ninguém sai daqui.

A cola de sapateiro saltou pela janela do carro... algumas bitucas de cigarro também e... sabe-se lá mais o quê!

O carro partiu em seguida.

Um calorzinho gostoso... emprestado pelo contato de outros corpos, percorreu os membros de Catatau, produzindo uma sensação de bem-estar... apenas não perfeita por conta daquela fome.

Pedaço de pão, sem manteiga, e uma banana chegaram-lhe às mãos, não antes que outras mãos afoitas tentassem se apossar do lanche. Atenta, a voz de novo avisou:

Ei... vocês já comeram! Calminha gente! Agora é a vez deles!

Desceram a serra ligeirinho... sem quase dizer palavra. Névoa branca, preenchendo os bolsões do abismo... curvas aconchegando... ora pra cá, ora pra lá, num balanço de maré, que embrulhava o estômago.

Quem conduzia e quem os conduzidos era o que menos importava. Lá embaixo, o colar de luzes demarcava limites. De um lado, o casario iluminado a guardar no íntimo histórias sem conta. Do outro, a escuridão insondável do oceano - misterioso caminho plenamente aberto para o desconhecido.

A imaginação do menino galopava, embora sono pesado lhe derrubasse as pálpebras!

Tão bom se pudesse mergulhar naquelas piscinas de névoa branca, macias como nuvens de algodão!

Varreu a ideia... - Impraticável! Valia esperar pelo mergulho nas espumas salgadas daquele mar que lá embaixo o esperava aquecido pelo sol. Faltava tão pouco! A cabeça latejava. A testa ardia.

Alguém vomitou... solidário, vomitou também. E a voz alertou:

Olha essa sujeira aí atrás... joguem jornais por cima...

O fedor penetrante do vômito engulhou mais o estômago do menino. Guardou o pão que sobrara. Perdera a fome!

Em breve, o cheiro de lona de freio queimada anunciava o fim da serra, Cubatão... Alemoa... Não demorou para que o carro chegasse ao lado da Rodoviária santista e, dobrando à esquerda, despejasse a carga humana num beco escuro logo adiante.

A voz avisou novamente:

Dispersem-se... e... depressa... ou logo estarão de volta ao lugar de onde saíram.

Pequenos vultos, enrolados em cobertores doados, esgueiraram-se a correr por todas as direções, parecendo minúsculos duendes fugidos à realidade.

Catatau, sempre indeciso, sentiu-se só. Chamou, sussurrante:

Zinho... Juca.... ondé qui vocês tão?!

Não obteve resposta. A "perua" partira. Restavam no solo jornais empesteados de vômito a envolver sonhos amarrotados.

O garoto resignou-se. Tinha que contar consigo mesmo. Teve vontade de chorar e gritar pela mãe. Mas a voz... tão sem forças, não tinha condição de chegar ao céu... tão distante! Engoliu as lágrimas. De que valiam?! Precisava, isto sim, arranjar um canto para passar a noite.

O frio, úmido, subia-lhe pelos pés descalços a tolher-lhe as pernas finas. E ainda diziam que em Santos não fazia frio! A chuva, agora mais grossa, encharcava-lhe os ossos.

Escolheu um canto menos molhado debaixo do viaduto. Já havia gente acomodada por ali. Ninguém ligava para ninguém!

Catatau enovelou-se, encolhendo o corpo até sentir os joelhos roçarem-lhe o queixo. Com a ponta da língua provou a lágrima que lhe descia pela face - o mar deveria ter aquele mesmo gosto de sal!

Empelicou-se no cobertor, imóvel como ave dentro do ovo, com medo de quebrar a casca. Divagou: - E a praia? Estaria longe... ou logo ali...?! Quando a luz do dia o despertasse, correria para ela.

Parecia até já ouvir o chuá daquela aguera toda, espumante e salgada, a embalá-lo em seu vaivém... a cantar para que dormisse depressa.

Tremeu de frio ainda por algum tempo. A coberta úmida não lhe proporcionava conforto. Aos poucos, pernas e braços pareciam anestesiados. Precisava dormir para o tempo passar depressa. Amanhã, iria conhecer o mar... Aquele mar ainda escondido no bolso da noite... tão escuro e tão frio quanto ela. Enterraria os pés gelados na areia fofa... Enterraria as mãos, os braços, as pernas, o corpo inteiro, naquela "fofura"... morninha de sol!...

Um torpor estranho foi tomando conta daquele corpo franzino. Catatau mergulhou no sono como quem mergulha de ponta cabeça numa nuvem de algodão. E não sentiu mais frio... E não sentiu mais fome... e nem aquela pontada nas costas, doida pra caramba!, que desde o dia anterior não o deixava respirar direito, fazendo-o tossir. Seus olhos foram se fechando devagarinho... Catatau adormeceu... E não acordou mais!

Uma semana depois, novos "catataus" chegavam numa outra "perua", enrolados nos seus cobertores encardidos.., Famintos e friorentos, como sempre!

E, como sempre, cheios daquela poética ansiedade de conseguir mergulhar os pés naquele marzão imenso e provar o gosto que ele tem...pra saber se aquela "aguêra" toda era mesmo salgada... Logo a comprovar que o mar também guardava dentro dele aquele mesmo gosto amargo que toda lágrima tem.

Fonte:
Carolina Ramos. Canta… Sabiá! (folclore). Santos/SP: Mônica Petroni Mathias, 2021. Capítulo 5: Contos rústicos, telúricos e outros mais.
Livro enviado pela autora.

Júlia Lopes de Almeida (A valsa da fome)

Quando o pianista Hipólito entrou na sala, houve um sussurro de contentamento. Era preciso romper aquela monotonia, as moças estavam mortas por dançar.

Dentro de uma velha casaca ensebada, com o pescoço hirto e as grandes mãos balançantes, ele dirigia-se para o piano a largos passos, com as narinas dilatadas e o queixo muito agudo, cortando o caminho como uma proa de navio virada para o porto desejado.

Houve quem risse; ele era tão magro, ia tão amarelo e com tão viva chama nos olhinhos pretos, que uma senhora, uma dessas senhoras espirituosas e amigas de fazer comparações, perguntou a um amigo:

– Quem teria tido o esquisito gosto de vestir de homem aquela tocha funerária?

Logo o interrogado, rapaz gordo, metido a literato, com o peito florido por uma gardênia imaculada, respondeu:

– A fome. Foi a fome que lhe envergou aquela casaca pré-histórica e lhe amarrou ao pescoço, com verdadeira gana de o enforcar, aquela gravata branca. Só ela, a maligna, o faria entrar neste salão burguês para divertir as moças. Porque, fique sabendo a minha senhora e amiga, aquilo que está ali é um artista. A fome tem muita força para trazer um animal daqueles, todo nervos, para um lugar destes. Só pelo freio!

– Oh!

– Não se escandalize e repare-lhe para a nodosidade dos dedos. Valentes, formidáveis, não? Pois vai ver: roçam pelo teclado como uma ponta de asa pela superfície de um lago. Hão de me agradecer o tê-lo trazido cá...

– Ah, foi o senhor...

– Fui eu; por um acaso... Imagine que fui homem encarregado de contratar o pianista para a festa, e que só hoje, à última hora, me lembrei da incumbência!

– Sempre o mesmo! Aquele senhor então, veio remediar uma falta...

– E preencher uma lacuna. Com duas palavras vou fazê-la interessar-se por ele. Tinham-me dito que o Hipólito, chama-se Hipólito, vendera o piano há cerca de uns seis meses, para fazer o enterro à irmã, única pessoa da família que lhe restava ainda, e que morreu de penúria com outras complicações... Conheci-a, era um lírio; tanto este é de bronze como a outra era de cristal. Amavam-se como nunca vi; ele tocava-lhe as suas composições e ela entendia-o, ia até ao fundo do seu pensamento, numa admirável intuição de arte, toda feliz, toda orgulhosa daquele irmão. Através do seu corpo diáfano, como que se lhe via a alma iluminada e radiante. Era muito branquinha, muito branquinha... Pobre pequena! Desde que ela morreu sumiu-se o Hipólito.

Naturalmente, por mais que ele nos divertisse e nos fizesse falta, não o quisemos perturbar na sua mágoa. Compreendo que para um homem não há amor tão doce como o de uma irmã, nem que maior saudade possa deixar... Perdi assim de vista o meu maestro, até que, desabituado, não me tornei a lembrar dele, quando hoje, de repente, na ocasião mesmo em que eu me esbaforia atrás de um pianista para a soirée* da minha tia, encontrei-o cabisbaixo, contemplando as ruínas dos botins.

Pareceu-me um santo; agarrei-o com a possível veneração e fiz-lhe a minha súplica com tal ardor que ele acedeu trêmulo, numa ansiedade febril, titubeando:

– Há seis meses que não toco, desde que ela morreu... sabe? Não tenho piano, não frequento casas de música. Cavo a vida por outros modos... mas estou com saudades, muitas saudades!

Tinha a boca seca, sentiu-lhe o hálito ardente; convidei-o para tomar um chope.

– Não; tenho medo, respondeu-me. Estou com fome.

– Mais uma razão para ires tocar à casa da minha tia, respondi–lhe. Lá matarás a fome a peru trufado e as saudades do piano num excelente Bechstein**. Se não fosse tão tarde... Tens casaca?

– Não tenho nada.

– Há aí umas casas que alugam disso. Apressa-te; às dez horas deve romper a primeira valsa e já são oito. Toma o dinheiro para a casaca; comerás lá em casa. Foi tudo o que eu disse, à pressa, pensando em ir preparar-me também. E ele arranjou-se, não sei em que guarda-roupa, mas com uma brevidade que me espanta, visto que eu começava a temer... Sim, com dinheiro no bolso, em vez da casaca ele tinha razões de esfomeado para dar preferência a um jantar de restaurante. Não lhe parece?

– Parece. Vê-se que gosta mais de contentar a alma do que de satisfazer o estômago.

– Artista. Depois da primeira valsa vou fazê-lo cear... Por Deus! adoro estas organizações!

– Tem um certo sabor, a sua história; mas agora diga-me com franqueza, não receia que esse senhor heroico nos toque uma marcha fúnebre em vez de uma contradança? Olhe para ele!

– E a senhora ri-se!

Hipólito sentava-se. As abas da casaca pendiam-lhe murchas e amarrotadas, como duas asas de urubu doente. As suas mãos trigueiras, que o exercício do teclado desenvolvera, caíram sobre o marfim do piano num gesto ávido, de posse. O busto ossudo e longo arquejou-lhe num soluço abafado e duas lagrimazinhas ardentes subiram-lhe aos olhos áridos. Ninguém as viu; todo dentro de si, ele escutava, maravilhado, os sons que ia ferindo e que se seguiam em revoada, como um bando de aves libertadas de repente de uma clausura longa...

Rolaram notas macias, num prelúdio que foi como que uma carícia por todas as teclas, e desse prelúdio nasceu uma valsa, ora ritmada em graves, ora desdobrada em arpejos que iam e vinham num movimento doce e embalador.

Atrás dele já rodopiavam os pares. Carnes acetinadas, dos colos e dos braços nus, iluminadas pela poeira lúcida da brilhantaria, roçavam palpitantes o áspero pano das casacas. Ia crescendo o número de pares. Manchas azuis, rosas, brancas e violáceas giravam diáfanas, ora aqui ora ali, como nuvens do crepúsculo balouçadas pelo vento.

Inebriado, num gozo estático, Hipólito admirava-se que o piano obedecesse ainda tão bem aos seus dedos nervosos e à sua inspiração. A saudade da arte, a saudade dolorosa que havia tanto o pungia, desafogava-se enfim! Seria um sonho aquilo? Nunca a sua imaginação fora tão fresca nem tão abundante. O repouso dera-lhe novas forças; o sofrimento subtilizara-a.

Assim, Hipólito abstraía-se; ia perdendo pouco a pouco a noção do lugar.

A valsa seguia o seu curso, criando a cada compasso novos motivos, que, nascendo uns dos outros, se avolumavam de pequeninas fontes em cascatas, onde as melodias flutuavam como flores na torrente para se submergirem em harmonias, compactas e nunca repetidas.

E como aquela saudade não se contentava, a música era infindável. Algumas pessoas paravam extenuadas, mas vinham logo outras; dançava-se sempre, até que vozes impacientes gritaram:

– Basta! basta!

Não bastava. O artista, insaciado, não ouvia ninguém. Todo curvado, anelante, com os joelhos pontudos erguidos alternadamente pelo movimento dos pedais, os cotovelos magros unidos ao corpo trêmulo, as mãos enormes, ora leves como plumas, ora pesadas como ferro, na brancura do marfim, ele aspirava entontecido aquela música nascida do seu cérebro e da sua alma, tal como se ela fosse um aroma intenso que o perturbasse e ainda assim quisesse absorver.

Todos na sala olhavam para ele com pasmo, na vaga percepção de um mistério divino. Já nenhuma voz dizia: – basta! os lábios entreabriam-se de espanto, mas em silêncio.

Que música nova seria aquela, onde os sons borbulhavam num fervor contínuo, marulhando como a onda ou rompendo em remígios de aves gorjeadoras? Que música seria aquela, para levar de roldão, no leve compasso da valsa, risos e agonias, badaladas de sinos, frases de loucos e suspiros de amor?

Na densa espiritualidade daquele poema, sentia-se ofegar uma ânsia irrequieta, humana, de perfeição. O suplício de a atingir arrastava-se como um desejo eterno, sem esperança...

Pálido, convulso, sem sentir a fome que o dilacerava, o pianista agitava-se, transfigurado, com os olhos lacrimosos e a fronte enluarada. Dos seus dedos, fortes como raízes nodifloras, desabrochavam cachos de modulações, e ele vergava-se todo, como se por vezes quisesse beijar o piano.

Havia mais de uma hora que durava aquela valsa, e Hipólito tocava sempre exuberante, num alheamento místico, de sonho. Tocava já sem as blandícias dos primeiros compassos, já sem os esboços fugazes de motivos em sucessivo abandono, mas num esforço de vitória suprema, num desdobramento febril de sons que faziam do piano uma orquestra e da valsa uma marcha de triunfo.

Levantaram-se todos, lívidos de espanto. A solenidade daquela loucura, e a concepção de uma obra de arte e sua simultânea execução produziam em toda a gente o arrepio do gozo e o silêncio do pasmo.

Arquejante, surpreendido pela magnificência da sua criação, Hipólito, desvairado, alterou o compasso, desenvolvendo um trecho de sonoridades amplas, numa alegoria à Glória, digna de uma cantata.

Sem ver ninguém, ele recebia o influxo da admiração de todos.

As luzes irradiavam como o sol, a atmosfera carregada de aromas entontecia-o, e a fome estorcegava-lhe o estômago, fazendo-lhe escorrer pelas costas e os membros um suor de vertigem.

Não podia mais, vinha o cansaço, os pulsos amoleciam-se-lhe, uma nuvem escura ia-lhe a pouco e pouco toldando a vista... Feliz, naquela reconquista, ele teimava, teimava, cada vez mais fraco, já inconsciente, com os dedos erradios no teclado, de que levantava agora uma revoada de sons alucinados e confusos. Reaparecia o ritmo da valsa arrastando harmonias desacordes, nascidas ao acaso das mãos bambas...

O auditório que o aclamara começava a rir, ao princípio baixinho, depois mais alto, mais alto, até à gargalhada franca e brutal, quando, repentinamente, se calou assustado.

O rapaz da gardênia, com os olhos cheios de água, correu a acudir a Hipólito, que desmaiara sobre o piano.
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* Reunião social que acontece à noite.
** Marca alemã de piano.


Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Ânsia eterna. 2. ed. rev. Brasília : Senado Federal, 2020. Publicada originalmente em 1903.

quinta-feira, 8 de julho de 2021

Arquivo Spina 37: Artur José Carreira

 

Jaqueline Machado (Aruanda entre Nós) 2 - A Trilogia de Xangô


Capítulo da série: Aruanda entre nós - os mais belos contos sobre Orixás.
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Xangô é um rei justiceiro.
Ele vem lá de Aruanda...
Combate o mau feiticeiro
que trapaceia a demanda...


Reza a lenda que antigamente na cidade de Oió – Nigéria - um rei chamava a atenção de todos por sua retidão e senso de justiça. Na verdade ele também era juiz, chamava -se Xangô e tinha três esposas: Oxum, era a sua primeira mulher e por isso foi concedido a ela os dotes de dona de casa. Por ele a moça foi coroada como sendo a rainha do lar, bela, vaidosa, feliz e responsável pelas delícias... preparadas na cozinha. Oxum era radiante e mantinha o ambiente sempre alegre. Dos pratos que fazia, o favorito do rei era a sua feijoada. Não existia outra de sabor igual.

A segunda esposa não menos bela que a primeira, chamava –se Iansã, uma guerreira que parecia possuir a força de mil homens. Pois já havia vencido junto de outros guerreiros, inúmeras batalhas em nome do seu povo. Mesmo sendo ela tão brava e poderosa, conservava em si, um certo ar doce e sensível. E, foi justamente esse misto de força e candura, que fez dela, a favorita do juiz.

Já a terceira esposa, também era forte, guerreira e amada, mas talvez por ser um tanto calada sentia-se mais distante de seu amado do que as duas primeiras que eram mais falantes, faceiras e pareciam fazer o coração do rei vibrar a todo instante.

Obá, sabendo que Oxum havia conquistado o marido com sua poderosa feijoada, procurou saber da rainha do lar qual era o segredo mágico de sua receita. Oxum, percebendo as intenções da mulher, enciumou-se, e mentiu dizendo que o segredo estava em colocar uma lasquinha de sua orelha. Obá pediu licença a dona da cozinha para poder cozinhar uma única vez a seu amado. Com a devida licença concedida, a moça adiciona aos temperos um pedaço da própria orelha.

No jantar quando todos estavam à mesa, ela mesma fez questão de servir o marido, que ao provar a feijoada indagou o que havia de estranho na refeição. Ao saber que tratava -se de um pedaço de orelha e que Oxum havia mentido para uma de suas companheiras por ciúmes, ele empurra o prato e pune as duas. Obá foi enviada para uma distante região cheia de cachoeiras para que pudesse meditar sobre a vida. E a sua primeira esposa, responsável pelos cuidados com a casa, teve de afastar-se da cozinha por três longos meses.

O tempo passou e, mais sensatas, unidas e felizes, as mulheres do rei continuaram a fazer de tudo para agradá-lo. Ele, com gestos nobres, cuidava delas. E lutava para manter a ordem e o amor em sua nação.

Fontes:
Texto, trova e imagens de Xangô, Oxum, Iansã e Obá enviados pela autora.
Montagem da capa por José Feldman, com imagem de Aruanda obtida no site Belas Artes, sem autoria.

Argentina de Mello e Silva (Jardim de Trovas) 4


Amor! RelÍquia tão rara,
ao relógio se aparenta:
com pouca corda ele para,
com muita corda... arrebenta!
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Aprende, amigo, a fingir
com quem não te sabe amar.
Não faças ninguém sorrir
com a dor que te faz chorar.
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Democrata ou social
— qualquer um que os povos tomem,
sempre o regime ideal
é o valor real do homem!
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É mais pobre do que o pobre
que disso tem sentimento,
o rico quando "descobre",
que o é por merecimento.
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Eu me sinto alienada
dos bens que a vida contém.
O tudo no mundo é nada,
e o nada é tudo também!
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Folha que segue a torrente
à sorte desconhecida.. .
É assim a vida da gente
e há tanto orgulho na vida!
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Há muita verdade omissa
na justiça que anda aí.
Em nome dessa justiça
quanta injustiça eu já vi!
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Hoje que o mundo é um deserto
de moral, de paz, de fé...
a gente procura o certo
mas já nem sabe o que é!
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Liberdade ! Os que propalam
o teu valor que constrói,
são os mesmos que se calam
quando a força te destrói.
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Mais ostentas teu orgulho
mais de ti eu tenho dó.
És como um dourado embrulho
por dentro cheio de pó.
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Menina feia, chorosa,
alegra teu coração.
Nem sempre a mais linda rosa
foi o mais lindo botão.
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Na hecatombe da montanha
tem o mundo o seu retrato;
tanto grito, tanta sanha,
"e a montanha expele um rato".
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Não esqueça um só segundo
de honrar a vida que tem.
Só o viver neste mundo
não enaltece ninguém!
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Neste mundo quem quiser
ter amor — precisa amar!
Mas o amor como Deus quer,
quem, no mundo, pode dar ?
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No mundo não esqueçamos
que os bens encontrados cá,
bem pouco tempo os guardamos:
a vida empresta — não dá !
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O homem — esse vagabundo
que é um gigante e um pigmeu,
busca mundos, e o seu mundo
ele jamais entendeu!
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Os males que não se espera
sorrateiros advêm.
E a gente se desespera
por outros que nunca vêm !
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Ostente com sobriedade
o muito que você tem.
Que também é caridade
não humilhar a ninguém.
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Para que o homem pudesse
sublimar sua alma nua,
foi mister que Deus lhe desse
a mesma Cruz que foi Sua !
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Para ser grande, serena,
um bom conselho segui;
fui me fazendo pequena,
quanto menor — mais cresci!
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Seja sempre enaltecida
a caridade de quem,
tendo bem pouco na vida,
divide o pouco que tem.
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Se na reta do teu mundo
qualquer nuvem te ameaça...
não recues um segundo:
para... olha... escuta e.. passa!
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Sofrimentos todos têm.
A paz nem sempre se alcança.
Mas, nunca se viu ninguém
vivendo sem esperança!
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Uma caridade há
que de vaidade se embebe.
Exalta àquele que dá,
humilha quem a recebe.

Fonte:
Argentina de Mello e Silva. Trovas dispersas. Curitiba/PR: Centro Paranaense Feminino de Cultura, 1984.

Aparecido Raimundo de Souza (Coriscando) 21: De graça

BARBIOLO TOMÁZIO chegou bêbado feito um gambá. De revolver em punho, encostou o cano da arma no ouvido do sujeito que conversava animadamente com sua esposa, dentro de casa, ou mais precisamente na porta do quarto de dormir do casal.

— Vou te matar, seu destruidor de lares — foi logo dizendo Barbiolo Tomázio, à figura que proseava com a sua patroa. Descobri tudo. Não adianta mentir. Você é o amante da minha mulher. Peguei vocês dois com a boca na botija. Se prepare para partir para os quintos. Comece a rezar. No três, eu puxo o gatilho. Lá vai: um... dois...

Apavorado, o rapaz começou a tremer pior que vara verde.

— Calma, meu senhor, muita calma nesta hora. Eu explico. Não sou amante de ninguém, apenas o namorado da filha de vocês. Não é mesmo, dona Cristina?

A companheira do bebum, quase teve um peripaque. Momentaneamente refeita do susto, balançou a cabeça num sim meio que destituído de entusiasmo. Mais aterrorizada que a própria criatura com a qual batia papo, achou por bem concordar.

Barbiolo Tomázio com a afirmativa da consorte, deu um passo atrás. Coçou a cabeça. Ficou meio pensativo e, por fim, guardou a arma na cintura.

— Desculpa. Bebi além da conta... fiquem a vontade...

Ia a meio caminho, em direção à cozinha, quando se voltou e se aproximou novamente do infeliz. Desta feita, Barbiolo Tomázio parecia mais colericamente furibundo que da primeira vez. Por esta razão, veio com a pistola engatilhada, pronto para não perder tempo e mandar o desgraçado para os braços frios da morte.

— Meu camarada — disse sem mais delongas. Acabou de acender uma luzinha aqui na minha cabeça...

— Uma luzinha, senhor? Que luzinha?

— Você disse que é o namorado da minha filha?

— Sim senhor. E sou mesmo. dona Cristina, acabou de confirmar. Acho que ficou tudo esclarecido entre a gente. Estou com a sua filha bem uns três meses. Eu ia até falar com o senhor...

— Como é o nome da minha filha mesmo?

— Bárbara, senhor...

— Eu acho que você não está em seu juízo perfeito. Sinto o cheiro de mentiras no ar... Tenho cara de besta? Ou pior: de corno? Responda...

— Como assim, senhor?

— Simples, meu chapa. Primeiro: isto é hora de estar namorando uma garota de família?

— Hoje é domingo. São quase três da tarde. Pretendo levar a Bárbara, a filha de vocês, ao cinema, se o senhor concordar, é claro. Dona Cristina, como pode perceber, não se opôs...

—... Segundo: acha que devo deixar um malandro da sua marca me passar para trás e me levar no bico? Cabra safado fique sabendo de uma coisa: eu bebi cachaça até dizer chega, não a consciência...

— Senhor, não estou levando a sua pessoa no bico. Tampouco me veio à mente lhe passar para trás. E me desculpe, não sou safado. Posso não parecer, mas sou uma boa pessoa. Tenho meu emprego, meu apartamento... agora pretendo comprar um carrinho... quero dar todo conforto à Bárbara, a quem amo de coração...

Barbiolo Tomázio, muito indignado e raivoso, abespinhado até dizer chega, literalmente soltou fogo pelas ventas.

— Só tem um porém, meu prezado.

— Um porém, senhor? Qual?!

— Tente adivinhar...

— Não faço a menor ideia. Seja mais objetivo, por favor.

Nesta altura, o fura coro, como todo medroso sem saÍda, se borrou todo.

— Você é o amante desta despudorada. Sujeito asqueroso e nojento.  Eu e Cristina não temos filhos, menos ainda uma filha com o nome Bárbara.  

Ato continuo, Barbiolo Tomázio berrou um três muito rápido. E, sem pestanejar, puxou o gatilho.

Um quarto sujeito que estava escondido debaixo da cama do casal, ao ouvir o tiro, e vendo que o rapaz que viera com ele caíra morto, saiu correndo e pulou pela janela. Foi preso logo adiante, meio da rua, por uma viatura da polícia militar que fazia a ronda.  O indivíduo estava  completamente pelado.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

IV Concurso da UBT– Seção São José dos Campos (Prazo: 15 de agosto)


TEMA: CRIATIVIDADE


PERÍODO DE INSCRIÇÃO: DE 01/07/2021 à 15/08/2021

RESULTADO E ENTREGA DE DIPLOMAS: a partir de 01/09/2021

CRITÉRIOS:

1. Uma trova inédita por trovador

2. O Tema tem que constar no corpo da trova: ABAB, conforme regras da UBT.

3. A Inscrição pode ser por e-mail ou por envelope (dentro do envelope grande, endereçado ao responsável pelo recebimento, virá um envelope menor lacrado, com os dados do trovador – nome, cidade, estado, e-mail, - tendo na frente do envelopinho a trova digitada, colada).

4. A Comissão de Julgadores é soberana. Serão três julgadores por concurso. Os mesmos não participarão com suas trovas neste concurso em que for julgador. (Arlindo Hagen; Vanda Queiroz; Therezinha Brisolla)

5. Grupos:
Grupo 1: Nacional - em Língua Portuguesa; (VETERANO)
Grupo 2: Nacional - em Língua Portuguesa; (NOVO TROVADOR)

COORDENADORES:

1)Inscrição por e-mail: enviar para: fiel depositário = Hélio Castro: helio.castro@techsearch.com.br (helio sem acento)

2) Inscrição por envelope: A/C de Glória Tabet Marson
Rua Major Dietrich Ott, nº 71 – Jardim das Colinas.
CEP. 12242-111 - São José dos Campos, SP.


C) JULGADORES:

1. Arlindo Tadeu Hagen – MG
2. Vanda Fagundes Queiroz – PR
3. Therezinha Dieguez Brisolla – SP

D)COORDENAÇÃO GERAL
Maria Inez Fontes Ricco
Presidente da União Brasileira de Trovadores
Seção de São José dos Campos - SP
mifori14@gmail.com