sábado, 20 de julho de 2024

Daniel Maurício (Poética) 71

 

Geraldo Pereira (Contrastes do Cotidiano)

Acomodado na sala de espera de um laboratório qualquer, esperando a vez, como tantos outros, nunca pensei testemunhar diálogos que me permitissem ensaiar reflexões quase sociológicas, a propósito do difícil exercício da vida, quando a idade vai marcando o tempo com a prata dos anos. 

A senhora, na casa dos oitenta, era cliente aprazada, imagino, fazendo-se acompanhar da filha e de mais um filho, além de uma neta muito jovem, ainda. Conversavam a respeito dos incômodos provocados por ela, pela mulher de idade avançada, de corpo vergando à força das décadas e de bengala à mão. Desfiavam um rosário de queixas, desde o sono precoce no cair da tarde à insônia das madrugadas, sem falar nas impossibilidades fisiológicas de retenção das excreções orgânicas. Falavam como se estivessem imunes à senectude.

A moça era a mais loquaz. Morava com a avó e por isso vinha presenciando cenas com as quais não concordava; não concordava em vê-la sedentária, na sala do apartamento, entregue à artrose, enquanto o avô, todos os dias, descia e fiava boa conversa com o porteiro do prédio. Que fosse, também, àquele passeio matinal, entre o andar de cima e o térreo e ouvisse do empregado as suas histórias, mazelas de uma outra vida. E não podia se conformar, também, com o cochilo vespertino, transformado em sono profundo até, com roncos e outros ruídos, à boquinha da noite. Por isso, às quatro já estava de pé, andando pra lá e pra cá, insone. É que ao despertar daqueles inícios oníricos na varanda de casa, não cuidava em sair correndo para a cama, como desejava a nunca cuidadosa neta, mas tomava banho e lanchava. Assim, perdia o sono e os sonhos!

A filha, mais cautelosa, pouco dizia, mesmo que não reagisse. O filho, entretanto, malhava a mãe com todas as culpas. Não se cuidava! Deveria tomar três remédios distintos para a hipertensão de que era portadora, mas esquecia. Tomava dois ou tomava um. Nada tomava, por vezes. Um absurdo, insistia! Pior quando a neta abriu a boca para falar da incontinência urinária da pobre mulher, a manchar o sofá da sala e a deixar um rastro, como se bicho fosse, antes de chegar ao banheiro. Tinha que sair atrás, com o pano de chão, a enxugar tudo e era preciso providenciar para se levar ao sol a peça em que costumava sentar-se, impregnada, como estava, pelo líquido das excreções humanas. Procedia assim porque queria, afirmava com todas as letras e com todas as sílabas, pois nada a impedia de se levantar antes das urgências orgânicas. Fosse mais cuidadosa, portanto!

A avó, que cumpriu, como se imagina, uma trajetória longa, palmilhada de sacrifícios e preenchida por doações que só as mães podem oferecer, nada respondia e nada comentava, ouvia tudo com uma fisionomia de profunda tristeza. Em que estaria pensando? Que reflexão fazia ali, naquele momento de tantas reclamações e de tantas queixas? Quase me aproximo e intercedo em favor da mulher idosa. Ou quase chego perto e verbalizo o futuro que está reservado à toda a gente, de uma forma ou de outra. Por que se ocupavam de comentários assim, tão vazios de conteúdo existencial? Que benefícios poderia ter, fiando conversa com o porteiro? O homem do prédio teria o que lhe acrescentar à vida vivida? E o sono? Não sabem que é da idade, mesmo, essa sonolência precoce e a insônia do despertar antecipado? E não conhecem a fragilidade dos esfíncteres humanos na velhice? 

Lembrei-me de uma outra cena que vi, há poucos dias, num hospital público do Recife, tão diferente daquela interlocução de ocasião. No leito da emergência uma senhora de cabelos brancos também, ao lado do marido, de idade próxima, como parecia, agradando-lhe os braços e confortando-lhe o espírito. Gente simples, penso eu, sem muito estudo e sem muita cultura, mas dotada de afetividade, de amor ao próximo, sobretudo assim, no sofrimento e na dor. Viveram juntos – Quem sabe? – anos a fio na contabilidade do tempo e talvez se despedissem, mas a palavra que os uniu e os afagos que os aproximaram confortavam a derradeira hora. Sei de quem adoeceu gravemente em noite alta e antes de ser levada à emergência virou-se para o marido e beijou-lhe a fronte. Foi o derradeiro ósculo! Despediu-se, afinal!

Fonte: Geraldo Pereira. A medida das saudades. Recife/PE, 2006. Disponível no Portal de Domínio Público

Vereda da Poesia = 61 =


Trova Humorística de São Paulo/SP

THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA

Com a filha "naquele estado",
o pagode interrompeu:
“- Confessa ou morre ... tô armado!”
Os três confessam: "Fui eu".
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Poema de Vila Velha/ES

APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA

Chuva e saudade

Cai a chuva... é triste o dia...
A manhã é cinzenta e baça...
E eu mudo vejo a chuva fria,
A correr de leve na vidraça...

E a chuva cai... cai e não passa...
Nem sequer a chuva estia...
Para que um pouco se desfaça,
A saudade de quem eu tanto queria!...

Qual essa vidraça, está meu rosto...
E meus olhos não querem desanuviar...
É por demais sofrido o meu desgosto...

Aumenta a chuva e com ela a minha dor...
Soluço qual criança perdida, sem cessar,
Na incerteza de ao menos rever-te amor!...
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Aldravia de Ponte Nova/MG

MARISA GODOY

Abelha
morta:
menos
mel
no
pote
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Soneto de Curitiba/PR

EMÍLIO DE MENESES
(Emílio Nunes Correia de Meneses)
Curitiba/PR, 1816– 1918), Rio de Janeiro/RJ

Um Homúnculo

Tão pequenino e trêfego parece,
Com seu passinho petulante e vivo,
A quem o olha, assim, com interesse,
Que é a quinta-essência do diminutivo.

Figura de leiloeiro de quermesse,
Meloso e parecendo inofensivo,
Tem de despeitos a mais farta messe,
E do orgulho é o humílimo cativo.

Não há talento que ele não degrade,
Não há ciência e saber que ele, à porfia,
Não ache aquém da sua majestade.

Dele um colega, há tempos, me dizia:
É o Hachette* ilustrado da vaidade,
É o Larousse da megalomania!
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* Hachette = Originalmente, a Hachette era uma livraria e casa editorial fundada por Louis Hachette em 1826
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Trova Premiada  em  Araras/SP, 1993

DARLY O. BARROS 
São Francisco do Sul/SC, 1941 - 2021, São Paulo/SP

Passando a vida em revista
descubro, ao fim dos meus dias,
ter sido o NADA a conquista
que eu trago nas mãos vazias...
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Poema de Curitiba/PR

EMILIANO PERNETA
(Emiliano David Perneta)
1866 – 1921

Para Um Coração

Um dia, vi-te, assim, bailando,
E a uma pergunta, que te fiz,
Tu respondeste : "Eu amo, e quando,
E quando eu amo, eu sou feliz!"

Por uma noite perfumada,
Cantaste, sobre o teu balcão.
E eu disse, ouvindo a áurea balada :
- Ah! Que feliz é o coração!

Quanta felicidade, quanta,
Não há ninguém feliz assim :
Um dia baila e noutro canta,
Como se fosse um arlequim...

Eu disse .. Mas agora vejo,
Nesse silêncio tumular,
Que estás sofrendo, e o teu desejo
Já não é mais o de bailar...

Nem de bailar, e nem, de certo
De nada mais, de nada mais...
Que fazes, pois, triste deserto,
Que fazes pois, que não te vais?

Mas, choras, creio, choras? Onde?
Se viu chorar um Lucifer?
Pobre diabo, vamos, esconde
Essas fraquezas de mulher...
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Trova Popular

A árvore do amor se planta
no centro do coração;
só a pode derrubar
o golpe da ingratidão.
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Soneto do Rio Grande do Sul

MÁRIO QUINTANA
(Mário de Miranda Quintana)
Alegrete/RS, 1906 – 1994, Porto Alegre/RS

O Auto-retrato

No retrato que me faço
— traço a traço —
às vezes me pinto nuvem,
às vezes me pinto árvore...

às vezes me pinto coisas
de que nem há mais lembrança...
ou coisas que não existem
mas que um dia existirão...

e, desta lida, em que busco
— pouco a pouco —
minha eterna semelhança,

no final, que restará?
Um desenho de criança...
Terminado por um louco!
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Trova de São Fidélis/SP

A.M.A. SARDENBERG
(Antonio Manoel Abreu Sardenberg)

A vida segue de arrasto,
do sonho nada me resta…
E o que sentia tão vasto,
vejo agora que não presta.
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Poema do Paraná

HELENA KOLODY
Cruz Machado/PR, 1912 — 2004, Curitiba/PR

Alegria de Viver

Amo a vida. 
Fascina-me o mistério de existir. 
Quero viver a magia 
de cada instante, 
embriagar-me de alegria. 

Que importa a nuvem no horizonte, 
chuva de amanhã? 
Hoje o sol inunda o meu dia.
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Trova Humorística de São Paulo/SP

SELMA PATTI SPINELLI

Foi galantear, o Pérsio,
e o otário se deu mal:
"Tu és de fechar o comércio!”
E a morena era fiscal!
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Soneto de Taubaté/SP

LUIZ ANTONIO CARDOSO

Solidão
  
Propensos a quereres semelhantes,
tendo a poesia inata em nossas mentes,
tínhamos o infinito... e como amantes
seríamos estrelas reluzentes.
 
Mas eis que seus desejos, tão arfantes,
fizeram dos meus sonhos, tão descrentes,
migalhas de lembranças arquejantes,
fenecendo em processos deprimentes.
 
Recusaste o poeta que há em mim,
e todos os meus versos, que sem fim,
esculpiram o amor que eu quis te dar...
 
e decretaste enfim, a solidão,
para me acompanhar à imensidão...
onde hei de eternamente te esperar!
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Trova de Bandeirantes/PR

LUCILIA ALZIRA TRINDADE DECARLI

Na pouca pressa que tens
de aliviar minha saudade,
enquanto espero e não vens,
transcorre uma eternidade!
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Glosa Gauchesca

GISLAINE CANALES
Herval/RS, 1938 – 2018, Porto Alegre/RS

Não Sei...

MOTE:
Não sei escrever bonito,
pois me falta inspiração,
mas o que aqui está escrito
eu sinto em meu coração!
Sofia Irene Canalles
Pedro Osório/RS, 1911 – 2004, Porto Alegre/RS

GLOSA:
Não sei escrever bonito,
mas sei amar e sentir
a beleza do infinito,
simplesmente em ir e vir!

Às vezes, eu não escrevo,
pois me falta inspiração,
outras vezes, eu me atrevo
e escrevo com emoção!

Meu verso não é erudito,
possui grande singeleza,
mas o que aqui está escrito,
sai-me da alma, com certeza!

Eu sou feliz escrevendo,
e não é mera ilusão,
ver a alegria nascendo...
eu sinto em meu coração!
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Trova de Fortaleza/CE

HAROLDO LYRA

Confirma-se o sofrimento
do pobre homem, coitado!...
pois desde o seu casamento
que ele vive acorrentado.
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Soneto de Nova Friburgo/RJ

SÉRGIO BERNARDO

Êxodo

Ir-me de mim, mas ir com desapego
de tudo quanto sou ou tenha sido
-- eu, que imagem me fiz de um mito grego,
no espelho de outros olhos refletido.

Partir... Mas quando? Se ainda agora chego
de algum lugar onde vaguei perdido,
trazendo, para meu desassossego,
a inconsciência total de haver partido.

Ir louco, a deflorar os horizontes,
o espírito andarilho, a carne errante,
na fome, as árvores; na sede, as fontes.

Venha junto o que igual absurdo enfrente,
de partir para longe a cada instante
e ficar em si mesmo eternamente.
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Trova Premiada  em Ribeirão Preto/SP, 2014

MERCEDES LISBOA SUTILO 
(Santos/SP)

A gandula bem nutrida,
Causava enorme furor:
- dava bola pra torcida
E pra cada jogador! 
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Poema dos Estados Unidos

LAURA RIDING
 Nova Iorque/Nova York ,1901 – 1991, Sebastian/Flórida

Uma Gentileza

Estar viva é estar curiosa. 
 Quando perder interesse pelas coisas 
 E não estiver mais atenta, álacre 
 Por fatos, acabo este minguado inquérito. 
 A morte é a condição do supremo tédio. 

Vou deixar que me desintegre 
 E aí, por saber da paz que a morte traz, 
 Seria bom seguir convencendo o destino 
 A ser mais generoso, estender, também, 
 O privilégio do tédio a todos vocês.
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Haicai de Maringá/PR

A. A. DE ASSIS

Porque o dia é curto,
eu curto ao máximo o dia.
Vovô já o dizia.
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Setilha Potiguar

JOSÉ LUCAS DE BARROS
Serra Negra do Norte/RN, 1934 – 2015, Natal/RN

Nós temos tanto calor
e poeira em nosso chão,
que recebemos em festa
toda chuva no sertão,
e eu sinto, nessa bonança,
uma chuva de esperança
lavando meu coração.
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Trova de Taubaté/SP

JUDITE DE OLIVEIRA 

Falamos muito de paz
mas, às vezes, esquecemos
que todo bem que ela traz
é todo o bem que fazemos.
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Hino de Guarapari/ES

Quer viver o sonho lindo
Que eu vivi?
Vá viver a maravilha
De Guarapari.

Um recanto que os poetas
E os violões
Não conseguem descrever
Nas mais lindas canções.

Pelas suas noites claras,
A lua serena
Vem brindar os namorados
Na areia morena.

Ninguém poderá sonhar
Nem viver o que eu vivi
Longe desta maravilha
Que se chama Guarapari.
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A Maravilha de Guarapari: Um Hino de Encantamento e Nostalgia
O 'Hino de Guarapari' é uma celebração poética da cidade de Guarapari, localizada no estado do Espírito Santo, Brasil. A letra da música exalta a beleza natural e a atmosfera encantadora da cidade, convidando o ouvinte a vivenciar a mesma experiência mágica que o narrador teve. A música começa com um convite direto: 'Quer viver o sonho lindo que eu vivi? Vá viver a maravilha de Guarapari.' Esse verso inicial já estabelece um tom de admiração e nostalgia, sugerindo que a cidade possui uma qualidade quase onírica.

A segunda estrofe destaca a dificuldade de capturar a essência de Guarapari em palavras ou música, afirmando que nem os poetas nem os violões conseguem descrever a cidade em suas 'mais lindas canções.' Isso sugere que Guarapari é um lugar que deve ser experimentado pessoalmente para ser verdadeiramente apreciado. A cidade é apresentada como um recanto de beleza indescritível, um lugar que transcende a arte e a poesia.

A terceira estrofe pinta uma imagem romântica das noites em Guarapari, onde a lua serena ilumina a areia morena, criando um cenário perfeito para os namorados. Essa imagem reforça a ideia de que Guarapari é um lugar de sonhos e romance, um refúgio para aqueles que buscam beleza e tranquilidade. A música termina com uma declaração enfática de que ninguém pode sonhar ou viver plenamente longe de Guarapari, solidificando a cidade como um lugar de importância emocional e espiritual para o narrador. https://www.letras.mus.br/hinos-de-cidades/1788214/significado.html 
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Poetrix do Rio de Janeiro

DOUGLAS SIVIOTTI

passageira

a vida se vai
na espera ansiosa
do ponto de ônibus
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Soneto de de São Luís/MA

ORLANDO BRITO
Niterói/RJ, 1927 – 2010, São Luís/MA

A Trova

A trova é uma janela para o Sonho
que eu abro quando estou triste e sozinho.
A trova faz o mundo mais risonho,
com ela eu sou feliz no meu caminho.

Tudo cabe na trova: ora o medonho
tombar de um raio, ora o burburinho
do vento, ora um violão meigo e tristonho,
clamor de oceano, sons de passarinho.

Gosto da trova desde aquela data
em que andava a caçar tiés na mata,
armando uma arapuca e pondo alpiste.

Pois hoje, na arapuca de uma trova,
tento prender alguma idéia nova
para ouvi-la cantar, quando estou triste.
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Trova de Campo Largo/PR

ÁUREO BAIKA

Eu curto todo momento
e não perco um só segundo.
Num minuto em pensamento
posso estar em outro mundo!
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Fábula em Versos da França

JEAN DE LA FONTAINE
Château-Thierry, 1621 – 1695, Paris

A galinha que punha ovos de ouro

Um homem tinha
Uma galinha,
Que Juno bela
Por desenfado
Tinha fadado:

Vivia ela
Dentro dum covo,
E punha um ovo
De ouro luzente
Em cada um dia,
Que valeria
Seguramente
Dobrão e meio;

Mas o patrão
Um dia cheio
De ímpia ambição,
Foi-se à galinha
E degolou-a.

Examinou-a;
Porque supunha
Que em si continha
Rico tesouro,
Visto que punha
Os ovos de ouro;

Mas nada achou!
E por avaro
Se despojou
Do rico amparo
Que nela tinha.

Outra galinha
Jamais topou
Com tal condão;
E assim pagou
Sua ambição.
(tradução: Curvo Semedo)

Recordando Velhas Canções (Lampião de Gás)


Compositor: Zeca Bergami

Lampião de gás
Lampião de gás
Quanta saudade
Você me traz

Lampião de gás
Lampião de gás
Quanta saudade
Você me traz

Da sua luzinha verde azulada
Que iluminava a minha janela
Do almofadinha lá na calçada
Palheta branca, calça apertada

Do bilboquê, do diabolô
Me dá foguinho, vai no vizinho
De pular corda, brincar de roda
De benjamim, jagunço e chiquinho

Lampião de gás
Lampião de gás
Quanta saudade
Você me traz

Lampião de gás
Lampião de gás
Quanta saudade
Você me traz

Do bonde aberto, do carvoeiro
Do vossoureiro, com seu pregão
Da vovózinha, muito branquinha
Fazendo roscas, sequilhos e pão

Da garoinha fria, fininha
Escorregando pela vidraça
Do sabugueiro grande e cheiroso
Lá no quintal da rua da graça

Lampião de gás
Lampião de gás
Quanta saudade
Você me traz

Lampião de gás
Lampião de gás
Quanta saudade
Você me traz

Minha São Paulo calma e serena
Que era pequena, mas grande demais
Agora cresceu, mas tudo morreu
Lampião de gás que saudade me traz
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * -

Nostalgia e Memórias em 'Lampião de Gás'
A música 'Lampião de Gás', é uma ode nostálgica à São Paulo de outrora, uma cidade que, embora tenha crescido e se modernizado, deixou para trás uma série de memórias e tradições que a cantora relembra com carinho. A repetição do refrão 'Lampião de gás, quanta saudade você me traz' reforça o sentimento de saudade e a importância das lembranças que o lampião de gás evoca.

A letra da música é rica em detalhes que pintam um quadro vívido da vida cotidiana em uma São Paulo mais simples e tranquila. Referências a brincadeiras infantis como bilboquê e diabolô, e a figuras típicas como o carvoeiro e o vossoureiro, trazem à tona uma época em que a vida era mais comunitária e menos apressada. A menção à 'vovózinha, muito branquinha, fazendo roscas, sequilhos e pão' adiciona um toque pessoal e familiar, evocando a sensação de aconchego e segurança do lar.

Além disso, a música também aborda a transformação da cidade, que 'cresceu, mas tudo morreu'. Esse verso final encapsula a dualidade do progresso: enquanto a modernização traz avanços, ela também pode apagar traços importantes da cultura e da memória coletiva. A 'São Paulo calma e serena' contrasta fortemente com a metrópole agitada de hoje, e o lampião de gás se torna um símbolo de um tempo perdido, mas não esquecido.

Fonte:

sexta-feira, 19 de julho de 2024

José Feldman (Versejando) 143

 

Contos e Lendas da Espanha (A moça dos três maridos)

Era uma vez um homem que tinha uma moça muito bonita,  mas de gênio forte. As pessoas comentavam que a menina sendo tão bela quanto temperamental, acabaria dando trabalho ao pai, quando crescesse. Mas ele não se preocupava com isso. Aceitava a personalidade da filha e amava-a de todo o coração.

Alguns anos depois, a menina se transformou numa belíssima jovem. O pai compreendeu que em  breve ela se casaria, pois não faltariam pretendentes.

Certo dia, três rapazes se apresentaram em sua casa, cada um mais gentil e bem-apessoado que o outro. Muito educadamente, pediram a mão da moça em casamento.

O pai, depois de conversar com os pretendentes, disse que os três lhe pareciam homens de caráter íntegro, capazes de fazer a moça feliz. Disse também que todos mereciam sua bênção e que seria uma honra ter um deles como genro.

— E quem será esse felizardo? — perguntaram os rapazes.

— Isso não sou eu quem vai decidir — o homem respondeu. — Meu genro será aquele que o coração de minha filha escolher.

Assim, o homem foi consultar a moça. Falou-lhe sobre as qualidades dos três pretendentes. E que todos lhe pareciam dignos de desposá-la.

A moça o ouviu com atenção. Por fim respondeu, muito tranquila, que gostaria de se casar com os três.

— Minha filha! — o bom homem se espantou. — Compreenda que isso é impossível. Nenhuma mulher pode ter mais que um marido.

— Pois eu escolho os três — ela respondeu sem se alterar.

— Sempre soube que você tinha um gênio forte. Sempre aceitei seu modo de ser. Mas para tudo há um limite. Agora pense bem, procure ter um mínimo de bom senso e não me dê mais dores de cabeça. Afinal, a qual dos pretendentes devo conceder sua mão?

— Aos três — a moça insistiu, com uma calma espantosa. — Preciso deles para viver.

— Você precisa é de uma boa dose de juízo, isto sim — o homem protestou, irritado.

Mas não houve maneira de fazer a moça mudar de ideia.

O pai meditou longamente sobre o problema que, de fato, era por demais complicado. Depois de muito pensar, encontrou uma solução; pediu aos três rapazes que saíssem pelo mundo em busca de uma raridade. Aquele que trouxesse o presente mais extraordinário, receberia a mão de sua filha.

Os três pretendentes partiram e combinaram de se reunir um ano depois, para que cada um mostrasse o seu presente. Porém, por mais que procurasse, nenhum deles encontrou algo que satisfizesse a exigência do pai da moça. Assim, depois de um ano, os três, com as mãos vazias, foram ao local onde haviam combinado o encontro.

O primeiro que chegou sentou-se para aguardar os outros dois. Enquanto esperava, um velhinho se aproximou e perguntou-lhe se não gostaria de comprar um pequeno espelho.

O rapaz examinou o espelho e respondeu que não via razão para comprá-lo.

O velhinho então explicou que, embora parecesse pequeno e comum, o espelho tinha um dom: quem nele se mirasse poderia ver qualquer pessoa que quisesse. Bastaria formular esse desejo, com todo o coração.

O rapaz resolveu fazer um teste. E ao constatar que o velhinho dizia a verdade, comprou o espelho sem discutir o preço.

O segundo pretendente, ao aproximar-se do local do encontro, foi abordado pelo mesmo velhinho, que lhe perguntou se não gostaria de comprar um pequeno frasco de bálsamo.

— Para que vou querer um bálsamo, meu velho, se percorri boa parte do mundo e não encontrei o que buscava?

O velhinho sorriu;

— Ah, mas este aqui tem o poder de ressuscitar os mortos.

Naquele momento, passavam por ali alguns homens, levando um amigo para ser enterrado. Sem pensar duas vezes, o rapaz pediu que abrissem o caixão e deixou cair algumas gotas do bálsamo na boca do defunto, que no mesmo instante se levantou, ergueu o caixão nos ombros e convidou a todos para almoçar em sua casa. Diante disso, o rapaz comprou o frasco sem regatear no preço.

Não muito longe dali, o terceiro pretendente caminhava à beira-mar, meditando, convencido de que os outros haviam encontrado algo raro e precioso, enquanto ele nada conseguira. 

De súbito avistou um grande barco que, vencendo o mar encapelado, atracou no porto. Dele desceram muitas pessoas, dentre elas um velhinho que se aproximou e perguntou-lhe se não gostaria de comprar aquele barco.

— E para que vou querer isso? — disse o rapaz. — Este barco está tão velho, que daqui a algum tempo só servirá para lenha.

— Você está enganado, meu rapaz — disse o velhinho.

— Este barco possui um dom inestimável: o de levar seu dono, e aqueles que o acompanham, a qualquer lugar do mundo, em muito pouco tempo. Se duvida, pergunte a esses passageiros que vieram comigo, pois há meia hora estávamos em Roma.

O rapaz conversou com os passageiros e concluiu que isso era verdade. Então, comprou o barco pelo preço que o velhinho propôs.

Por fim, os três pretendentes se reuniram no local do encontro, multo satisfeitos. O primeiro contou que havia comprado um espelho, no qual seu dono poderia ver quem desejasse. Para provar que falava a verdade, mirou-se no espelho enquanto pedia, de coração, para ver a moça por quem os três estavam apaixonados.

A imagem da moça, morta num caixão, surgiu no cristal do espelho, deixando os três sem fala por alguns instantes.

Por fim, o segundo pretendente quebrou o silêncio;

— Trago um bálsamo capaz de ressuscitar os mortos. 

Mas até chegarmos à casa de nossa querida, ela já terá sido enterrada.

— Acalmem-se — disse o terceiro pretendente. — A circunstância não é tão ruim quanto parece.

Diante do olhar de espanto dos outros dois, explicou:

— Por sorte, acabei de comprar um barco que em pouquíssimo tempo nos levará até nossa amada.

Os três correram para a embarcação e, de fato, em apenas alguns minutos chegaram ao porto do povoado. Então foram até a casa da moça, onde tudo já estava pronto para o enterro. O pai, desolado, relutava em dar a ordem final para a saída do cortejo rumo ao cemitério.

Os três rapazes se aproximaram do caixão. Aquele que tinha o bálsamo derramou algumas gotas na boca da morta. Assim que o bálsamo tocou-lhe os lábios, a moça se levantou, saudável e radiante,

Todos ficaram maravilhados com a atitude do jovem pretendente. Ainda naquele dia, o pai decidiu que era ele quem deveria se casar com sua filha. Mas os outros dois protestaram:

— Se não fosse por meu espelho, jamais saberíamos o que havia acontecido. E a esta hora minha amada já estaria a caminho do campo santo — disse um dos pretendentes.

Pois se não fosse meu barco, que nos transportou até aqui em poucos minutos, nem o espelho nem o bálsamo teriam podido trazer minha amada de volta — disse o outro.

Vocês têm razão — o pai da moça reconheceu. Muito confuso e desgostoso, pôs-se de novo a meditar sobre qual seria a melhor solução para aquele problema.

Tocando-lhe o ombro, a filha disse, com serena convicção:

– Agora o senhor entende, papai, porque eu precisava dos três para viver?

Fonte> Yara Maria Camillo (seleção). Contos populares espanhóis. SP: Landy, 2005.